266 – “Só me faltava essa!”    Capitulo 2

 

Ao chegar em casa, Daniel ainda sentiu a atmosfera do grande acontecimento.

Teresa era uma heroína. Tinha conseguido salvar Felícia com coragem e sangue frio.

Todos a admiravam e a faziam sentir-se contente, como havia muito não se sentira.

Depois da empolgação daquela tarde, do carinhoso abraço de todos, Teresa teve uma noite agitada.

No seu pesadelo, era ela que estava desmaiada no fundo do poço e não conseguia respirar. Mas não havia nenhuma Felícia para ajudar.

Havia, isto sim, o chefe do Daniel, amarrando-a com os lençóis de linho.

Daniel não estava por perto e as crianças, encostadas na mureta, riam-se  dela.

Acordou  assustada, suada, como se estivesse com febre.

O que o seu inconsciente queria lhe mostrar, com este pesadelo sem sentido?

 

Por várias razões, Teresa não estava de bem com a vida;

Aquele momento especial tinha-lhe dado a oportunidade de se olhar melhor e de sentir quantas coisas tinham desandado, nos últimos anos.

 

Só tinha, naquele fim de mundo, uma amiga fiel, a Mariana, que a escutava e lhe dava suas opiniões.

- “ Minha vida funciona como esse meu calendário, com  uma folha para cada dia “– disse Teresa.- De manhã arranco a folha do dia anterior, sem me dar conta que é um gesto  importante, simbólico. Estou enterrando  o que aconteceu “ontem”,  e abrindo  o “hoje” com suas perguntas e suas surpresas.”

- “ Mas é isso mesmo, Teresa” - confirmava a amiga – “A vida é uma rotina. O novo dura pouco; e afunda no panorama cinzento do dia a dia.

Dá para perceber isso no trabalho, nos sentimentos; no que visto, no que como, no que penso....

Se não nos renovarmos, a frustração nos vence e nos leva ao analista....”

 

De manhã, ao cumprir o ritual, parou segurando na mão a folha do dia passado  e começou a questionar-se: 

-“ Quem é você Teresa? Onde você está?  O que você espera da vida?

Ficou apavorada com essa onda de pensamentos. 

Quando o café ficou pronto, parou diante da xícara fumegante, tentando tranqüilizar-se  e refletir.

A folhinha continuava na sua mão.

Recuou para o dia anterior

Aquele acontecimento inusitado, a visão da morte, o desespero, tinham acordado nela a necessidade de se examinar, de se reavaliar.

Viu-se vegetando,  morando quase no fim do mundo, carregada de obrigações, aceitando passivamente um dia-a-dia  sem satisfações, sem prêmios.

 

Viu a rotina da convivência com o Daniel; a luta diária contra o pó da rua, contra um fogão teimoso, contra a roupa suja, contra a teimosia das crianças e as tantas outras tarefas diárias.

E as perguntas voltavam: -“Quem é Você? Onde você está? O que espera da vida?”

A sua existência ao lado do Daniel resumia-se a migalhas:

Um beijo morno na testa de manhã; a ausência dele o dia inteiro; a troca de poucas palavras, na maioria queixas, murmuradas rapidamente durante o jantar;

Depois, o momento sagrado de silencio, acompanhando atentamente, no jornal na TV, as eleições na Indonésia, a safra de trigo na Ucrânia; a descrição minuciosa do último jogo de futebol, as violências diárias em uma sociedade amarga e assustada. Daniel tinha-lhe proibido de acompanhar as novelas, que dão só  maus exemplos e nenhum bom ensinamento

Logo, vinham os repetidos bocejos do marido; e a cama fria, os poucos afagos -  que nem mereceriam este nome, na verdade -  que Daniel dividia por igual entre ela e o cachorro.

E por fim, uma vez por semana, um ato sexual indigno, insosso, mecânico, absolutamente insatisfatório.

Por onde andariam os carinhos, as caricias quentes,  as palavras de amor, os abraços inesperados em qualquer lugar da casa  as atenções diárias, o desvelo, as atenções, que compensariam, ao menos em parte, a espera impaciente de um dia inteiro?

Não havia mais nada. Teresa estava morta. Tudo, na vida dela, era cinza fria.

Durante o dia inteiro, ela pensou, repensou, matutou.

Avisou a mãe, que não via havia tempos, que iria visitá-la com as crianças.

Mães têm sensores mais perfeitos que barômetros.

Percebem as mudanças do tempo e a aproximação de tempestades, muito antes que qualquer outro sistema.

Uma simples inflexão diferente e elas começam a se preocupar, aflitas, a perguntar se está mesmo tudo bem,  se não está havendo alguma coisa errada.

Dona Eulália, mãe da Teresa , não era diferente.

Logo ficou em estado de alerta, aguardando a visita anunciada.

Teresa não estava preparada para nada.

Tinha sentido apenas uma frustração ao olhar melhor  a sua vida. 

Agora precisava só de paz e de tempo.

Levou as crianças, junto com um bolo e deixou tudo na casa da mãe, que foi muito compreensiva.

–“Já enfrentei também estes  demônios “ – dizia ela – “e só consegui supera-los refletindo muito”

Teresa saiu e foi procurar a outra Teresa, aquela menina alegre, segura de si, dona de todas as respostas, que anos antes casara, por amor, com aquele rapaz simpático, capaz de conquistar o mundo, que se chamava Daniel.

 

Poucos percebem as grandes mudanças que o tempo produz dia após dia em cada um de nós..   

E menos ainda são os que lutam contra o adormecimento progressivo dos sentidos,  que nos derruba e nos vence.

 

Ela era uma garota feliz, que vivia num jardim encantado, sem cercas; sabia voar por horas no céu azul; acompanhava o canto dos pássaros; a sua vida era feita de cores, de luz, de primavera.

 

E de repente, sem quase perceber,  transformara-se em uma mulher séria, sem sonhos e sem asas, que apenas saltava desajeitada de um lado para outro, em um espaço cada vez menor;  ela  já era outono, sem ter sido verão.

 

 

 Analisou melhor o Daniel. 

Um operário esforçado e cumpridor de suas obrigações; inteligência normal, cultura limitada; não conseguiria ser muito mais que um operário,  pelo resto da vida. Mas não era este o problema.

Ao casarem, estavam ambos profundamente apaixonados.

Mas nenhum sentimento conserva seu valor, sua identidade por longo tempo; o ódio, a inveja, a admiração, a pena, perdem importância e esmaecem em dias.

A paixão, o Amor (mesmo este, com A maiúscula)  não fogem a esta regra.

Transformam-se fundem-se, diluem-se, evaporam.

 

Teresa, distraída nesses pensamentos, não percebeu que tinha passado da porta da psicóloga.

Recostada no sofá, contou os fatos do dia anterior e o sonho.

A doutora escutou pacientemente e tentou pôr um pouco de ordem na coisa:

a)  Você está realmente no fundo do poço e não teria percebido isso, se não tivesse socorrido a Felícia. Agradeça-lhe, por ter-lhe proporcionado esta descoberta; 

b)  Você está assoberbada por obrigações e preocupações, impossíveis de cumprir. Está a ponto de entrar em colapso.

c)  Os lençóis mostram que você precisa, inconscientemente, de um substituto ao seu marido  – você está livre para interpretar isso do jeito que quiser. A figura do chefe é irrelevante.

d)  As crianças, rindo de você, mostram que você intimamente se sente escrava dessa soma de trabalhos.

e) Aconselho – ou melhor, prescrevo – que você largue tudo por um mês e vá passear, mesmo a custa de um grande sacrifício financeiro.

f) A meu ver, esta saída é a única que lhe permitirá voltar ao equilíbrio.

   São 300 reais; aceito um cheque pré, para 15 dias.

 

Teresa pagou e saiu pela rua, decidida a pensar melhor, a digerir o que tinha acabado de ouvir. Sabia que era verdade e não poderia mais mentir a si mesma.