Em Democracia na América, Tocqueville parte da determinação de certos traços estruturais das sociedades modernas, principalmente a francesa, para a comparação das diversas modalidades dessas sociedades com a sociedade americana. Ao analisar o Estado americano,
Tocqueville evita dar preponderância ao fato industrial, como faz Comte, ou ao fato capitalista, como faz Marx, atribuindo, assim, primazia ao fato democrático.

Comte observava a sociedade industrial e, sem negar que ela comporta diferenças secundárias de acordo com as nações e os continentes, acentuava as características comuns a todas as sociedades industriais. Tendo definido a sociedade industrial, pensava ser possível, a
partir desta definição, indicar as características da organização política e intelectual de qualquer sociedade industrial. Marx definiu o regime capitalista e descreveu certos fenômenos que, segundo ele, seriam encontráveis em todas as sociedades capitalistas. Comte e Marx concordam, portanto, quando insistem nos traços genéricos de toda a sociedade, seja industrial ou capitalista, subestimando, contudo, a margem de variação da sociedade industrial ou do regime capitalista.

Tocqueville, ao contrário, constata certas características associadas a essência de toda sociedade moderna, ou democrática, mas acrescenta que, a partir desses fundamentos comuns, há uma pluralidade de regimes políticos possíveis. As sociedades democráticas são liberais ou despóticas; podem e devem assumir características distintas nos Estados Unidos,
na Alemanha e na França. Tocqueville, sociólogo comparativista por excelência, procura identificar o que é importante confrontando espécies de sociedades pertencentes a um mesmo gênero ou a um mesmo tipo.

Democracia na América levanta o por que de nos Estados Unidos a sociedade democrática é liberal? Inicialmente, se torna necessário apresentar a definição de democracia para Tocqueville.

Para o autor, a democracia consiste na equalização das condições. Democrática é a sociedade onde não subsistem distinções de ordens e de classes; em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais, o que não significa que sejam economicamente iguais, o que para Tocqueville é impossível. A igualdade social significa a inexistência de diferenças hereditárias de condições.

O governo adaptado a esta sociedade igualitária seria o chamado governo democrático. Neste o conjunto do corpo social é soberano, porque a participação de todos na escolha dos governantes e no exercício da autoridade é a expressão lógica de uma sociedade democrática,
isto é, de uma sociedade igualitária.

Além disso, uma sociedade dessa ordem, onde a igualdade constitui a lei social, e a democracia o caráter do Estado, é também uma sociedade que tem por objetivo prioritário o bem estar do maior numero possível. Na América, a autoridade da maioria baseia-se, parcialmente, na idéia de que há mais sabedoria em um grupo do que em um único individuo. Essa autoridade funda-se ainda no principio de que os interesses da maioria devem ter preferência ante os interesses da minoria.

Dessa forma, Tocqueville acredita que a liberdade não pode fundamentar-se na desigualdade; deve assentar-se sobre a realidade democrática da igualdade de condições, salvaguardada por instituições cujo modelo lhe parecia existir na América.

Tocqueville acredita que as atividades privilegiadas das sociedades modernas são a industrial e a comercial. É o que afirma a respeito dos Estados Unidos, e não duvida de que a tendência seja a mesma na Europa. Contudo, quando mostra esta predominância da atividade
industrial, Tocqueville a interpreta essencialmente com relação ao passado e com relação ao seu tema central que é o da democracia.

O autor demonstra que a atividade industrial não pode reconstituir uma aristocracia do tipo tradicional. A desigualdade, implicada pela atividade industrial, não lhe parece contradizer a
tendência igualitária das sociedades modernas. Em primeiro lugar, a riqueza industrial é, se podemos dizer assim, móvel, não se cristaliza em famílias que mantém situação privilegiada através das gerações. Por outro lado, entre o industrial e seus operários não se criam laços de solidariedade hierárquica como os que existiam no passado entre senhores e seu camponeses. Os únicos fundamentos históricos de uma verdadeira aristocracia são a propriedade da terra
e a atividade militar.

Por isso, na visão de Tocqueville, as desigualdades de riqueza, por maiores que sejam, nunca contradizem a igualdade fundamental das condições, característica das sociedades modernas. Em uma determinada passagem de Democracia na América, Tocqueville indica que na
sociedade democrática, voltará a se constituir uma aristocracia, por meio dos líderes industriais. Entretanto, não acredita que a industria moderna leve a uma aristocracia. Prefere pensar que as desigualdades de riqueza tenderão a se atenuar a medida que as sociedades modernas se tornem mais democráticas. Crê, sobretudo, que as fortunas industriais são muito precárias para originar uma estrutura hierárquica durável.

Dessa forma, Tocqueville se omite de discutir a questão da industrialização por acreditar que a industrialização e suas conseqüências não seriam suficientes para provocar grandes transformações sociais na América.

Partindo destes pressupostos, Tocqueville cria o tipo ideal de democracia, baseado no modelo americano. O autor acentua, sobretudo, o sistema de valores, sobre o seu duplo sentido da igualdade e da liberdade e esboça uma teoria segunda a qual as características de uma
sociedade decorrem das suas origens.

Para Tocqueville, como já foi dito, a igualdade geral de condições entre os indivíduos é o ponto fundamental para a existência da democracia em seu mais alto nível. O autor considera que na América, esta igualdade está quase completa. Nesta existiria o chamado princípio da soberania
do povo, segundo o qual cada indivíduo tem um poder igual ao dos demais, e, portanto, tem igual capacidade de participação no governo.

Para o autor, a democracia consistiria na equalização das condições. Democrática então, seria a sociedade onde não subsistiriam distinções de ordem e de classes; onde todos os indivíduos seriam socialmente iguais, significando também a inexistência de diferenças hereditárias.

Na América, o povo nomeia seus representantes tanto do poder legislativo quanto do poder executivo de forma direta. Dessa forma, o povo se torna o verdadeiro poder dirigente, uma vez que, mesmo de forma representativa, seus interesses terão influência direta nas ações do governo. Assim são constituídas instituições democráticas nas quais a maioria governa em nome do povo.

Cada indivíduo é independente, livre para determinar suas posições. Entretanto, todos os indivíduos, membros da sociedade, avançam ao mesmo tempo para o mesmo fim. Ninguém é obrigado a abrir mão do exercício de sua razão e livre vontade, mas todos exercem essa razão e vontade para promover um fim comum. Assim, as leis democráticas, por emanarem da maioria dos cidadãos, tendem a promover o progresso social da maioria.

Outro ponto interessante na democracia americana está relacionado às leis. Todos os cidadãos são iguais perante a lei. Todos têm as mesmas obrigações e resguardos perante a lei, assim como todos têm igual poder de participação na concepção das leis, seja esta participação direta ou indireta. Para Tocqueville esta participação ampla enfraquece a excelência e a sabedoria da legislação, entretanto o próprio autor afirma que quando uma lei é exposta à formulação e apreciação do povo, seu grau de autoridade é aumentado. Esta lei seria uma forma de expressão da vontade, senão de todos, da maioria. Dessa forma pode-se considerar que a legislatura é, de todas as instituições políticas, a mais suscetível a ser governada pela vontade da maioria.

Tocqueville considera, entretanto, que este elevado grau da democracia não impõe barreiras suficientes ao surgimento de uma possível tirania da maioria. Nesse caso, torna-se vital a existência de um governo que, através da justiça, proteja tanto a maioria quanto à minoria. Isso nos remete aos artigos federalistas.

Para James Madison, um dos autores de O Federalista, quando a democracia se dá sob um território muito extenso e com um número grande de cidadãos, como no caso americano, cresce o número de interesses em conflito de tal sorte que, ou não existirá um interesse que reúna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organizem para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se a sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma determinada facção. Com base nesta concepção, penso que essa idéia de
vontade da maioria é meio falsa. Na verdade, a meu ver, se trataria da vontade da maior das minorias. Assim sendo, seria difícil essa maior minoria comandar o governo, pois o todo restante, os grupos opositores, formariam um bloco que seria ainda maior.

Por fim, é importante citar que Tocqueville acreditava que o grau de igualdade de condições dos indivíduos em países como a França tende a se aproximar do grau de igualdade existente na América, entretanto, a democracia, deste derivada, seria diferente em função de características peculiares de cada nação. O autor considera que a sociedade americana não pode representar um modelo para as sociedades européias, mas pode dar-lhes uma lição, mostrando como a liberdade é salvaguardada numa sociedade democrática.

ARON, Raymond. As
Etapas do Pensamento Sociológico
. Martin Fontes. São Paulo. 1987.

TOCQUEVILLE, Aléxis de. Democracia
na América
. Volume I. Companhia Editora Nacional. São
Paulo. 1969.