Tudo começou em fevereiro de 1997. Já viajava por mais de três horas, saindo de Manaus com destino à cidade de Envira, quando finalmente avistei, pela primeira vez, os telhados de alumínio das casas de madeira, reluzindo sob o forte calor, próprio da região Norte. Era uma visão muito curiosa, daquelas que não se espera ver após uma viagem sobre longos “tapetes verdes” e caudalosos rios que serpenteiam por entre a floresta amazônica.

Aquela imagem simbolizava não apenas o contraste existente entre a urbanização e a floresta, simbolizava também a minha entrada em um mundo totalmente novo e que provocaria grandes conflitos em minhas referências paulistanas.

Envira está situada na calha do Rio Juruá, divisa com o Acre, distante cerca de 1.300 km em linha reta de Manaus. Sua localização só possibilita o acesso por pequenos aviões mono e bimotores e por via fluvial. Uma viagem de barco até Manaus demora de 15 a 20 dias, dependendo da época do ano. 

O município possuía, na época, uma população estimada de 13.300 habitantes, espalhados por 13.369 km² de extensão territorial. Na zona urbana a população não ultrapassava os 5.000 moradores, também espalhados pelas áreas periféricas da cidade, denominadas agrovilas, colônias e seringais.

A cidade recebia sinais de transmissão das redes Globo e Bandeirantes, mas não possuía rádio e provedor para Internet. Não existiam jornais e o Correio semanal entregava revistas por assinatura com atraso. Não havia até então qualquer agência ou posto bancário.  

Não foi amor à primeira vista. Para alguém natural da Capital de São Paulo, o comitê de boas vindas dos piuns (minúsculos, mas poderosos, insetos típicos da região) causou uma grande resistência, felizmente superada pela amabilidade da população. Naquela primeira e inesquecível viagem, tomada por uma alergia intensa, fiquei a maior parte do tempo trancada no quarto do hotel, com ar condicionado, para fugir desses terríveis defensores do meio ambiente.

De 1997 a 2001, visitei a região mensalmente, acompanhando, nas zonas rural e urbana, o desenvolvimento de um Programa Federal de Educação de Jovens Adultos, através de uma parceria com a Universidade para a qual trabalhava. Com o tempo, a bagagem de repelentes e antialérgicos passou a fazer parte da minha rotina de trabalho. Visitava as comunidades ribeirinhas em longas viagens de barco, aprendendo a dormir em redes, a apreciar peixes e farinha e a viver situações completamente estranhas às referências da Região Sudeste.

Nesse período fui conhecendo mais do Estado do Amazonas do que conheci, durante toda a vida, sobre a capital de São Paulo. Movida por instigantes conflitos, tentava entender o cotidiano dessa população, seus hábitos, costumes, valores, enfim, sua cultura, que sempre me encantou.

Formada em Psicologia, desenvolvi minha pesquisa de Mestrado em comunidades ribeirinhas do rio Purus, no município vizinho de Pauini, identificando as representações desse mundo de homens e natureza no campo da Educação.

Em 2002 deixei de visitar Envira, mas as marcas ficaram indeléveis em meu coração, representadas pela imagem de seus telhados brilhantes, de sua exuberante floresta e de seu povo receptivo, alegre e carinhoso. O fascínio pela cultura amazônica permaneceu e não perdi o contato com algumas pessoas do local.

Em outubro de 2004, recebi o convite do Prefeito recém-eleito para retornar a Envira e, dessa vez, não mais periodicamente como antes, mas como moradora, no desempenho de minhas funções profissionais e no desafio proposto pelo Gestor Público de implantar uma gestão diferenciada do assistencialismo partidário, predominante há mais de 20 anos naquele município.

A decisão foi difícil, pois já possuía uma estrutura familiar, econômica e profissional na cidade de São Paulo. Além disso, por ter adquirido algum conhecimento da cultura amazonense, a consciência me alertava para as graves crises que enfrentaria, mas também provocava o encantamento do agricultor frente a uma terra fértil.  Para espanto de todos, o fascínio falou mais alto e decidi começar de novo, aceitando o desafio da adaptação pessoal, de um trabalho efetivo na administração pública e da superação de obstáculos imprevisíveis.

Voltei a sobrevoar a floresta e observar os telhados reluzentes, agora mais espalhados e em maior número, no dia 30 de dezembro de 2004.

Os desafios começaram logo ao chegar. A falta de moradia transformou minhas malas em armários itinerantes durante alguns meses. Finalmente, fui morar em uma casa de madeira, estilo palafita, que possuía um cômodo invejável pela maioria dos moradores: um banheiro de alvenaria, com acesso interno, por vezes visitado por alguns sapos intrusos.

No quintal alagadiço e coberto de grama corriam os calangos (da família dos lagartos) e os conhecidos camaleões, pequenos, médios e, às vezes, grandes, trocando de cor constantemente para fugir dos gatos que, por sua vez, disputavam lugar com os urubus, figuras constantes em todos os quintais de Envira. Ainda para dividir o quintal, recebia as galinhas do vizinho que insistiam em comer as sementes de verduras trazidas de São Paulo, na expectativa de comer uma hortaliça de vez em quando.

A adaptação alimentar foi a mais difícil. Envira, localizada em meio à floresta amazônica, não dispõe de hortaliças ou de legumes para abastecer a população. Quando chegava ao auge da carência alimentar, comprava um repolho “importado” de Rio Branco, pela módica quantia de R$15,00. Por vezes, para complementar, cometia a ousadia de pagar R$ 8,00 por um quilo de tomate, também “importado”.  Por esse motivo recorria com freqüência aos práticos alimentos enlatados.

Por outro lado, tinha com abundância um alimento necessário para suprir a carência provocada pela distância e pela saudade: a receptividade e o acolhimento da população. Todos os dias, ao cruzar com os moradores, recebia cumprimentos sorridentes, que vinham acompanhados da curiosidade de saber o que acontecia em minha vida. Não tomava isso como intromissão, ou invasão, e sim como uma cultura interessante de “cuidar do outro”. Se precisasse de algo, se quisesse almoçar ou jantar fora de casa, se não estivesse me sentindo bem, sempre havia alguém para oferecer sua casa, seu alimento, sua rede, seu apoio. Em contrapartida, toda a cidade saberia o que houve, além das fantasias que se criariam em torno disso.

Essas fantasias são o forte da comunicação em Envira, que é tradicionalmente oral. É impressionante a capacidade criativa dos moradores. Se algo acontece na zona rural, não só chega rapidamente na cidade, como chega com detalhes interessantíssimos e totalmente destoantes do fato. É muita rápida, e perigosa, a criação de uma lenda naquela região.

Enquanto estava lá surgiu um boato de alguém, ou algo, que atacava as pessoas e as residências. Foi apelidado de “caderudo”. Nunca conseguiram vê-lo, mas as histórias contadas sobre ele tinham várias versões e, aos poucos, criou-se uma situação tão grave, quase uma histeria coletiva, que resultou em uma caça às bruxas, ou melhor, ao bruxo. A cidade ficava vazia após as 20 horas.  Os alunos tinham receio de sair tarde da escola. As pessoas se trancavam em casa. O fato quase teve conseqüências drásticas, com a perseguição insana da população a um suspeito que, felizmente, conseguiu fugir. Como toda lenda, depois de criada, ficou para ser recontada, recriada e alimentada, como mais um dos tantos “causos”, como o da “Cobra Grande”, que tem uma força imensa, passada para o homem que conseguir agarrá-la, ou do “Mapiguari”, um homem gigante e estranho que já foi “visto” por moradores, inclusive, com o “Mapiguari Júnior”.

Essas são formas representativas de um mundo ligado à natureza, onde o homem vive e expressa suas emoções e sentimentos através das histórias “reais”, que se tornam lendas, respaldadas pela tradição oral.

No campo político, a história do município reflete a história do Estado do Amazonas. A prática assistencialista é a herança deixada pelos antigos “patrões dos seringais”, que detinham o poder político, econômico e social sobre os seringueiros. A doação é sua maior característica. Doa-se tudo, mas não para todos. Ou seja, existem alguns critérios obscuros estabelecidos nessa dinâmica. Os conchavos partidários são estimulados e divulgados por uma estranha rede de intrigas, digna de qualquer filme de ficção. Em 2005 foi lançado um “jornal” (cópias xerox em papel sulfite), no qual eram feitas denúncias, sem comprovações, que envolviam desde questões financeiras e sociais do município, até “notícias” sobre a vida pessoal de profissionais e funcionários ligados à administração pública, em linguagem escandalosa e com a utilização de pseudônimos.    

Nesse contexto, meus dias foram se tornando curtos para os problemas que surgiram. A implantação de programas sociais de forma participativa, visando o desenvolvimento da autonomia, esbarrou na aparente inércia da população, traduzida pelo refrão de todas as reuniões: “não vai dar certo”. Aos poucos foi sendo trocado pela esperança do “é possível”. Na maioria das vezes, um ouvido atento e algumas orientações motivadoras surtiam efeitos muito positivos.

Face à interrupção de uma política que envolveu gerações, foi natural um clima geral de inquietação e desconfiança. Preocupada com uma gestão de resultados e tentando manter uma relativa indiferença às emoções vivenciadas pela população, tentava realizar minhas atividades com toda a população, independente de posição política. Esse foi meu maior aprendizado haja vista que minha formação teórica e minha racionalidade não eram suficientes para entender esse mundo de emoções e sentimentos.

Em muitos momentos senti uma imensa saudade da minha família e das minhas referências urbanas; das facilidades de acesso, de comunicação e de informação; das possibilidades de consumo e de lazer. Por outro lado, foi nesse mundo que encontrei uma paz enorme, sem internet, carro, jornais e revistas, apenas andando na pista do aeroporto, ou na estrada da Agrovila, durante a noite, sob milhões de estrelas que pareciam estar ao alcance de minhas mãos.

Nas viagens à zona ribeirinha, ficava horas observando a perfeita engenharia da natureza amazônica, principalmente dos rios barrentos, que todos os anos, durante a cheia, cuida de transformar os barrancos em praias e as praias em barrancos. Cuida também de fertilizar a areia para a plantação da mandioca, da melancia, do arroz e do feijão, no período da seca.

Durante o inverno, de outubro a março, oferece rios largos e profundos para a navegação, mas avisa os navegadores inexperientes dos rigores de suas leis, através das correntezas, dos paus, árvores, galhos e pedaços de ilhas, que descem os rios. É maravilhosa a sabedoria desse povo que, com suas pequenas canoas, conhece e navega pelos “furos”, causados pelas cheias, entre os galhos de imensas árvores quase submersas.

Naquele cenário, ficava na beirada do porto, após as 17h 30m, tentando espantar a solidão e olhando o mais incrível por de sol que existe. Acompanhava o surgimento de cores indescritíveis, uma após outra, até o aparecimento da Lua, reluzindo, de forma suave, sobre o rio e sobre os telhados de alumínio.

Mundo de homens e de natureza, ou de natureza e de homens. Rostos que mostram a miscigenação do nordestino com o europeu e com o índio. Cultura que retrata, até os dias de hoje, a escravidão pela qual passaram os “soldados da borracha”. Sertanejos que vieram desbravar a floresta e suas seringueiras e que sucumbiram ao trocar a seca do nordeste pela abundância das águas, da flora e da fauna amazônica.

O hábito do isolamento, adquirido pelo seringueiro, sozinho em sua colocação, tendo que caminhar horas dentro da mata cortando seringa, perdura até hoje na localização das habitações ribeirinhas. Famílias moram distantes umas das outras, horas de barco, e não conseguem lidar com os conflitos resultantes da convivência em grupos maiores. Foram essas famílias que me receberam de braços abertos, com sorrisos sinceros, sempre com uma boa história para contar, ou com uma esperança para receber.

Sentada na beirada da palafita, espantando as carapanãs noturnas, ouvia os causos, as lendas, as histórias contadas por gente simples que nunca soube o que é internet, uma sala de bate-papo, um amigo virtual. Também não adiantava contar a elas pois seria difícil compreender esse tipo de isolamentos, a solidão em meio à multidão.

Nesse mundo, abracei e beijei as pessoas com a simplicidade e a ingenuidade de uma criança, apenas pela troca de afeto, essencial ao ser humano. Dançava todos os finais de semana nos forrós locais. ficando conhecida pelo meu jeito “festeiro” e alegre.

Meu trabalho junto aos jovens, sem perspectivas de futuro, e junto às mulheres, herdeiras de uma cultura de submissão, foi meu esteio e minha esperança. Joguei sementes em terreno fértil, mas há necessidade de todos os tipos de adubos que bons profissionais possam proporcionar.

Da mesma forma, a floresta e a cidade são grandes escolas. Escolas de vidas que sobrevivem sem os encantos da vida moderna e, talvez por isso mesmo, mantenham o encanto da história, da cultura e do mistério. Mistério esse que procurei desvendar, a cada dia, em cada contato. Desafios da complexidade humana em meio à sabedoria da selva. 

Sabedoria que ainda espera ser libertada das marcas do assistencialismo, que caracterizou a história de uma população inteira. Povo que ainda carrega a prática da submissão, mas que já se defende com exigências cada vez mais difíceis de serem atendidas. O hábito de pedir, herdeiro do assistencialismo, alimentado pelo partidarismo político, em detrimento dos direitos e deveres, desconhecidos pela maioria, já apresenta indícios de conflitos, de contradições, sinalizando possíveis mudanças.    

O passado trazia muita saudade e o futuro gerava incertezas. A angústia do isolamento, a incerteza dos resultados, a impotência frente ao que não conseguia resolver, findavam por questionar o preço da saudade e da solidão. No entanto, a flexibilidade, a paciência e a persistência que Envira me ajudou a conquistar, são instrumentos imprescindíveis para a área social que a Academia não ensina a desenvolver. Minha atuação em trabalhos de campo facilitou a aprendizagem mas foi preciso a ousadia de tentar o novo, errar, aprender com o erro e recomeçar sempre que necessário.

A diversidade cultural, a imensidão de nosso País e a complexidade de nossos problemas sociais não permitem que fiquemos concentrados em núcleos urbanos, reclamando de nossa falta de oportunidade. Sabemos mais do que pensamos, mas acreditamos pouco no que sabemos o que nos impede de ousar e fazer a diferença. Fiquei dois longos anos em Envira, no entanto, tenho consciência de que não é o tempo que faz a História, é a História que marca o tempo.