Rio de vida

 

De estrada.

Deu-nos de beber. Deu-nos de comer.

Viu-nos crescer, aprender a nadar, mergulhar e dar cangapé em meio aos banzeiros de suas águas.

Viu-nos ser gente.

Rio de glórias, de histórias.

Rio de memórias...

Sabe ele que sou filho de Chagas Sabino e de Dona Bita.

De família de muitos irmãos, consangüíneos e de coração.

Papai não comprava mesa de refeição em loja, sempre as fazia de tábuas boas para caber todos ao seu redor, bem acomodados em bancos coletivos, feitos de tábuas de primeira, bem aplainadas. Mesmo assim, muitas vezes tinha que repetir a mesa para alimentar todo mundo. Cada refeição era uma festa. Minha mãe comandava tudo, pacientemente, carinhosamente, num tempo em que empregado virava parente.

Meu pai era Arenista juramentado. Quando a turma do MDB assumiu o poder no Acre, fomos para Manaus, de caminhão até Boca do Acre, onde esbarramos e fixamos residência, atraídos pela fartura de peixes, na foz do Rio Acre, num belíssimo espetáculo da natureza no encontro das águas dos Rios Acre e Purus. Nesse tempo não existia fogão a gás e nem água encanada. O fogão era à lenha e a água era do Rio Acre, posto que a água do Rio Purus, apesar de mais limpa era salobra. Nunca me esqueço dos arrojos das piracemas de tambaquis, filhotes, dourados, capararis, surubins, jundiás, maparás, cuiú-cuiús, mandis, pacus, saunas, branquinhas, sardinhas, matrinxãs, curimatãs e tantas outras espécies, nadando rápidos para se livrarem dos ataques dos botos, das redes de arrastão e das malhadeiras que os cercavam.

Às margens dos rios enfileiravam-se as casas de esteios altos, cumeeiras de duas águas e avarandadas. A privada era um buraco cavado no chão sobre o qual era construída uma casinha tosca de tábuas de segunda com cobertura de folhas de alumínio para proteger os cagões... Ali, só se cagava. Pra tomar banho tinha que descer o porto, pois o banheiro era uma casinha flutuante, ancorada à margem do rio. No assoalho do chão do banheiro tinha uma abertura, espécie de janela central, onde as mulheres tomavam banho e lavavam roupas, cercando-se de todos os cuidados para não serem vítimas de candirus. Muitos preferiam tomar banho a céu aberto, nadando e brincando na parte mais rasa do rio. Alguns mais afoitos se aventuravam mais pro meio do rio, usando braços e pernas como nadadeiras em movimentos sincronizados, recheados de cangapés. 

Certa noite faltou água nos camburões da cozinha e papai ordenou que dois dos meus irmãos fossem buscar água no rio. O Raul então pegou o cambão e as latas e o Chaguinha o farol e rumaram ao rio.

Subiam a ladeira de volta quando de repente ouviram o grito “olha a alma”! O Chaguinha velozmente rodou o farol e o abarcou na alma... O Raul livrou-se arteiramente das latas e os dois correram pra casa assustados.

Gagos e trêmulos tentavam contar ao pai sobre o ataque da alma, quando o Expedito, outro dos meus irmãos, entrou chorando casa à dentro todo ensanguentado e com um cheiro forte de querosene...

Ao vê-lo naquele estado, todos se olharam e o papai, até então disciplinador consagrado, riu e nos fez rir da situação daquela “alma penada”...

Daquela noite em diante aprendi que os mortos não metem medo.

Muitos anos já me foram acrescentados, parte deles vividos afastado do rio. Hoje fui ao Mercado Novo e aproveitei pra ir à beira do rio onde ficam ancorados os batelões e as canoas dos ribeirinhos.  Parei e fiquei a olhar o vai-e-vem dos colonos e dos estivadores. Depois olhei para o rio... E vi que o rio não estava bem... A sua água turva e a corredeira fraca me deram um calafrio na espinha... A poucos metros dali dava pra ver e sentir o cheiro nauseabundo do esgoto sanitário in natura nele diariamente despejado pelo “Parque da Maternidade”.

Esse despejamento está matando o rio.

Encharcados de ingratidão, seguimos fingindo que não vemos o martírio do rio...

As almas dos parentes e amigos mortos devem estar mergulhadas em profunda tristeza, agoniadas pelas agressões covardes que nós, os vivos, estamos perpetrando ao rio que nos banha e mata a nossa sede.