Serviço Social: identidade e alienação

 

MARTINELLI, Maria Lúcia – Serviço Social: identidade e alienação. 7ª ed. Cortez: São Paulo, 2001.

O Serviço social sempre se deparou com a ilusão de servir, por mais que a ideia seja compartilhar atitudes solidárias que despertam o sentimento de humanidade, a realidade do sistema capitalista enfraquece esse espírito e dá margem ao individualismo.

A gênese do capitalismo e seu aparecimento no cenário histórico devem ser tributados ao desenvolvimento de estado de espírito que, inspirando a vida de toda uma época, produziram formas e relações econômicas que caracterizam o sistema capitalista. O critério essencial para identificar o capitalismo é relação resistente entre produção e consumo.

            Com o advento do sistema capitalista as relações começam a se pautar pelas relações de classes, a divisão entre patrões e empregados, o homem e a máquina. O conceito de modo de produção utilizado por Marx abrange tanto à natureza técnica da produção como a propriedade dos meios de produção e as relações sociais entre as pessoas.

Nas sociedades medievais com sua economia natural as relações de troca eram simples e não existiam contratos. Esse cenário foi sucumbido pelo sistema capitalista, o qual visa o lucro e a exploração do trabalhador. O intenso desenvolvimento do capitalismo, em sua fase mercantil, se fez acompanhar da criação de uma força de trabalho assalariada e destituída de meios de produção.

O novo modo de produção exigia concentração dos trabalhadores em um espaço específico: a fábrica, a indústria, o lócus da concentração da produção, tendo em vista a expansão do capital. A máquina a vapor e o tear mecânico tornaram-se os verdadeiros deuses dos capitalistas, e a fábrica, o seu templo. O homem se confunde com a máquina, suas ações são cronometradas e ele funciona como um relógio, e ainda assim, tem que apresentar excelentes resultados.

O tempo passa ser a medida de todas as coisas, porém já não tem mais a duração concreta da atividade criativa; é um tempo especializado, do qual se deve tirar todo proveito em termo de produção; o homem transforma-se, assim, em um escravo do tempo, submetido a leis abstratas e dominado pelo mundo das coisas. E nessa perspectiva servir se torna uma grande ilusão, pois o mercado capitalista não aceita.

O surgimento das cidades industriais impôs uma nova fisionomia ao contexto social, passando a própria urbanização a ser uma variável da industrialização capitalista. O mercado começou a criar novas situações de exploração do trabalhador por meio da lei da oferta e da procura. As cidades começaram a se desenvolver num ritmo frenético.

O próprio movimento da vida humana foi substituído pelo movimento da mercadoria no mercado: à medida que estas se tornavam valor, o homem se tornava mercadoria; as relações entre as pessoas já não eram mais humanas, mas relação entre coisas. O que de certa forma veio dar origem as divisões de classes e a consciência e identidade da classe operária.

A condição de classe, um dos mais importantes determinantes da consciência das pessoas e grupos sociais, aliadas as condições peculiares de trabalho e de existência social, levavam os operários a caminhar no processo de construção de sua identidade de classe, unindo-os em torno de fins comuns. O capitalismo em síntese se tornou a luta entre a classe dominante e a trabalhadora, empregados e patrões.

Quanto ao capitalismo, modo de produção profundamente antagônico e pleno de contradições, desde o inicio de sua fase industrial instituiu-se como divisor de águas na história da sociedade e das relações entre os homens.

A realidade trazida pelo capitalismo estava posta e imposta: o trabalhador se mercantilizava, assumindo a condição de mercadoria útil ao capital, ou se coisificava perdendo sua cidadania.

O principal malefício do sistema capitalismo é o seu modo de produção antagônico, que traz em seu seio a marca da desigualdade, da posse privada de bens, da exploração da força de trabalho, a qual realiza sua marcha expansionista sob o signo da contradição. O capitalismo acentua a diferença entre as classes e valoriza o capital que é o movimento fundamental da sociedade burguesa constituída.

Na grande cidade, ao se sentir estranha no mundo hostil que a burguesia lhe criara, o trabalhador começou a se unir com os outros trabalhadores, buscando superar o isolamento e a alienação que a mercantilizada sociedade do capital lhe impunha.

“Desde o momento em que descobre que é ele quem produz o capital, ao produzir mais- valia, o proletariado começa a liberta-se da dominação burguesa” (Ianni, 1980:13.).

Desde que Revolução Industrial começou a produzir seus primeiros frutos, trazendo para os donos do capital a possibilidade de ampliar infindavelmente seus investimentos mediante uso de inovações tecnológicas e de transformações no modo de produção, tornou-se claro que a existência de abundante mão-de-obra era fundamental para alimentar o ciclo de vida do capital. No entanto, esse ciclo se tornou insano, gerando um abismo de desigualdades sociais, onde uns parecem ser melhores que os outros, uns poucos privilegiados e uma legião de moribundos.

Assim, acumular riquezas, num polo, significava expandir pobreza no outro, generalizar miséria, pois o signo da desigualdade que marca o regime capitalista e dá sustentação a uma sociedade estruturada em classes antagônicas, imprimia ao processo social uma dinâmica injusta e ilegítima que impediu o trabalhador de se apropriar até mesmo da parcela de valor por ele criada com seu trabalho. Menos por razões éticas e sociais e mais em defesa do regime, ao longo do tempo a burguesia se viu compelida a rever suas estratégias de assistência aos pobres.

A consciência e identidade do trabalhador como classe operária fez a burguesia capitalista pensar em novas estratégias para melhor assistir a classe que produzia sua riqueza. Trabalhar no contexto da estrutura e das relações sociais que peculiarizavam a sociedade do pós-guerra era a tarefa que a classe dominante reservava para os assistentes sociais naquele momento. Não se tratava de empreendimento de fácil execução, pois historicamente a realização da prática assistencial esteve bastante distanciada das relações sociais, associando-se mais à noção de caridade. Foi necessário então, buscar parceria com outros poderes, e assim a igreja entrou nesse processo.

Com o advento do Cristianismo, a assistência ampliou sua base, fundamentando-se não só na caridade, mas especialmente na justiça social. O grande organizador da doutrina cristã foi santo Tomás de Aquino (1224-1274), situando a caridade como um dos pilares da fé, imperativo de justiça social aos mais humildes.

A tarefa de racionalizar a assistência impusera-se ao final da primeira metade do século XIX, pois os trabalhadores revelavam-se inarredáveis de sua causa. Da aliança da alta burguesia inglesa com a igreja e com o Estado nascera, sob a iniciativa da primeira, a Sociedade de Organização da Caridade. A partir dessa união as relações entres as classes começaram a ganhar uma nova dinâmica, onde alguns direitos teriam que se atendidos em prol da harmonia no processo de produção. Mera ilusão!

A tarefa assumida pela Sociedade de Organização da Caridade racionalizar a assistência e reorganizá-la em base científica acabou constituindo, na verdade, uma estratégia política através da qual a burguesia procurava desenvolver o seu projeto de hegemonia de classe.

A expansão das escolas desempenhou também um papel importante nesse sentido, referenciando a ação uma expressão assistencial ao domínio de conhecimentos e procedimentos técnicos especializados. A prática da assistência já não era mais apenas uma expressão pessoal de caridade ou o produto eventual de uma motivação religiosa.

A igreja e as escolas ajudaram o trabalhador a se contentar com o seu fardo, essas instituições foram responsáveis pela consolidação da consciência do trabalhador, mas ao mesmo tempo lhe mostrou a dura realidade das coisas, e a força do poder que o capital possui.

Por fim, dar à prática da assistência social o titulo de “trabalho social” mostrava-se útil à burguesia, pois a ajudava  a ratificar a ideia, na classe trabalhadora, de que era uma prática criada para atender ao trabalhador e à sua família e de que o agente profissional também eram trabalhador.

Em outras palavras, o trabalhador adquire consciência de seu papel na sociedade capitalista, os burgueses percebem essa mudança e buscam na religião apoio para amenizar a crise fomentada pelas desigualdades sociais oriundas da exploração do capital, porém pouca coisa mudou e o mundo continua sob os domínios da classe dominante, a burguesia.

  • Geone Angioli Ferreira é professor substituto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM/Campus Parintins.
  • Rainiele Santos de Oliveira é acadêmica de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas –UFAM.