SENTENÇA PARCIALMENTE IMOTIVADA E A COISA JULGADA

1-Introdução.

Versa o presente trabalho acerca da formação e alcance da coisa julgada. Esse tema nasceu a partir de uma dúvida em um caso concreto, qual seja: a decisão judicial que, embora não aprecie determinado pedido na fundamentação e, ao final, em seu dispositivo, julga procedente a demanda, alcança o referido pedido? Ocorrendo o trânsito em julgado da decisão, esse pedido, sobre o qual nada se disse, será acobertado e se tornará imutável?

Para análise da questão, citamos dois acórdãos que, a nosso ver, sintetizam a controvérsia, ou seja, se a questão que não foi analisada pela sentença, pelo simples fato de, formalmente, ter constado do dispositivo como procedência é torna a questão abarcada pela coisa julgada.

COISA JULGADA MATERIAL. ARTIGO 469 I E II DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Possibilidade de, em ação de rescisão de contrato de promessa de compra e venda serem novamente apreciados fatos postos como fundamento da sentença em anterior ação de adjudicação do imóvel objeto da lide. Limites objetivos da coisa julgada, que não abrangem os motivos da decisão, nem a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença. Recurso especial não conhecido.”[1]

 

Processual civil. Mandado de segurança. Alcance da coisa julgada aos fundamentos da sentença. Litispendência. 1. De modo geral, só o dispositivo da sentença e que e objeto de coisa julgada. As vezes, sobretudo quando o autor da ação alicerça suas razões em determinadas premissas legais, a fundamentação acaba por fazer parte integrante do dispositivo, não podendo dele ser separada sob pena de quebra lógica da unidade. 2. E inócuo discutir-se novamente, em outra ação, a mesma causa pretendi, se os sujeitos das ações e os pedidos são exatamente os mesmos. 3. Caracterizada a litispendência, correta e a decisão que extinguiu o processo sem julgamento de mérito. 4. Apelo Improvido.[2]

2-

Coisa Julgada.

aspectos doutrinários e jurisprudenciais

A coisa julgada é o fenômeno que gera a imutabilidade da sentença (ou acórdão) judicial. Ela tem como escopo maior gerar segurança jurídica, estabilizando, definitivamente, os conflitos.

Nos dizeres de Marcus Vínicius Rios Gonçalves, a coisa julgada é fenômeno diretamente associado à segurança jurídica, quando o conflito ou a controvérsia são definitivamente solucionados.[3]

Nery JR define a coisa julgada como: “a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário[4].

Para o festejado Barbosa Moreira, a coisa julgada é a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (CPC 467; LICC 6°, § 3°), nem à remessa necessária do Art. 475 do CPC [5].

O valor “segurança jurídica” é fundamental no Estado Democrático de Direito, ele o pilar principal do ordenamento jurídico. A principal característica desse tipo de Estado é justamente a possibilidade de o jurisdicionado ter ciência das conseqüências jurídicas dos seus atos, o que inclui a definitividade da pacificação dos conflitos, monopolizada pelo Estado.

O professor Cândido Rangel Dinamarco, em apontamento acerca da importância da coisa julgada, dispõe:

A função da coisa julgada tout court é de proporcionar segurança nas relações jurídicas, sabendo-se que a insegurança é gravíssimo fator perverso que prejudica os negócios, o crédito, as relações familiares e, por isso, a felicidade pessoal das pessoas ou grupos... a imutabilidade implica em por um ponto final nos debates e nas dúvidas, oferecendo a solução final destinada a eliminar o conflito ou, a menos, a extinguir os vínculos inerentes à relação processual.[6]

O constituinte de 1988, atento à importância desse fenômeno, alçou a coisa julgada ao patamar de garantia constitucional, em seu artigo 5º, XXXVI, dispôs: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

            O Código de Processo Civil, em seu artigo 467 traz a definição da coisa julgada, descrevendo-a como "a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário".

            A coisa julgada pode projetar seus efeitos tanto dentro como fora do processo. No primeiro caso nos deparamos com a coisa julgada formal, que é a preclusão máxima, ou seja, a impossibilidade de discussão da decisão judicial no processo, seja em razão do não cabimento de recurso, seja pelo fato de a parte ter deixado escorrer in albis os prazos recursais.[7]

No segundo caso temos a coisa julgada material, que é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito[8]. Esse efeito significa que a situação jurídica criada pela sentença de mérito se torna imutável, alcançando as partes, o judiciário e até mesmo o legislador. Este fenômeno é denominado de imunização geral dos efeitos da sentença[9].

Interessante colacionar o entendimento de Barbosa Moreira acerca da eficácia preclusiva da coisa julgada:

“A eficácia preclusiva da coisa julgada manifesta-se no impedimento que surge, com o trânsito em julgado, à discussão e apreciação das questões suscetíveis de influir, por sua solução, no teor do pronunciamento judicial, ainda que não examinadas pelo juiz. Essas questões perdem, por assim dizer, toda a relevância que pudessem ter em relação à matéria julgada”[10]

Outrossim, vale citar aqui que a imutabilidade da sentença não abrange todo o seu conteúdo, mas se limita à sua parte dispositiva, ou seja, não transitam em julgado as razões de decidir (motivação), mas somente a própria decisão (dispositivo). Esse é o ensinamento que se extrai do Art. 469 do CPC, in verbis:

CPC. Art. 469.  Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

Nesse sentido ensina o professor Dinamarco:

Somente o preceito concreto contido na parte dispositiva das sentenças de mérito fica protegido pela autoridade da coisa julgada material, não os fundamentos em que ele se apóia. Essa regra é enunciada por exclusão nos três incisos do Art. 469 do Código de Processo Civil, segundo os quais não fazem coisa julgada os fundamentos postos na motivação da sentença, nem a verdade dos fatos tomada como fundamento da decisão, nem a solução dada incidentalmente a eventuais questões prejudiciais[11].

A jurisprudência pacífica dos nossos tribunais acolhe a tese defendida pelo ilustre doutrinador e aponta que, não obstante o conteúdo da motivação da sentença, a coisa julgada deve sempre ser buscada no dispositivo, vale dizer, o que consta do dispositivo sempre será acobertado pelo manto da coisa julgada. Vejamos:

O Código de Processo Civil, na inteligência do art. 469 e incisos, ressalva que o pálio da coisa julgada abriga somente o dispositivo da sentença que se alvitra executar, ficando, portanto, excluídos dessa proteção os motivos, a verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial porventura existente.[12]

COISA JULGADA MATERIAL. ARTIGO 469 I E II DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Possibilidade de, em ação de rescisão de contrato de promessa de compra e venda serem novamente apreciados fatos postos como fundamento da sentença em anterior ação de adjudicação do imóvel objeto da lide. Limites objetivos da coisa julgada, que não abrangem os motivos da decisão, nem a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença. Recurso especial não conhecido.”[13]

 A motivação da sentença ou premissas que não constituem a lide nem questão incidental, ficam fora dos limites objetivos da coisa julgada.[14]

Há que se ressaltar ainda que a jurisprudência é pacífica no sentido de estabelecer como única delimitação à coisa julgada à existência de pedido e causa pedir correlata:

É cediço que é o dispositivo da sentença que faz coisa julgada material, abarcando o pedido e a causa de pedir, tal qual expressos na petição inicial e adotados na fundamentação do decisum, compondo a res judicata. Esse o posicionamento do STJ, porquanto "A coisa julgada está delimitada pelo pedido e pela causa de pedir apresentados na ação de conhecimento, devendo sua execução se processar nos seus exatos limites"[15]

            Assim, se observa que o fenômeno da coisa julgada torna imutável o dispositivo da sentença e abrange todos os pedidos constantes da petição inicial.

3-

Caso sob análise

O caso sob análise, como já citado, trata acerca da abrangência da coisa julgada na hipótese de não omissão na fundamentação e dispositivo que, de forma genérica, julga procedente a demanda.

Ora, nos termos do entendimento acima, considerando que o ponto de pacificação dos conflitos sobre o qual se opera de fato a imutabilidade, ou seja, a coisa julgada material, protegida pela Carta Política de 1988 por constituir uma garantia, é o dispositivo da sentença, não se pode admitir que seu conteúdo constitua letra morta.

Contudo, para que se opere o trânsito em julgado é necessário que a sentença possua seus requisitos essenciais. A sentença desprovida de fundamentação é nula, uma vez que ofende a regra insculpida no Art. 93, IX da Constituição Federal. Nesse sentido, vale destacar o entendimento de Didier JR, Sarno e Oliveira acerca da sentença desprovida de fundamentação:

“É designar uma decisão sem fundamentação de ilegítima, espúria, absurda, autoritária etc., mas é inegável que ela é uma decisão. A partir do momento que se pode atribuir a um substantivo alguns adjetivos é porque algo existe para ser qualificado.” (DIDIER JR., SARNO, OLIVEIRA, 2010, p. 301).

Há doutrinadores que vão além e atribuem à sentença imotivada o vício de inexistência, o que impediria a formação da coisa julgada:

“Dispositivo ou conclusão é o fecho da sentença. Nele se contém a decisão da causa. Trata-se de 'elemento substancial do julgado', no dizer de Afonso Fraga. A falta acarreta mais do que a nulidade da decisão. Pois sentença sem dispositivo é ato inexistente - deixou de haver sentença'" (Humberto Theodoro Júnior, in Curso de Direito Processual Civil, vol. I; 20ª ed., pág. 509).

Assim, ainda que o dispositivo seja expresso no sentido de acolher integralmente a pretensão, haverá nulidade ou inexistência – dependendo da corrente que se adote - da sentença em relação ao pedido que não foi objeto de fundamentação.

 

Bibliografia

 

DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.  Salvador: Jus Podivm, 2010. v. 2.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4ª ed. Malheiros: 2004

GONÇALVES, Marcus Vínicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. Saraiva: 2011

MOREIRA, Barbosa. Eficácia Preclusiva da Coisa Julgada Material no Sistema do Processo Civil Brasileiro. Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977.

NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 9ª. Ed., São Paulo: RT, 2008.

THEODORO JÚNIOR, Humberto, in Curso de Direito Processual Civil, vol. I; 20ª ed., pág. 509,

WAMBIR, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil V. 1. 10ª ed. Revista dos Tribunais: 2008,

 

Outras fontes

 

Revista do Superior Tribunal de Justiça

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. , REsp 18993/SP. Brasília. Disponível em <http://www.stj.jus.br/SCON/>.

_________________. REsp 18993/SP

_________________. REsp nº 882242/ES

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1º REGIÃO. AMS 24175 DF. Distrito Federal <http://www.trf1.jus.br>.



[1] STJ, REsp 18993/SP, 4ª Turma, j. 16/1/1992, DJU 30/11/1992, v.u.

[2] TRF1 - AMS 24175 DF 89.01.24175-7 – 3ª Turma - Rel. Adhemar Maciel

[3] Direito Processual Civil Esquematizado. Saraiva: 2011, p. 425

[4] NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 9ª. Ed., São Paulo: RT, 2008, comentário ao Art. 467

[5] Eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 100.

[6] Instituições de Direito Processual Civil. 4ª ed. Malheiros: 2004, p. 296

[7] Wambir, Luiz Rodrigues;Talamini, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil V. 1. 10ª ed. Revista dos Tribunais: 2008, p. 566

[8] Dinamarco, Candido Rangel. Ob. Cit., p. 301

[9] passim

[10] Ob. Cit. p. 103

[11] Instituições de Direito Processual Civil. 4ª ed. Malheiros: 2004, p. 313

[12] RSTJ 107/399

[13] STJ, REsp 18993/SP, 4ª Turma, Rel. Athos Gusmão Carneiro. v.u.

[14] RSTJ 42/263

[15] STJ, REsp nº 882242/ES, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 01.06.2009