Não é exclusividade dos Haouka a utilização de rituais como reflexo da sociedade e para solucionar questões sociais. Para os Ndembu, estudados por Victor Turner em "Floresta dos símbolos", as doenças devem ser entendidas em um quadro de referências que é público ou social. As doenças são ações punitivas das sombras por, entre outros motivos, problemas nas relações interpessoais. Para resolver o problema, há um "ritual de aflição", através do qual o curandeiro extrai do corpo do paciente um ihamba, um dente que está causando o mal à pessoa. Faz parte do ritual a admoestação do curandeiro para que as pessoas exponham seus ressentimentos, inclusive o paciente, com intuito de resolvê-las e afastar dessa forma a doença.
Para o autor, os curandeiros acreditam sinceramente que sua terapia tem uma eficácia positiva."De qualquer forma, eles são bastante conscientes dos benefícios dos seus procedimentos para as relações do grupo, e não medem esforços para ter certeza de que explicitaram as principais fontes de hostilidade latente existentes no grupo." (Turner, 2005, p. 458)
Os rituais têm como objetivo sanar principalmente questões de ordem social causada pela penetração da economia monetarizada junto com um acelerado ritmo de migração que criam novas necessidades econômicas e novas tensões. Assim como o ritual dos Haouka, "o Ihamba pode, assim, ser visto como parte de uma ação defensiva por meio da qual a cultura (...) está lutando contra a mudança." (Turner, 2005, p. 456)
"Como existem muitos cultos e como os símbolos focais de cada um deles se referem a crenças e valores básicos compartilhados por todos os Ndembu, pode ser dito que o sistema total dos cultos de aflição mantém vivo, através da sua constante repetição, o sentimento de unidade tribal." (TURNER, 2005, p. 452)
O ritual é, em ambas as sociedades, uma ferramenta de coesão. "O indivíduo doente exposto a esse processo é reintegrado no seu grupo, assim como, passo a passo, os membros deste são reconciliados uns com os outros em circunstâncias emocionalmente carregadas." (TURNER, 2005, p. 487)
Outra sociedade em que o ritual tem papel essencial é a dos Azande, estudada por Evans-Pritchard em "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande" (2004-2005), na qual os elementos místicos têm um papel importantíssimo, porque são racionais- "A bruxaria, os oráculos e a magia formam um sistema intelectualmente coerente. Cada elemento explica e prova os demais." (E. Evans-Pritchard, 2005, p. 254)- e, acima de tudo, porque refletem estruturas sociais.
A bruxaria e a feitiçaria explicam praticamente todo infortúnio que acontece na vida dos indivíduos, desde o que chamamos de coincidência a doenças e mortes. Para fazer e desfazer a bruxaria e a feitiçaria, os Azande contam com diversos mecanismos, tais como oráculos, adivinhos, mágicos, ritos, alguns com utilização de drogas, intermediários responsáveis por intervir na situação, enfim, todo um aparato "legal" com intuito de que os conflitos sejam resolvidos sem maiores prejuízos.
Os oráculos, a bruxaria e a magia entre os Azande, de acordo com Márcio Martins dos Santos, na interpretação de Evans-Pritchard, são crenças cuja função primordial é garantir a continuidade do funcionamento adequado da sociedade:
"A crença na bruxaria é um valioso corretivo contra impulsos não caridosos, porque uma demonstração de mau humor, mesquinharia ou hostilidade pode acarretar sérias conseqüências. Como os Azande não sabem quem é ou não é bruxo, partem do princípio de que todos os seus vizinhos podem sê-lo, e assim cuidam de não os ofender à toa" (p. 81, E. EVANS-PRITCHARD, 2004).
Outro momento do texto em que isso fica claro é visível a partir da citação:
"As chances de uma ação violenta por parte de parentes do enfermo são minimizadas pela rotina característica do procedimento, pois, sendo modos de agir estabelecidos e com valor normativo, as pessoas pensam, salvo raramente, em agir de outro modo." (E.Evans-Pritchard, 2005, p. 82, 83)
Os rituais também têm um papel de cura, seja de problemas físicos ou metafísicos. Por exemplo, no caso dos Haouka, o homem que se dizia impotente deixou de sê-lo após o ritual. Assim como os demais castigados têm seus "pecados expiados" através da cerimônia. O ritual Ndembu, bem como o Azande, trata de doenças com sintomas físicos que são supostamente causados por "doenças" nas relações.
Segundo Márcio Martins dos Santos, o "idioma místico" explica e soluciona praticamente todos os conflitos que surgem entre os Azande. Por isso, "talvez seja possível dizer que a bruxaria tem como uma de suas principais "funções" atuar como "força conservadora", lidando com as tensões de forma a garantir a manutenção e o equilíbrio na estrutura social." (Santos, Márcio Martins dos) Quiçá seja possível ir além e afirmar que o "idioma místico" explica e soluciona conflitos não apenas entre os Zande, mas também entre os Haouka, os Ndembu, entre outros povos e que muitos rituais- cada um em suas particularidades e dimensões (por exemplo, os Haouka são apenas uma parte da população Accra)- e não apenas a bruxaria, tem essa "função" de lidar com as tensões para garantir a manutenção e o equilíbrio social.
Em suma, fica evidenciado através dessa breve análise do filme "Os mestres loucos", que os rituais não são apenas crenças. Ao contrário, são extremamente racionais: são formas que o povo encontra de expressar o contexto em que se inserem, o que pensam ou sentem sobre ele e funcionam, muitas vezes, como "remédios" para os problemas de integração com o meio.

Bibliografia:
E. Evans-Pritchard. "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
E. Evans-Pritchard. "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande". Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Turner, Victor. "Um curandeiro Ndembu e sua prática" In: Floresta dos Símbolos. Niterói: Editora UFF, 2005.
Sites:
"Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande", por SANTOS, Márcio Martins dos em: http://antropologia.com.br/res/res27_1.htm Consultado em nove de junho de 2010.
A outra face do espelho. Jean Rouch e o "outro", por COSTA, Ricardo em:
http://www.bocc.uff.br/pag/costa-ricardo-jean-rouch.pdf Consultado em oito de junho de 2010.