RITO, PODER E SACRIFÍCIOS NO MUNDO ANTIGO

 

Kaique Vieira Nunes*

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Resumo: Considerações a respeito dos sacrifícios em honra aos deuses e suas implicações político-religiosas na sociedade antiga, tendo como objeto de inferências as preces e ritos apresentados pelo aedo na epopéia grega Ilíada. Também buscar compreender o sentido dos sacrifícios descritos no poema.

Palavras-chave: Sacrifício, Poder, Ilíada.

1.  NO MUNDO ANTIGO

 

As sociedades antigas apresentam uma relação peculiar com os deuses, que se dá de forma intensa e constante durante toda experiência histórica religiosa que se tem notícia, constituindo as mitologias que formaram o pensamento antigo. Essa idéia de aproximação do homem com o divino está presente em diversos povos e de distintas formas, dando assim uma identidade cultural própria de um povo em determinada época.

As particularidades na forma de se entender e se dirigir aos deuses, podem ser observada quando coloca-se em aproximação as formas das preces e orações que o antigo egípcio[1] fazia à certa divindade, com as súplicas e sacrifícios apresentados na Ilíada. Leva-se em conta também, que o Panteão de deuses da Grécia é distinto do conjunto quase infinito de deuses do Antigo Egito, o que torna ainda mais únicas as representações e compreensão da realidade desses povos. Entretanto, percebe-se também proximidades entre tais culturas. Uma delas é que ambas são sociedades com imaginário ritual no que diz respeito à forma de experimentar o mundo e as relações que vivenciaram no coletivo. As súplicas e ritos fazem parte desse mundo antigo, e aparecem em todos os cantos da poesia, o que denota a relação íntima e às vezes direta dos mortais com os divinos, que também “interagem” de maneira providencial em alguns casos e têm o poder de influenciar nas decisões dos homens

Na epopéia homérica, os ritos são realizados tanto do lado aqueu quanto do lado troiano, o que indica a possível proximidade cultural entre os mesmos e também como os mitos foram compartilhados entre esses povos. Mesmo em guerra e com a cidade sitiada pelos gregos, o respeito aos rituais é mantido por ambos que, de forma sociável, se reúnem para firmarem um pacto perante Zeus e os outros imortais. Essa consideração ao olhar divino, e que caracteriza essa época, nos mostra que essa sociedade tinha um pensamento religioso que se fazia presente e ativo tanto no convívio social quanto no político.

2. PODER RITUAL

Ainda no sentido de sociedade ritual, as preces, as súplicas e os sacrifícios são parte fundamental do conjunto de práticas que formaram esse imaginário mitológico e fantástico que é apresentado no poema de Homero. Alguns desses ritos são lembrados de forma breve pelo aedo, enquanto outros mais significativos são detalhados na descrição do poeta, que ao pedir às Musas que cantem a cólera de Aquiles, está também realizando um ritual, uma prece à uma divindade pedindo para que possa escutá-la e lhe seja dada a capacidade de contar tal história.

Canta-me a cólera –ó deusa– funesta de Aquileu Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos

e esclarecidos ficando eles próprios aos cães atirados como pasto das aves.[2]

É certo que os gregos dessa época tinham uma relação muito íntima com seus mitos e suas tradições, e essa compreensão da realidade de forma mística acaba por tornar a política e a religião dois aspectos conjuntos do poder atribuído a determinado monarca. Com algumas variações de atributos (além da variação temporal, cultural e geográfica) a concepção que se observa no Egito Antigo a respeito do faraó e o domínio da política e da religião com uma unidade entre ambos, se assemelham com as formas na qual o Rei líder grego obtém sua majestade, que se dá por conta de alguma eventual relação com o divino, seja de antepassados (hereditária) ou do próprio regente em questão. Assim, essas relações que eram contadas por meios de histórias (mitos), serviam para legitimar a soberania e o direito de unir, dar início ou continuidade à determinada dinastia ou reinado.

Os vestígios desse pensamento chegaram ainda posteriormente à Idade Média em outros moldes e com interesses diversos principalmente da Cristandade, onde temos exemplo dessa união entre poder político-religioso na figura dos reis absolutistas, que alegavam que seus reinados emanavam da vontade de Deus.

3. OS SACRIFICIOS NA ILÍADA

Quem sacrifícios a um deus; quem a um outro perfeitos fazia

a suplicarem que de Ares sangrento e da Morte o salvassem.

O próprio Atrida Agamémnon chefe prestante uma vítima

sacrificou de cinco anos ao filho de Cronos tortuoso[3].

É possível perceber várias formas de sacrifícios em honra aos deuses na obra de Homero, que são acompanhados por preces e súplicas dirigidas diretamente a divindade que se pretende fazer ouvir. Ao passo que o poeta nos revela a resposta dos Imortais aos pedidos feitos, pode-se observar então que esses deuses têm interesses diversos, e por vezes aceitam as oferendas mas não se comprometem em atender ao suplicante. Isso ocorre talvez, para validar os eventos que viriam a seguir nos cantos da epopéia narrada pelo aedo “que sabe o que vai dizer do começo ao fim”. [4]

Com bolos sacros nas mãos ao redor do animal se postaram.

Súplice a voz levantou Agamémnon rei poderoso:

“Máximo Zeus poderoso que no éter as nuvens cumulas

dá que não desça o Sol fúlgido nem sobre nós venha a Noite

sem que eu atire por terra a cumeeira de Príamo escura

pela fuligem e às chamas ardentes as portas entregue;

sem que do peito de Héctor rasgue a túnica brônzea com minha

lança e em redor dele os sócios também veja todos de bruços

uns sobre os outros na areia amontoados mordendo o chão duro.”

Por esse modo implorava; mas Zeus não lhe atende o pedido:

o sacrifício aceitou mas trabalhos sem conta lhe apresta.[5]

Certamente uma proximidade cultural entre os aqueus e o povo de Ilíon se encontra de forma nítida na devoção aos deuses que têm em comum, que se expressa na poesia através das hecatombes, as preces e as formas de se relacionarem com os divinos. Ao mesmo tempo, a preferência dos deuses por um e não outro devoto conota o caráter independente dos imortais para com a Guerra de Tróia e seus envolvidos, que não sabem de fato se esses deuses estão a favor ou contra suas causas, mas mesmo assim fazem as oferendas para honrá-los e a fim de obter o “favoritismo” na pugna que se desdobra.

Os sacrifícios de animais estão presentes em diversas culturas e são praticados por motivos distintos e com significados próprios engendrados ao imaginário dos participantes dos rituais. No mundo grego antigo, esses sacrifícios além dos pressupostos religiosos, tinham uma função política, ainda arcaica, que definia e equilibrava as relações entre os homens e deuses. Tal rito direcionado às Potências divinas se fazia necessário nesse mundo onde “o culto os honra em razão da extrema superioridade do estatuto deles” (Vernant, 2009 p. 9).

Na poesia homérica, especificamente na rapsódia III, onde é feito um acordo entre gregos e troianos para decidirem as “cláusulas” do combate entre o herói Menelau e Páris, o momento que dá legitimidade a tal pacto, é exatamente o sacrifício feito para honrar a trégua, sob a Justiça e Soberania que Zeus detém em si. Assim, é selado um acordo político em meio à guerra, com a égide dos deuses para tornar-se válido.

Presto um cordeiro trazei para o Sol de cor branca e uma ovelha

preta também para a Terra; que a Zeus um terceiro daremos.

A majestade de Príamo desça também para as juras

solenizar; que os seus filhos soberbos não são de confiança.

Não venha alguém com perjúrios destruir o que Zeus prometer-nos.[6]

Na sequência do Canto, se inicia o ritual de sacrifício dos cordeiros e a prece de Agamemnon dirigida a Zeus, Helio, Rios e Terra, que são segundo o Atrida, testemunhas do que está sendo proposto e as condições a serem acatadas ao final do duelo entre os heróis. A linguagem ainda que arcaica, nos revela as formas na qual o discurso de Agamemnon representa a relação do mesmo (sendo o regente consagrado) com os deuses. Chama atenção para além do cunho religioso, o caráter político-jurídico da “oração” feita pelo Rei de Micenas no momento da oferenda.

Zeus pai que no Ida demoras senhor poderoso e supremo;

Hélio que tudo divisas e todas as coisas escutas;

Rios e Terra também e vós outros ó deuses de baixo

que castigais nas moradas subtérreas os homens perjuros;

280 vós testemunhas nos sede e fiadores dos votos sagrados:

Se a Menelau conseguir Aléxandros matar na contenda

dono de Helena há-de ser e de todas as suas riquezas

enquanto nós cruzaremos de novo nas naves as ondas.

Se o louro Atrida porém da existência privar a Aléxandros

presto nos dêem os Troianos Helena assim como as riquezas

sobre se verem forçados a multa pagar aos Argivos

porque a memória do feito entre as gentes vindouras se estenda[7].

4. DESONRA AOS DEUSES E PUNIÇÃO

Os eventos narrados na epopéia de Homero nos remetem a um tempo mitológico onde os deuses eram ativos na guerra, na vida cotidiana, nas disputas pelo poder e demais relações que se davam no corpo social das cidades, que honravam os imortais com intuito de agradar e por vezes aplacar sua Potência diante dos homens. No entanto, nem sempre homens e divindades se relacionavam de forma cordial. As histórias gregas apresentam situações em que a soberania dos reis se propõe ser maior que a divina, e isso acabada desencadeando vários eventos em que os deuses “castigam” o monarca, a cidade e seus residentes de forma a provar seu valor perante os mortais que lhes faltaram com as devidas honras. Nota-se então, que nesse mundo antigo, além das relações de poder de homem para homem, há uma relação de homem para divindade, que quando não respeitada torna-se um problema de ordem religiosa e política, já que os Reis entram em desacordo com as divindades e assim desequilibram o andamento de todos os processos da Cidade.

No caso da Tragédia Grega, posterior à poesia homérica, As bacantes de Eurípedes é um exemplo de como essa concepção dos antigos a respeito da relação de desonra à divindade que resulta em verdadeiras punições aos desrespeitosos se torna tão presente nessa sociedade grega. E isso foi utilizado como uma forma de  tentar manter o mito vivo na sociedade grega. Tendo Dionísio como deus desonrado por Penteu, rei da cidade de Tebas, As bacantes se trata do “castigo” que sofre o monarca por não aceitar Baco e seus festejos em sua cidade.

Cadmo, idoso já, o poder absoluto

a Penteu, de uma filha gerado, entregou;

este comigo luta e das libações

me repele, e, nas preces, de mim não tem memória.

Por isso, a ele e a todos os Tebanos

Mostrarei que nasci deus. [8]

Voltando à Ilíada, o último canto da poesia continua a revelar a fundamental importância dada aos sacrifícios e demais ritos em oblação aos divinos, característica desse Mundo Antigo.

Quando a dozena manhã no horizonte raiou matutina

para os eternos Apolo se vira e lhes diz o seguinte:

“Sois todos cruéis destrutores eternos! Héctor por acaso

nunca vos fez sacrifícios de bois e de ovelhas vistosas? [9]

Por fim, depois de todo o desfecho heróico da batalha entre Aquiles e Heitor e o desrespeito do Pelida para com o cadáver do líder troiano, é exatamente o fato de que Heitor “era de todos os homens de Tróia o mais caro aos eternos”[10] pois nunca faltava com as ofertas, libações e honras devidas segundo Zeus, que faz o Pai dos deuses pedir à Tétis para que convencesse Aquiles a devolver o corpo do herói ao velho Príamo. Entretanto, para que isso ocorra, Príamo deveria levar um tesouro para o aqueu e assim selar um pagamento pela devolução e também garantir a não-violência e honra no momento em que o Rei vai suplicar pelo corpo do filho. Contudo, os deuses fazem com que se suceda politicamente uma resolução “diplomática” do caso, e tendo êxito, o corpo de Heitor retorna à Ilíon para ter as devidas honras funerárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A honra aos deuses com libações, sacrifícios, preces e oferendas são características fundamentais da antiga Grécia, e que fortaleciam o imaginário dando validade social às mitologias que fizeram parte da experiência desse povo no tempo. Pode-se dizer que os ritos praticados pelos gregos, assim como as histórias transmitidas oralmente e posteriormente na forma escrita, eram formas de manter as tradições e costumes que marcam a identidade cultural dessa sociedade, de modo que a relação humano-divino se torna icônica nesse mundo onde tudo parece obedecer a “vontade dos deuses”. No poema homérico fica claro o modo se dá essa relação e as formas como são interpretadas por seus personagens e pelo aedo, que também está ligado ao divino – às Musas, e faz de si um canal entre os dois mundos.

REFERÊNCIAS

 

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1969.

VIDAL-NAQUET, Pierre, O Mundo de Homero, São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angelica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

TRAUNECKER, Claude. Os deuses do Egito. Brasília, UnB, 1992.

EURÍPEDES. As Bacantes.

VALBELLE, Dominique. ‘ O artesão’ In DONADONI, Sérigio (org). O Homem Egípcio. Lisboa, Presença, 1991. pp. 37-58.



*Acadêmico do curso de História da universidade Estadual de Goiás.

[1] TRAUNECKER, Claude. Os deuses do Egito. Brasília, UnB, 1992.

[2] Ilíada, I, 1-5

[3] Ilíada, II, 400-403

[4] Naquet, Vidal. Mundo de Homero. P. 19

[5] Ilíada, II, 410-420

[6] Ilíada, III, 103-107

[7] Ilíada, III, 276-287

[8] As bacantes, Eurípedes.

[9] Ilíada, XXIV, 31-34

[10] Ilíada, XXIV, 67