SINOPSE DO CASE DE PROCESSO PENAL II 1

 

Leonardo Leitão Salles2

José Cláudio Cabral Marques3

DESCRIÇÃO DO CASO

A Constituição estabelece que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5°, LVI, da CF). O Supremo Tribunal Federal tem interpretado essa norma de maneira praticamente absoluta. Ele não admite ponderações. Quando muito se admite a utilização da prova ilícita para inocentar, nunca para condenar. Para verificar se esse entendimento está correto, vale analisar um caso real, bastante interessante:

Um marido ciumento, desconfiado de sua mulher, resolve contratar um detetive particular para saber se está sendo traído. O detetive, utilizando expediente ilegal, grampeia o telefone celular da esposa de seu cliente. No meio das escutas gravadas ilicitamente, o marido descobre que, além de trair, a mulher também costuma ministrar medicamento pesado (Lexotan) para forçar suas filhas a  dormir enquanto ela se diverte com seu amante. Isso é realizado com certa frequência, sendo que nas gravações, a mulher não demonstra nenhum remorso em relação a isso.

O marido fica indignado e apresenta provas ao Ministério Público. O MP denuncia a esposa.

  1. 1.      IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA

Questões principais:

1) Na colisão de direitos fundamentais supracitada (direito à liberdade e privacidade – proteção da família e da criança e do adolescente), qual direito deve prevalecer?

2) Como se manifestam os tribunais pátrio sobre a prova ilícita por derivação, também chamada de Teoria dos frutos da árvore envenenada, em específico às escutas telefônicas?

3) Qual seu entendimento por “Admissibilidade da Prova Ilícita a partir da Proporcionalidade Pro Reo”?

Questões secundárias:

Tendo por base o caso exposto, responda:

a)      No que se refere ao tratamento dispensado às provas ilícitas e às limitações da teoria da ilicitude por derivação, analise as seguintes assertivas manifestando-se pela sua validade ou não.

1)      Provas obtidas a partir da escuta telefônica legalmente autorizada pela autoridade judicial não podem subsidiar denúncia por crime apenado com detenção tendo em vista a restrição imposta pela Lei 9.296/96 (Lei de Escuta Telefônica), em relação aos quesitos para o deferimento da medida.

2)      É inviável na esfera extrapenal da prova obtida com interceptação telefônica.

3)      Não é possível a utilização de prova obtida contra terceiro com interceptação telemática, quando no curso da medida se verificar a prática delituosa por agente estranho ao pedido originário da interceptação.

4)      Pelo critério limitação da fonte independente entende-se válida a prova produzida com base em fator dissociado da ilicitude de prova anteriormente obtida.

b)      Quais os benefícios e os malefícios advindos do emprego das provas ilícitas para a solução do caso?

 

  1. 2.      IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

 

ARGUMENTOS DA ESPOSA

Por meio de gravações telefônicas do celular de sua esposa, o marido descobre que esta, além de trair, costuma ministrar medicamento pesado (Lexotan) para fazer com que suas filhas dormissem enquanto ela estava com seu amante.

Para CAPEZ (2006), prova “é o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz e por terceiros destinados a levar o magistrado à convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação”. Ou seja, são atos praticados pelas partes, pelo juiz e por terceiros que buscam mostrar a existência e a veracidade de um fato, levados a uma apreciação judicial que leve o magistrado a ter convicção quanto à existência ou não de uma situação fática formada durante o processo.

O objeto da prova, de acordo com as palavras de Paulo Rangel (2011): “O objeto da prova é a coisa, o fato, o acontecimento que deve ser conhecido pelo juiz, a fim de que este possa emitir um juízo de valor. São os fatos sobre os quais versa o caso penal. Ou seja, é o thema probandum que serve de base à imputação penal feita pelo Ministério Público. É a verdade dos fatos imputados ao réu com todas as suas circunstâncias”. Os fatos serão apreciados pelo juiz para que este emita um juízo de valor, ele vai exigir a comprovação dos fatos alegados no caso penal em questão e que servem de base para a acusação feita pelo Ministério Público.

As provas ilícitas em regra são obtidas fora do processo, sendo extraprocessual e de acordo com Renato Brasileiro (2011) são “obtidas com violação à norma de direito material”. Ou seja, são aquelas provas que ferem alguma norma constitucional ou regras de direito material, como por exemplo, a garantia constitucional de que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, conforme disposto no inciso III do art. 5º da Constituição Federal.

A Constituição Federal brasileira traz, no seu art. 5°, XII, o direito à inviolabilidade: “é inviolável sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”. Resta claro, portanto, que é admitida apenas para fins penais, como exceção, a possibilidade de quebra de sigilo assegurado pela CF de 88. Esta exceção se restringe apenas à comunicação telefônica, e apenas para fins de investigação criminal.

Tal posição do Direito brasileiro não foge das recomendações de documentos internacionais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em seu art. 12, determinava: “Nenhum indivíduo poderá ser submetido a interferências arbitrárias na sua vida privada, na sua família, na sua casa, na sua correspondência”.

Faz-se necessário tecer alguns comentários acerca da Lei 9.926/96, conhecida como Lei da Interceptação, que traça o procedimento devido para a quebra do sigilo telefônico, e tem como ponto de partida o artigo 5°, inciso LVI, da CF/88 que consagra o princípio da proibição da prova ilícita. A Carta Magna brasileira assegura ainda em seu art. 5°, X, in verbis: ”são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

O Supremo Tribunal Federal aderiu a teoria da árvore envenenada, que considera contaminadas pelo vício da ilicitude derivada as provas alcançadas a partir do conhecimento de fatos apurados através da prova ilícita. Tem-se entendido que a obtenção ilícita de informações, ou seja, a obtenção destas por meio de interceptação telefônica sem vênia judicial contamina eventuais diligências realizadas.

A teoria dos frutos da árvore envenenada é expressamente amparada em nosso ordenamento jurídico no §1º e 2º do art. 157 do Código de Processo Penal, estabelece que: “...provas obtidas licitamente, mas que sejam derivadas ou sejam consequência do aproveitamento de informações contida em material probatório obtido com violação do direitos constitucionais do acusado, estão igualmente viciadas e não podem ser admitidas na fase decisória do processo penal...” (Bonfim, 2011, p.359).

Quanto a utilização das provas ilícitas por derivação, no Brasil o STF adotou a posição de que estas resultam contaminadas e, desta forma, também ilícitas e inadmissíveis. Desta forma, quando no processo só existirem provas ilícitas, é o caso de se decretar a nulidade do feito. Ocorre que, recentemente, a jurisprudência tem aceitado a ponderação da utilização do Princípio da Proporcionalidade pro reo, que trata-se da aplicação da proporcionalidade em favor do réu. Afinal, não se pode considerar justo que alguém seja condenado por um crime, quando se demonstra sua inocência através de uma prova ilícita.

Portanto, no que tange a prova ilícita obtida pelo seu marido, através de interceptação telefônica realizada pelo detetive contratado, entende-se que esta foi obtida com transgressão ao art. 5°, inciso LVI da Constituição Federal brasileira, sendo inadmissíveis no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Em virtude do devido processo legal primar pelas garantias e direitos fundamentais do acusado, tais provas não podem ser utilizadas contra a sua esposa.

Vale mencionar que em caso semelhante, em julgamento do Superior Tribunal de Justiça, no RMS 5352/GO, o STJ decidiu pela nulidade da prova obtida ilicitamente pelo marido, segue o julgado:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA.ESCUTA TELEFÔNICA. GRAVAÇÃO FEITA POR MARIDO TRAIDO. DESENTRANHAMENTO DA PROVA REQUERIDO PELA ESPOSA: VIABILIDADE, UMA VEZ QUE SE TRATA DE PROVA ILEGALMENTE OBTIDA, COM VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE INDIVIDUAL. RECURSO ORDINARIO PROVIDO.

I - A IMPETRANTE/RECORRENTE TINHA MARIDO, DUAS FILHAS MENORES E UM AMANTE MEDICO. QUANDO O ESPOSO VIAJAVA, PARA FACILITAR SEU RELACIONAMENTO ESPURIO, ELA MINISTRAVA "LEXOTAN" AS MENINAS. O MARIDO, JA SUSPEITOSO, GRAVOU A CONVERSA TELEFÔNICA ENTRE SUA MULHER E O AMANTE. A ESPOSA FOI PENALMENTE DENUNCIADA (TOXICO). AJUIZOU, ENTÃO, AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA, INSTANDO NO DESENTRANHAMENTO DA DECODIFICAÇÃO DA FITA MAGNETICA.

II - EMBORA ESTA TURMA JA SE TENHA MANIFESTADO PELA RELATIVIDADE DO INCISO XII (ULTIMA PARTE) DO ART. 5. DA CF/1988 (HC 3.982/RJ, REL. MIN. ADHEMAR MACIEL, DJU DE 26/02/1996), NO CASO CONCRETO O MARIDO NÃO PODERIA TER GRAVADO A CONVERSA A ARREPIO DE SEU CONJUGE. AINDA QUE IMPULSIONADO POR MOTIVO RELEVANTE, ACABOU POR VIOLAR A INTIMIDADE INDIVIDUAL DE SUA ESPOSA, DIREITO GARANTIDO CONSTITUCIONALMENTE (ART. 5., X). ADEMAIS, O STF TEM CONSIDERADO ILEGAL A GRAVAÇÃO TELEFÔNICA, MESMO COM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL (O QUE NÃO FOI O CASO), POR FALTA DE LEI ORDINARIA REGULAMENTADORA (RE 85.439/RJ, MIN. XAVIER DE ALBUQUERQUE E HC 69.912/RS, MIN. PERTENCE).

III - RECURSO ORDINARIO PROVIDO

ARGUMENTOS DO MARIDO

O marido argumenta pela aceitação das provas ilícitas obtidas através de interceptação telefônica de sua esposa, uma vez que o art. 227 da CF assegura: “ É dever da família , da sociedade, e do Estado assegurar à criança, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer , à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Parte da doutrina que se posiciona no sentido da admissibilidade das provas ilícitas tinha como justa causa prevalecer a “busca da verdade real”, que se caracterizava através de um processo de reconstrução histórica dos fatos. O sentido da admissibilidade das provas ilícitas tem base ainda no princípio da proporcionalidade, devendo ser feita uma ponderação acerca da relativização do princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas.

Seguindo o princípio da proporcionalidade, uma prova colhida ilicitamente pode ser aceita, se seu fim visar proteger outro bem jurídico de maior valor. Tal ato pode ser considerado uma atenuação quanto à mencionada teoria dos frutos da árvore envenenada, podendo ser admitida a prova ilícita em caráter excepcional, como é o caso em questão, em que de um lado se encontra o direito fundamental à liberdade, intimidade e privacidade da esposa, e de outro lado o direito à proteção da família e da criança e do adolescente.

Na colisão de direitos fundamentais do caso em questão, acredito que deve ser feita uma ponderação, para que o princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas seja relativizado, uma vez que a esposa ministrava um medicamento de “tarja preta”, indicado para adultos, vendido apenas sob prescrição médica, que pode causar dependência, de nome Lexotan, em suas filhas, para força-las a dormir enquanto se encontrava com seu amante.

Uma vez que a esposa coloca a saúde e a própria vida de suas filhas em risco, para que possa se divertir com seu amante enquanto as filhas dormem, e o fato de isto ter sido descoberto através de escutas gravadas ilicitamente, deve haver uma ponderação entre o direito da esposa à sua privacidade e intimidade, e o direito à saúde, à vida de suas filhas, que ainda são crianças, que são amparadas por lei, tendo a família e toda a sociedade o dever de protege-las. Desta forma, acredito que no caso em análise, deve-se relativizar a ilicitude da prova colhida, visando-se tutelar o valor da proteção da família, da criança e do adolescente, do direito à saúde e até mesmo à vida das crianças, que é colocado em risco, uma vez que a mãe ministra o medicamento Lexotan para as filhas poderem dormir.

OUTRAS QUESTÕES RELEVANTES:

1)                 Provas obtidas a partir da escuta telefônica legalmente autorizada pela autoridade judicial não podem subsidiar denúncia por crime apenado com detenção tendo em vista a restrição imposta pela Lei 9.296/96 (Lei de Escuta Telefônica), em relação aos quesitos para o deferimento da medida.

Tal afirmativa é falsa, uma vez que o crime punido com detenção que seja conexo ao crime punido com reclusão que ensejou a interceptação telefônica pode ser denunciado com base nessa interceptação, uma vez que esta foi legalmente autorizada pela autoridade judicial.

O entendimento é do Supremo Tribunal Federal, segue o julgado do AI 626214/MG.

(...) Resta concluir, portanto, que o aresto hostilizado, estando em confronto direto com a jurisprudência desse Supremo Tribunal, merece ser reformado, para que se dê seguimento à persecução penal.”Por todo o exposto, nos termos do art. 28§ 3º, da Lei 8.038/90, e do art. 557, § 1-A, do Código de Processo Civil, provejo o agravo e, por estar suficientemente instruído, converto-o em recurso extraordinário a que dou provimento, para determinar que o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais reexamine a denúncia oferecida pelo Ministério Público, devendo considerar legítima a prova dos crimes apenados com detenção, obtida fortuitamente no curso das interceptações telefônicas conduzidas nos autos de origem.Publique-se.Brasília, 26 de março de 2010.Ministro JOAQUIM BARBOSA Relator

(STF - AI: 626214 MG , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 26/03/2010, Data de Publicação: DJe-094 DIVULG 25/05/2010 PUBLIC 26/05/2010)

2)                 É inviável na esfera extrapenal da prova obtida com interceptação telefônica.

Tal afirmativa é falsa, uma vez que em 2011, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de interceptação telefônica na seara extrapenal. Considerou-se possível a interceptação telefônica no âmbito civil em situação de extrema excepcionalidade, quando não houver outra medida que resguarde os direitos, e no caso de envolver indícios de conduta criminosa. A decisão foi da Terceira Turma do colendo Tribunal, no julgamento do Habeas Corpus n. 203.405 – MS (2011/0082331-3).

REFERÊNCIAS:

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008.

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 6 ed.  pag. 359. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 626214 MG. Min. rel. Joaquim Barbosa. Brasília, DF, 26 de março de 2010.

BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal. vol. un. Juspodivm, 2011.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2006.