Sempre aos domingos

 

         Acordo sentindo o perfume preferido de papai. Ele serve de gatilho para lembranças vividas

 

         Domingo sempre foi dia de churrasco para minha família. Já era tradição. A compra da carne cabia a mim. Quando eu podia dormir mais um pouco, tinha ir ao açougue de um amigo de meu pai. Sabia que não deveria ter pressa, pois eles demoravam a chegar. Até que passando a preguiça de levantar eu terminava me animando, pois iria comprar um pedaço da minha carne predileta: o vazio.

         A variedade de carnes era grande, porque os gostos eram diferenciados. Comprava costela, salsichão, coração, picanha, costela de porco e claro, não podia falar o vazio.

         Desde o início, as churrascadas de domingo eram na casa de meus pais, com quem eu e meus três irmãos bem mais velhos moravam. A família era muito grande. Vários tios e tias de ambos os lados, primos e ainda agregados, os amigos da família.

As reuniões serviam para conversas fúteis. Todos sabiam que os sentimentos ali se mesclavam. Eram mágoas, raivas reprimidas, dissimulações, como também amor manifestado em carinhos, abraços e beijos. Eu fazia o papel de observadora, avessa a falsidades que sentia existir em muitos dos presentes. Falavam mal um do outro, nunca na frente, mas em tom de fofoca e maledicências. Eu não suportava isso. Dirigia-me em direção à mesa para saborear meu vazio. Naquele momento era a pessoa mais feliz do mundo.

Depois, voltava ao meu papel de observadora. Via só formalidades e rituais. Num canto da churrasqueira, escondidos, graças à ramagem de árvores, meus dois primos, que também o eram entre si, trocavam carícias. Não se expunham por terem receio da reação da família, pelo parentesco. Notava também meus dois tios paternos que se odiavam, mas nos churrascos de domingo, pareciam ótimos amigos. Muitas vezes as discussões fervilhavam, mas tinham que terminar em acertos, pois segundo minha mãe, aquelas reuniões eram para comemorar a vida. Todos bem e com saúde.

 

Hoje é domingo, dia de churrasco familiar. Tenho de levantar mais cedo para comprar a carne. Quando chego à frente do  açougueiro, peço só vazio. Retorno para casa.

Coloco a carne no espeto, direto para a churrasqueira. Vou devagar. Eles demoram a chegar, como é de hábito. Arrumo a mesa com a melhor louça e os mais novos talheres. Mesmo sendo churrasco, uma mesa fina fazia parte da tradição.

Volto para ver minha carne. Está no ponto de ser saboreada. Sinto-me cansado.  Sento-me na cadeira do papai, que ainda tem o perfume dele e devoro o vazio.

        

Themis