SÃO AS PESSOAS TRAFICADAS O CENTRO DA NOSSA AÇAO OU O MOTIVO DE NOS MOVIMENTARMOS?[1]

 

Org.Estela Márcia Rondina Scandola

[email protected]

p/ Organizações Brasileiras - GAATW[2]

www.gaatw.org

 

         A pergunta central que poderíamos nos fazer é se no centro do nosso trabalho estão as pessoas traficadas ou, mais cotidianamente em nosso trabalho, poderíamos localizar onde estão essas pessoas nas nossas organizações e nos serviços de políticas públicas.

Considerar as pessoas como o centro do nosso trabalho significa reconhece-las como seres históricos, detentoras de direitos, sobretudo capazes de tomar decisões.

As vítimas do tráfico de pessoas, em geral, são apenas um elemento do processo penal. A sociedade, majoritariamente penalizadora, em que pese as garantias constitucionais e das convenções internacionais, a cada dia tem recrudescido na busca de penalizaçao de um violador. Esta visão binária, violador e vítima, encobre a responsabilização coletiva e complexa da situação de tráfico e diminui nossa capacidade de efetivamente enfrentar essa barbárie. Somente ouvindo atentamente as pessoas será possível compreender o conjunto de responsabilidades sejam elas coletivas ou individuais que as sujeitaram às situações de violência, insegurança, tráfico.

A condição de vítima transformada pelos processos penais, não reconhece direitos às pessoas, especialmente de participar do processo de decisão sobre sua vida. Na maioria das vezes, é apenas mais um elemento de uma pasta de documentos que segue pelos tribunais ou ainda e, no caso do atendimento, segue de serviço em serviço por meio dos encaminhamentos. Os serviços públicos padronizados em conceitos e procedimentos se contrapõem exatamente às necessidades de cidadãos autônomos. A cidadania torna-se um empecilho diante dos critérios de atenção e regras de funcionamento do Estado.

Estar em situação de tráfico de pessoas, não significa que as mulheres são seres vulneráveis. Significa que vivenciam as contradições do viver  com vulnerabilidades e fortalezas e, podem suplantar as vulnerabilidades quando tem suas fortalezas potencializadas que lhes permita participar decisivamente sobre a condução de suas vidas.

Poderíamos dizer, então, que as regras da sociedade hegemônica fazem com que muitas organizações enfrentando o tráfico de pessoas tenham este tema como o motivo de suas existências, no entanto sem ter as pessoas no centro da sua ação.

Organizações da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres - GAATW tentam um caminho diferente, centralizando suas ações na pessoa.

Ao revisitarmos várias de nossas experiências, percebemos que o atendimento às pessoas em situação de tráfico é uma porta de entrada para que componham conosco um aprendizado permanente de como enfrentar esse desrespeito aos direitos humanos. As pessoas que passaram por uma situação de tráfico têm o que ensinar e aprender e é nessa troca que vamos construindo uma ação mais consistente para o enfrentamento.

As “vítimas de tráfico de pessoas” são fundamentais para compreender os diferentes processos do seu viver que foram conformando um conjunto de determinantes e condicionantes que lhe imputou estar em situação de tráfico de pessoas.

         O acolhimento por meio de uma abordagem que leve em consideração o querer das pessoas em situação de tráfico é um importante primeiro passo. A escuta ativa, o respeito aos sentimentos, o atendimento das necessidades emergenciais, a proteção da sua vida e o não julgamento são elementos que vão determinar nossa continuidade da relação com as sujeitas ou vão finalizar o atendimento, a construção ou não de vínculos. O momento inicial da atenção vai determinar os caminhos que iremos percorrer: juntos ou separados; sujeitos ou objetos do nosso trabalho; pacientes ou cidadãos das políticas públicas.

         Escutar uma mulher no aeroporto, numa boite ou numa oficina de costura, em todos os lugares, o mesmo desafio: o caminho a partir do encontro de cidadãos.

No processo jurídico, uma grande quantidade de papéis falando das circunstâncias criminais, as mulheres podem compor a fala dos direitos das vítimas, se consideradas como centrais na garantia dos direitos. Isso inclui aquelas que injustamente compõem a lista de acusadas ou consideradas coniventes de crimes e, por ação das políticas públicas, como as polícias, tiveram suas vidas arrasadas e comprometidas publicamente.

Na defesa jurídica, considerar as pessoas em situação de tráfico como sujeitas, pode alargar o pensamento jurídico penalizante em direção à responsabilização ampla, incluindo agressor, Estado e sociedade. A pessoa traficada exercendo seus direitos civis, trabalhistas e penais é um exemplo de autonomia, resistência e reivindicação em que a vítima toma para si um papel ativo de autor na esfera jurídica.

Nesta possibilidade das vítimas jurídicas se tornarem cidadãs de direitos,  será possível denunciar a trama institucional excludente, machista, criminalizadora da pobreza e da sexualidade liberta.

No trabalho educativo, a radicalização necessária do método de educação popular, não há lugar para um saber acadêmico que se sobrepõe ao saber de quem vivenciou uma situação de tráfico. Envolver pessoas        nas nossas organizações que viveram situações de violência nas suas vidas, parece aos nossos olhos, uma ação da rotina. Porém, para o conjunto da sociedade pode parecer a desqualificação da equipe, o perigo de não ser sério o trabalho. Manter essa nossa posição parece ainda um grande desafio se considerarmos o corolário de pré-conceitos que pairam sobre as pessoas em situação de violência que, na maioria das vezes, passam de vítimas a culpadas.

Na incidência política, considerar a participação das pessoas que são partícipes destes mesmos direitos no nosso trabalho, confere a estas o nosso reconhecimento que necessitamos deixar de ser intermediários nas conquistas de direitos. Mais que isso, significa apostar na participação de organizações importantes como dos migrantes, das trabalhadoras sexuais, dos movimentos raciais, dos movimentos de mulheres, de crianças, dos povos indígenas.

Neste desenho, o protagonismo do enfrentamento ao tráfico de pessoas não estaria centrado apenas nas organizações da sociedade civil, mas no conjunto dos movimentos que fazem o contraponto das ideologias dominantes. As organizações colocando-se a serviço de potencializar os movimentos e o trabalho em rede para a atenção às pessoas em situação de tráfico como porta de entrada para a as redes de luta e brilho da cidadania.

Por fim, se estamos considerando então que são as vítimas (juridicamente falando), sujeitas cidadãs que tem potencialidades para construção das nossas histórias coletivas, o eixo pesquisa, presente em praticamente todas as nossas organizações, só tem razão de ser se levar em conta que o método é fundamental e precisa considerar os sujeitos sociais.

As sujeitas da pesquisa não podem ser um item da formalidade dos projetos de pesquisa, mas o rol de pesquisadoras. Pesquisa-ação, pesquisa participante constituem-se em desafios e formas de transformação dos sujeitos de pesquisa em sujeitos na pesquisa. É transpor o conhecimento acadêmico para um conhecimento que brota da realidade vivida, pensada e organizada para dispor aos demais da sociedade.

São suas experiências de vida que constroem novas bases de conhecimento sobre a realidade do tráfico de pessoas que, por vezes a academia, tão repleta de regras e métodos, não consegue apreender o real porque lhe escapam os códigos encarnados na complexidade dos direitos violados e os significados e significâncias que só são possíveis de serem apreendidos por quem os domina com a própria história.

 Não se trata, desta forma, de pautar a nossa ação no aprofundamento do fosso entre o que temos de políticas públicas e seu distanciamento das pessoas em situação de tráfico, mas construir pontes e atalhos que permitam que encontros possam ser estimulados. Mas, fundamental e definitivamente, que nenhuma política possa continuar sendo feita sem que os destinatários dela sejam o centro do processo de construção participativo.

O nosso papel de sociedade civil,  de estar sempre a frente do que está sendo viabilizado pelos Estados Nacionais, pela capacidade criadora, de denúncia e de pressão, nos permite sonhar que outro mundo é possível, necessário e, em algumas poucas ilhas de cidadania, já está sendo vivenciado.

A Convenção contra o Crime Organizado e seus protocolos, entre estes, o Protocolo contra o Tráfico de Pessoas (Protocolo de Palermo) é a marca legal internacional que orienta as políticas públicas na maioria dos países. Tanto nacional, quanto internacionalmente, o seu conteúdo e implementação precisam de controle a partir da sociedade civil.  Neste controle, com a participação das pessoas em situação de tráfico, reside o nosso desafio neste momento em que se avalia e monitora a ação dos Estados-parte e das organizações multilaterais para  implementar suas determinações e compromissos assumidos.

Entre as diferentes possibilidades que temos de construir um monitoramento do Protocolo, sem dúvida, a primeira, é torna-lo conhecido às pessoas e às organizações de base. Atualmente sabemos que há uma sociedade civil global que participa das atividades das diferentes instâncias da ONU. No entanto, milhares de pequenas organizações que estão fora dessa inclusão globalizada sequer têm conhecimento da existência ou das possibilidades de utilização do Protocolo de Palermo como instrumento de garantia de direitos a vítimas do tráfico de pessoas.

Definir mecanismos de monitoramento do Protocolo de Palermo com enfoque nas pessoas em situação de tráfico, significa ouvi-las em todas as instâncias dos processos de consulta, sobretudo envolve-las em processos de avaliação que considere as diferentes falas dos Estados-partes em toda a sua complexidade: governos, organizações da  sociedade civil, incluindo aí a oitiva direta das pessoas e procedimentos que consigam confrontar discursos contraditórios tão necessários na avaliação de políticas públicas.

Para a definição de mecanismos de monitoramento e implementação do  Protocolo de Palermo é necessária a definição de papéis, processos e, o mais importante, metas que comprometam os diferentes segmentos sociais para que o monitoramento não seja apenas de documentos mas considere a vida das pessoas, os impactos que sofreram com as medidas anti-tráfico e as ações que foram implementadas pelas políticas públicas.

É importante que o monitoramento incorpore a participação autônoma das organizações da sociedade civil, considerando, inclusive que, em muitos países, isso pode significar retaliações contra essas mesmas organizações. O monitoramento pode e deve ser um momento de avanço no olhar sobre a nossa realidade e no re-desenho de políticas e ações que incorporem a garantia dos direitos humanos como o marco do enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Em todos os processos, há que se considerar que é na ação dos países que vão se configurar as diferentes instâncias de participação da sociedade. Os procedimentos internacionais e nacionais devem estar alinhados nos mesmos princípios consignados pelos avanços democráticos conquistados pela sociedade.

Salvador (Bahia, Brasil), abril de 2010.

 



[1] Documento apresentado no 12º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal, em Salvador – Ba, abril de 2010, sobre o posicionamento da GAATW Brasil na revisão do protocolo no que se refere à atenção às pessoas em situação de tráfico.

[2] Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres / Rede Latinoamericana e Caribenha da GAATW  tem o  capítulo Brasileiro composto pelas seguintes organizações: ASBRAD, CHAME, COLETIVO LEILA DINIZ, CONSÓRCIO TRAMA, IBISS-CO, SDDH, SODIREITOS e SMM.