1. CONCEITO

            O sequestro internacional de menores trata-se da remoção ou retenção ilícita da criança por um dos seus genitores para um país que não seja o de sua residência habitual. Este conflito ocorre entre genitores de nacionalidades e domicílios diferentes com relação aos filhos comuns do casal. De acordo com Gaspar e Amaral (2013, p. 354):

As disputas resultantes do transporte internacional compulsório e conflituoso de menores por ação de membros da família, com maior incidência nos últimos anos, dada a expansão das viagens e dos relacionamentos intercontinentais, tornaram-se assunto de grande preocupação para os Estados, principalmente os da Europa. Dessa forma, tais circunstâncias e acontecimentos fizeram com que se propusesse, no fórum da Conferência de Haia, a criação de uma convenção sobre o “deslocamento ilegal de crianças ao estrangeiro”.

A Convenção de Haia de 25 de outubro de 1980, em vigor no Brasil através do Decreto nº 3.413/2000, é o documento que busca dirimir os conflitos judiciais envolvendo direitos de guarda e visitação sobre crianças, devendo estas disputas, segundo a referida Convenção, serem decididas pela jurisdição de sua residência habitual, à luz do direito local.

            Antes da elaboração da Convenção de Haia, havia um problema de difícil resolução quando do termino do matrimônio ou união estável entre cônjuges de diferentes nacionalidades. Muitas vezes, após o término do relacionamento, os filhos do casal eram levados para o exterior por um dos cônjuges, não tendo mais contato algum com o pai ou a mãe deixado para trás. Importa salientar que estas situações ocorriam principalmente por iniciativa do pai e dificilmente ocorriam por conta da mãe.

            Com o rompimento da vida conjugal, é bastante comum o retorno de um dos cônjuges para o seu país de origem, principalmente daquele que permanece com a prole, em virtude da procura de se beneficiar da lei local na disputa pela guarda, ilicitamente, alterando a jurisdição competente para decidir as questões relacionadas aos menores, modificando, inclusive, a legislação aplicável ao caso. Nas palavras de Tiburcio e Calmon (2014, p. 2):

Para atingir sua finalidade, o genitor abdutor usualmente pratica uma entre as duas seguintes ações. Na primeira hipótese, a criança é retirada ilicitamente – ou seja, sem a autorização do genitor abandonado – do país de sua residência habitual. Trata-se da típica situação que envolve genitores de nacionalidades distintas, na qual, por conta do término do relacionamento entre o casal, um dos genitores, por decisão unilateral, retira a criança do ambiente no qual ela reside, para levá-la ao país de origem do genitor abdutor. Na segunda hipótese, embora a remoção não seja ilícita, a permanência da criança longe de sua residência habitual configura a ilicitude da conduta. É o caso do genitor que, aproveitando autorização de viagem ao exterior nas férias, por exemplo, não retorna com a criança após o período previsto.

            A Convenção de Haia tratou destas duas hipóteses mencionadas pelo referido autor, denominando a primeira de remoção e a segunda de retenção, sendo as duas tratadas genericamente como sequestro. Apesar do nome sequestro colocado no título, a Convenção não repete essa expressão em seu corpo e tampouco trata de qualquer punição na esfera criminal a ser imposta ao pai abdutor. O documento busca evitar que as decisões referentes ao futuro dos filhos sejam tomadas de forma unilateral por um dos genitores.

O sequestro internacional de menor possui consequências graves na vida criança que é retirada do seu local de convivência, nas qual ela é acostumada com sua residência, sua escola, seus amigos e sua rotina, tendo que se readaptar a um lugar novo, onde não possui vínculos, a não ser com o próprio sequestrador familiar, surgindo, desta forma, vários problemas com relação ao desenvolvimento da sua formação psicológica.

            Importa salientar a distinção entre sequestro internacional de menores e o tráfico internacional de menores, pois que os aspectos civis do primeiro não se confundem com as condutas criminosas do segundo, estas que buscam principalmente obter vantagens econômicas mediante escravização ou exploração sexual do menor. Da mesma forma que aspectos civis do sequestro internacional não se confundem com os aspectos penais do sequestro de incapazes tipificado no art. 249 do Código Penal Brasileiro.

           

2. CONVENÇÃO DE HAIA E SEUS FUNDAMENTOS

 

A Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, ou Hague Conference on Private International Law (HCCH), é uma organização intergovernamental de caráter global que, com mais de 60 estados membros representativos de todos os continentes, consiste em uma mescla de diversas tradições jurídicas, desenvolvendo e oferecendo instrumentos jurídicos multilaterais que correspondem às necessidades mundiais.

A Conferência, que celebrou sua primeira reunião em 1893, tornou-se uma organização intergovernamental permanente em 1955, após a entrada em vigor do seu estatuto, e hoje conta com a participação de mais de 120 países em razão da grande adesão de Estados não membros. 

Assim, com o passar dos anos, a Conferência se transformou num verdadeiro centro de cooperação jurídica internacional e de cooperação administrativa na área de direito privado, principalmente nas áreas da proteção à criança e à família, do processo civil e do direito comercial.

Como bem se encontra pontuado no sítio do site do STF dedicado à HCCH, “a missão estatutária da Conferência consiste em trabalhar pela ‘unificação progressiva’ dessas regras [das situações pessoais, familiares ou comerciais que estão relacionadas a mais de um país]. Isso implica encontrar enfoques internacionalmente reconhecidos para questões como a competência internacional dos tribunais, o direito aplicável, o reconhecimento e a execução de sentenças em numerosas matérias, desde o direito comercial ao processo civil internacional, além da proteção de crianças e jovens, questões de direito matrimonial e estatuto pessoal.”.[1]

Um dos pontos mais importantes para Haia é o respeito aos direitos das crianças, tanto é que várias convenções da Haia tratam especificamente desta questão.

Nesta toada, em 25 de outubro de 1980, foi assinada em Haia a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, atualmente vigente em 78 países, que trata de combater o sequestro parental de crianças através de um sistema de cooperação entre autoridades centrais e um procedimento rápido para restituição do menor ao país de residência habitual, “desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita; [...]” [2].

Pela assinatura desse tratado multilateral, que tem por fundamento o princípio do melhor interesse da criança, os Estados-partes assumiram o compromisso de estabelecer um regime internacional de cooperação, envolvendo autoridades judiciais e administrativas, com o objetivo de localizar a criança, avaliar a situação em que se encontra e, só então, restituí-la, se for o caso, ao seu país de origem, representando, pois, um importante instrumento na busca ao atendimento ao bem-estar e ao interesse do menor.

Segundo o entendimento do constitucionalista Luís Roberto Barroso, o princípio do melhor interesse da criança deve ser regularizado nas verdadeiras necessidades da criança envolvida. O bem-estar da criança deverá ser garantido, deixando qualquer interesse relativo aos pais para o segundo plano. Ou seja, o interesse da criança deverá se sobrepor ao de seus pais.

Referido princípio é contemplado pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança em seu art. 3º in verbis:

1- Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança. (grifo nosso)

2- Os Estados - Partes comprometem-se a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários ao seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.

3- Os Estados - Partes certificar-se-ão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada.

Para viabilizar o atingimento de referido princípio, pela Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, as autoridades centrais em cada país proporcionam assistência para a localização da criança e para alcançar, onde seja possível, a restituição voluntária da criança ou uma solução amigável para as questões de guarda. Essas autoridades também cooperam para prevenir maiores prejuízos à criança, iniciando ou ajudando a iniciar o procedimento para a restituição, e fazendo todos os arranjos administrativos necessários para garantir a restituição da criança com o menor risco possível.

O instrumento jurídico em tela tem, ademais, caráter preventivo, ao servir como desestímulo à conduta da subtração de crianças do seu seio familiar. Isto ocorre por conta da clareza de sua mensagem de que o sequestro interparental é prejudicial à criança, que tem direito a manter contato com ambos os pais, e à simplicidade de seu dispositivo fundamental, que é a ordem de restituição, o mais rápido possível, ao país de residência habitual da criança, conforme se pode depreender pela leitura dos arts. 1º e 7º da Convenção, abaixo colacionados:

Art. 1º. A presente Convenção tem por objetivo:

a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;

b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado Contratante.

Art. 7º. As autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respectivos Estados, de forma a assegurar o retorno imediato das crianças e a realizar os demais objetivos da presente Convenção. Em particular, deverão tomar, quer diretamente, quer através de um intermediário, todas as medidas apropriadas para:

a) localizar uma criança transferida ou retida ilicitamente;

b) evitar novos danos à criança, ou prejuízos às partes interessadas, tomando ou fazendo tomar medidas preventivas;

c) assegurar a entrega voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável;

d) proceder, quando desejável, à troca de informações relativas à situação social da criança;

e) fornecer informações de caráter geral sobre a legislação de seu Estado relativa à aplicação da Convenção;

f) dar início ou favorecer a abertura de processo judicial ou administrativo que vise ao retorno da criança ou, quando for o caso, que permita a organização ou o exercício efetivo do direito de visita;

g) acordar ou facilitar, conforme as circunstâncias, a obtenção de assistência judiciária e jurídica, incluindo a participação de um advogado;

h) assegurar no plano administrativo, quando necessário e oportuno, o retorno sem perigo da criança;

i) manterem-se mutuamente informados sobre o funcionamento da Convenção e, tanto quanto possível, eliminarem os obstáculos que eventualmente se oponham à aplicação desta.

No Brasil, a adesão à Convenção foi realizada em 1999, tendo sua promulgação se dado através do Decreto nº 3413, de 14 de abril de 2000, o qual determinou a data 1º de janeiro de 2000 para a entrada em vigor do instrumento jurídico internacional no país. O texto do citado decreto reservou-se apenas ao art. 24 da Convenção (reserva permitida pelo art. 42 do tratado), para determinar que os documentos estrangeiros juntados aos autos judiciais sejam acompanhados de tradução para o português, feita por tradutor juramentado oficial. Afora tal ressalva, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças “deverá ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém”.

3. REQUISITOS PARA O PEDIDO DE RETORNO

A Convenção de Haia estabelece em seu artigo 4º alguns requisitos que devem estar presentes na situação concreta para que seja possível sua aplicação.

Primeiramente, ambos os Estados envolvidos no caso devem ser signatários da Convenção, uma vez que somente assim pode-se exigir o seu cumprimento nos dois locais, seja para definir a aplicação do direito a ser utilizado ou para exigir envio do menor.

Como segundo requisito, entende-se que a criança deve ter residência habitual, imediatamente anterior ao sequestro, no Estado requerente. A Convenção, nesse ponto, não fixou critérios para definição do termo “residência habitual”, pelo que se entende aplicável o conceito dado pela lei do Estado requerente. Não há consenso, entretanto, sobre o tempo que caracterizaria a residência habitual no país para onde foi levada a criança, mas, no geral, entende-se que um ano seria um prazo razoável. Não se trata, contudo, de critério temporal fixo, podendo ser avaliado caso a caso. Nesse caso, compete ao juiz averiguar se, de fato, a residência habitual da criança era no país requerente, cabendo analisar provas para sua conclusão.

O terceiro requisito determina a necessidade de violação do direito de guarda ou de visita (de acordo com a lei do país de residência habitual). O pedido deve ser analisado, portanto, de acordo com a legislação sobre guarda e visita do país requerente, não se confundindo com o conceito autônomo que a Convenção estabelece.

Como último requisito, a Convenção estabelece que a idade máxima da criança para aceitação do pedido deve ser de 16 anos completos. A partir dessa idade, portanto, não mais se poderá invocar a aplicação da Convenção de Haia para sequestro internacional de menores.

Segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

Decisão: Trata-se de recurso extraordinário que impugna acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, cujo trecho da transcrevo abaixo na parte que interessa: “(....) Com efeito, o julgado foi claro ao decidir que `o cerne da divergência dos embargos infringentes consiste na fixação de onde seja a residência habitual dos menores a fim de que seja analisada a aplicabilidade ou não da Convenção de Haia. ( ) Assim a Convenção será aplicada quando a criança, antes de atingir a idade de 16 (dezesseis) anos, com residência habitual em um Estado de origem, tiver sido deslocada, de forma ilícita, para outro Estado signatário, tendo a sua aplicabilidade refletida no compromisso assumido entre os Estados contratantes, ou seja, o Estado de residência habitual da criança e o Estado no qual se acha retido ilicitamente a criança os quais se obrigaram a assegurar a devolução da mesma, de forma rápida e eficaz. ( ) Assim o foro competente para o julgamento de questões como a guarda, pedido de visitas é o local de residência habitual dos menores que, no caso, é na Noruega, não cabendo à Justiça brasileira apreciar questão que compete à jurisdição de outro Estado contratante, a teor do que dispõe o artigo 16 da Convenção”. (eDOC 17, p. 101/104) No recurso extraordinário, interposto com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, aponta-se ofensa aos arts. 5º, § 3º; e 227, do texto constitucional. Nas razões recursais, sustenta-se que, “no caso concreto que se traz a exame, a questão é tão delicada que afasta qualquer possibilidade de aplicação fria da Convenção de Haia, pois viola a prioridade da satisfação do bem estar do menor prevista no artigo 227 da Constituição da República, que norteia toda a legislação infraconstitucional sobre os direitos de criança e adolescentes. Há prova nos autos de que o envio dos menores à Noruega representa perigo real ao seu bem estar e ao seu futuro,considerando todo o histórico psicossocial do pai”. (eDOC 18, p. 98). Ademais, alega-se que, “no momento em que o presente recurso foi protocolado, os menores estavam em vias de completar 5 (cinco) anos de residência no Brasil, portanto com uma situação consolidada. Retirá-los do país, a esta altura, seria na prática prejudicial ao seu bem estar, ferindo tanto o que dispõe a Convenção de Haia quanto o que dispõe o artigo 227 da Constituição Federal.”(eDOC 18, p. 104) É o relatório. Decido. Examinando os argumentos trazidos pela recorrente, verifica-se que as questões jurídicas discutidas no recurso extraordinário não ostentam natureza propriamente constitucional e, por conseguinte, não justificam o conhecimento do extraordinário. Cito parte do acórdão recorrido para melhor explicitar: “Inicialmente, impende registar a parte introdutória da Convenção SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO SEQUESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS, assinada em Haia, datada de 25 de outubro de 1980 e internalizada no Direito brasileiro através do Decreto 3413. (...) Assim, a Convenção será aplicada quando a criança, antes de atingir a idade de 16 (dezesseis) anos, com residência habitual em um Estado de origem, tiver sido deslocada, de forma ilícita, para outro Estado signatário tendo a sua aplicabilidade refletida no compromisso assumido entre os Estados contratantes. (....) Compulsando os autos, verifica-se que as duas crianças nasceram na Noruega, em 15 de janeiro de 2000 e 13 de abril de 2002 (fls. 148 e 149) e viveram grande parte de suas vidas lá, vieram ao Brasil e aqui ficaram quatro meses (de agosto a dezembro de 2004), elementos esses insuficientes para a configuração de alteração da natureza de residência habitual, que era na Noruega” (eDOC 17, fls. 5/6) Verifico que o Tribunal a quo decidiu a causa com fundamento na legislação infraconstitucional. Assim, eventual ofensa à Constituição Federal, caso existente, dar-se-ia de maneira indireta ou reflexa, o que inviabiliza o processamento do recurso extraordinário. Demais disso, ressalto que a tese desenvolvida no recurso extraordinário demanda a reanálise da instrução probatória, entretanto o apelo extremo não se presta à revisão dos fatos e provas já analisados pelas instâncias ordinárias. Incide, portanto, o Enunciado 279 da Súmula desta Corte, segundo a qual não cabe recurso extraordinário para simples reexame de prova. Desse modo, não assiste razão à recorrente. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (arts. 21, § 1º, do RISTF e 557 do CPC). Publique-se. Brasília, 6 de fevereiro de 2014.Ministro Gilmar Mendes Relator Documento assinado digitalmente

Por fim, vale ressaltar que o interessado em aplicar a Convenção em pedido endereçado diretamente ao Poder Judiciário brasileiro deve, primeiramente, informar-se acerca da aceitação do Brasil à adesão do Estado requerido aos termos da Convenção.



[1] http://www.stf.jus.br/convencaohaia/cms/verTexto.asp?pagina=conferenciaDireito

[2] Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, disponível em: http://www.hcch.net/upload/text12_pt.pdf