Quando a campanha eleitoral começava na tevê a vida de Circe virava de perna pro ar. Tudo em razão de ter sido escolhida para mesária já na primeira eleição da qual participou. Até pensava em aderir a um partido qualquer, só para fugir do compromisso, mas Ademar era contra, já que a concentração de homens, que pudessem azarar sua esposa, é maior nesses comícios e encontros partidários. Por essa razão preferia vê-la levantar cedo no domingo a distribuir panfletos pelas ruas.

 

Aquele dia não foi diferente. Um gole de café preto, meio morno, bebido às pressas, duas bananas e um sanduíche para o almoço, mais uma garrafa térmica com suco de maracujá. O Ademar fazia gemer o motor do Opalão azul, a Circe, ainda cambaleando de sono acomodava, no berço, a menina, que dormindo aguardava o retorno do pai. Ia contrariada, cansada de fazer o que não gostava, do jeito que não queria. Casou porque tava barriguda, senão tivesse, não teria casado com o primeiro homem que lhe apareceu na vida, mas fazer o quê? Tinha mais era que se acostumar e guardar as queixas para lavar junto à louça da janta.

 

Estalou um beijo no beiço largo do Ademar, disse que ia ligar de um orelhão assim que terminasse tudo, ele olhou sério para ela, comentou que levaria a menina para a casa da mãe dele, Circe, sabida de sua predestinação tinha a certeza de que Ademar ia botar mulher pra dentro de casa, como fazia, isso segundo a vizinhança. Baixou a cabeça.

Ele:

– Vou beber um trago com o Gordo – limpando a garganta – almoço na mãe, depois venho com a Bruna te pegar.

 

Desceu, o colégio eleitoral ficava numa zona afastada do centro. Lá estava o zelador, calçando alpargatas e um boné. Passou rente a ele sem dar ao menos “Bom dia”, pois tinha certeza de que o marido a espiava, então preferia passar a grosseira que levar uma bordoada ao pé do ouvido. Ademar ficava muito violento por conta do ciúme, mais porque a Circe era uma mulher bonita.

 

Subiu até a sala, as outras pessoas, uma moça risonha e de cabelos encaracolados e um jovem com grossas lentes já estavam a postos, dessa vez cumprimentou-os com um tímido “oi”, imaginando que possivelmente o marido pudesse ter dado um “chega-pra-lá” no zelador e a seguido. Sentou-se na cadeira do meio, como sempre ditava os números para o rapaz computar na maquininha. Reparou que, desde a última eleição o casal estava mudado, a moça havia tingido os cabelos de loiro e ele estava noivo. Quanto a ela, era impossível saber que, nesse intervalo de dois anos, tivesse tido nenê, demais a mais Ademar a obrigava a usar a aliança na mão esquerda mesmo quando recém começavam a namorar.

– Isso é pra impor respeito – enfiando o anel, que apertava e a fazia premer os olhos – tu já tem dono.

Sentia-se como uma cadela ou outra fêmea qualquer, a qual pode-se meter uma coleira com o nome e endereço de seu proprietário.

Como o movimento ainda fosse pouco o casal pôs-se a conversar, ela continuava firme, retida a lembranças, o jeito como o Ademar a abordou depois daquela festa:

– A boneca quer dançar? – dependurado num copo de cerveja: – tão bonita – resvalando os dedos porosos nas suas bochechas.

– Cai fora , já tenho par. Nisso grudou-se ao primo Evandro, que desavisado com o tamanho do oponente gritou:

– Te liga meu, a mina não é pro teu bico.

A Circe até tentou apartar, houve confusão e, não é que o Ademar deu uma coça no coitado do Evandro, que estava ali só para acompanhar as primas que a mãe insistia em desencalhar. Uma saiu sozinha, a outra enamorada pelo Ademar, que depois do efeito do álcool arrependeu-se e levou o ferido até o hospital, deixando, depois, as moçoilas em casa.

– Vamos votar – sugeriu a moça loira.

Os outros dois acordaram. Circe ditava, o rapaz, Odair, lembrou ela, passava os dados para a maquininha enquanto a loira ia para detrás da cabine. Revezaram-se, quando chegou a vez dela o rapaz exclamou:

– Circe – e rindo – nunca iríamos acertar – justificou – estávamos apostando qual era teu nome, achei que fosse com “A” ela chutou no “J”.

– Não lembrávamos – corrigiu a loira – eu sou a Daiane – quebrando o gelo.

– Eu sei, na última eleição teu cabelo era castanho – e menos séria – e o Odair não havia noivado.

O rapaz ficou sem graça. A moça calou-se. Circe baixou os olhos, sentiu-se indiscreta. Nisso uma pessoa apareceu, cumpriram os procedimentos, veio mais outra e outra, a coisa toda começou a ficar tumultuada. Igual ficou sua cabeça quando o Ademar apareceu novamente à porta da casa, queria e muito falar com ela, trouxe um buquê de flores ordinárias, às quais estendeu à mãe da Circe, a velha, comovida tratou de chamar a filha:

– O moço, aquele que te trouxe ta na sala – a velha olhando com desprezo para a moça, ordenou: – vê se dá um jeito nessa cara, marido hoje ta em falta!

 

A Circe foi. Uma flor no cabelo, um vestido de cetim, bastante pintura e a sandália, presente de quinze que a madrinha deu. O Ademar ficou empertigado, teve que disfarçar a reviravolta que acontecia dentro das suas calças. Circe estava linda, apertou as mãos dela, frias como cubos de gelo, pediu desculpas. Conversaram, riram, convidou-a para sair, pediu permissão para a mãe que não foi contra. A Circe foi se acostumando com ele, foi gostando da companhia, foi cedendo, cedendo até que ele sugeriu:

– Queria te levar para um lugar mais calmo.

O Odair disse que tudo bem, que não se importava com a observação dela, a Daiane, ajeitou-se na cadeira, lançou o corpo para frente:

– Tu casa quando?

– Antes do nenê nascer – sério – a coisa ta indo muito depressa – corando.

– Tu engravidou a guria? – gracejou a loira.

– Se ela diz que é meu...é meu – deu de ombros. O rapaz era o tipo que não atrai muito o mulherio, pouca musculatura, miopia aguda, mas por dentro, tinha algo que faltava ao Ademar e, que a Circe não sabia ao certo o quê era.

– Eu também casei grávida – disse.

Os dois voltaram a atenção para ela, mas vinha um senhor que precisava ser ajudado em sua cadeira de rodas.

– Minha princesa, a gente casa e fica tudo bem – agarrando-a pela cintura, não precisa ter medo de mim – e beijando-a no pescoço – tu vai gostar.

Uma, duas, na terceira vez pegou barriga. Ficou assustada o Ademar dizia que era muito natural a menstruação da mulher atrasar, mudou de idéia quando o ventre dela começou a aparecer. Prometeu uma casinha num bairro nobre e depois tinha trabalho fixo na metalúrgica, ela podia largar o colégio e ficava tudo certo.

– É uma barra – desabafou o rapaz – eu recém ingressei na faculdade e vou ter que largar.

– Faculdade de quê? – Daiane.

– Administração.

– Ah...eu to cursando Pedagogia, segundo semestre.

– Fazer o quê – conformado – fiz cagada...agora danou-se.

A Circe, pensativa quis participar da conversa, mas sem saber por onde começar:

– É complicado, já sabe se é menino ou menina?

 

Outra pessoa entrava. Calaram-se, lá fora começou a formar-se uma extensa fila. Os três só conseguiram reatar a conversa meia hora depois.

 

Conforme se passavam os meses o Ademar ia mudando. Primeiro foi o descaso para com as promessas, a casa tinha três cômodos, quarto, cozinha e um banheiro com azulejos descolando, numa vila distante do centro, prometeu reforma, mas o dinheiro foi curto. Acomodou-se e não largou o hábito da bebida, o sagrado aperitivo depois do serviço. E o pior é que exigia disposição da Circe, ainda que o hálito dele lhe causasse náusea. Ademar passou a rechaçá-la porque Circe, como toda gestante, estava engordando, então aliviada trazia a certeza de que o dinheiro da reforma alimentava uma ou duas putas que atendiam, melhor que ninguém, as vontades do marido.

 

– É um menino – gabou-se.

– E como vai se chamar – interpelou a loira.

– Não sei – desconversando – Talvez Fladson, Júnior...

A Circe criou coragem, extraiu uma fotografia da bolsa, nela estavam ela, o Ademar e a filha:

– A minha se chama Bruna e tem um aninho e dois meses.

Novamente a Daiane:

– Ai que gracinha – e apontando a mão de unhas bem feitas – esse deve ser o maridão...

– É – assentiu, estendendo o retrato para Odair que se deteve na escrita da camiseta do Ademar: “ Não cobiçar a mulher do próximo - Quando o próximo estiver próximo”, a Circe percebeu e emendou:

– Foi no dia do aniversário dele, os amigos deram de presente.

– Legal – disse o rapazola.

– Acho Júnior muito feio – interpelou a Daiane – Odair Júnior...éca...parece nome de cantor brega.

 

Todos riram, a Circe sentiu-se feliz, de alma lavada, como dizem, há tempo não conseguia gargalhar discreto e gostoso, sem os olhos do Ademar vigiando.Nova fila. Recompuseram-se. Enquanto os eleitores revezavam-se na cabine, ela torcia pelo segundo turno.