RESENHA DE LEITURA DA SEGUINTE OBRA:

COMTE-SPONVILLE, André. A filosofia. Tradução de Joana Mello. São Paulo: Martins Fontes, 2005, 126p.

COMEÇANDO

Em minha visão, trata-se de uma das melhores obras introdutórias ao estudo da filosofia escrita nos últimos anos. Pelo menos, daquelas que se tem disponível em língua portuguesa brasileira.  Comte-Sponville é um professor de filosofia da nova geração francesa, muito culto. Foi professor universitário, mas largou o ofício de cátedra para dedicar-se a palestras, a cursos e à escrita.

DO TEXTO

As primeiras 25 páginas da obra são de uma envergadura filosófica considerável. Nelas, o autor desfila todo seu conhecimento em busca de uma definição do que seja Filosofia. Mesmo sendo um texto escrito para iniciantes, sua linguagem não é simples nem fácil. Inicia com a pergunta sobre o que é filosofia e como surge, ou seja, que tipo de escrito é, afinal de contas, a filosofia. O autor, depois de desfazer várias expressões colhidas do senso comum, com as quais, evidentemente, não concorda, compara a filosofia à literatura ou à um tipo de literatura. Mas inclui nessa literatura Sócrates como “Mestre dos Mestres” (p. 09), acrescentando ainda as seguintes palavras “[...] não se valia de nenhum saber positivo que lhe fosse próprio, e não escreveu nenhum livro: não era nem um douto nem um escritor” (p. 09). Nesse, nosso autor diz que a filosofia surge então como “pensamento linguageiro” (id. ibid), como palavra pensante, como logos. Nesse caso, pensamento e linguagem são logos, na visão de nosso autor. Em seguida põe-se a mostrar que a filosofia, embora seja um tipo de literatura, não é nem poesia e nem história. Conforme nos relata, seria Aristóteles (p. 11) que teria estabelecido esta diferença fundamental. Já nas partes introdutórias, o autor passa com fluência e erudição por Kant, Hegel, Nietzsche, Bergson, Agostinho, dando preferência aos “Os Ensaios”, a principal obra de Montaigne, conforme páginas 11-16. Sobre Montaigne, aliás, é bom que se frise, Comte-Sponville tem verdadeira admiração. No texto inteiro, como é fácil constatar, esse autor renascentista é de longe o mais citado e comentado. O que chega a ser uma particularidade, uma opção bem pessoal de André Comte-Sponville. Pois, Montaigne nunca figurou entre os grandes a admirados pensadores da tradição, mesmo sendo um escritor brilhante.    Se pensarmos bem, Sartre, Nietzsche, Hegel, Kant, Rousseau deram pouca importância a ele. Mas por quê? Não sei dizer. Como toda filosofia está ancorada em motivos, pode ser que os motivos que levaram os modernos e contemporâneos a escrever não estavam em Montaigne. A meu ver, trata-se de um princípio que está em André Comte-Sponville mesmo. Ele é cético ou então um agnóstico. Todo obra dá esse tom. Também Epicuro é sempre lembrado, como o grande Mestre. A meu ver então, o autor (Sponville) é um materialista, um imanentista, típico do ateísmo moderno.

A filosofia não é ciência. Não se alia com ela, mas também não se opõe a ela. Também não é religião e muito menos um crença dogmática. Desse modo “[...] em filosofia tudo é incerto, inclusive o fato de que tudo seja incerto” (p. 17). Nessas primeiras linhas, digo, nas primeiras 20 e poucas páginas um mosaico completo de autores é apresentado além dos que acima já mencionamos. O autor é hábil na escrita em relacionar a cada tema, cada frincha, cada ideia um autor. Nesse sentido, Hume, Pascal, Montaigne, Descartes, Nietzsche, Kant, Fichte, Hegel, Schelling, Husserl, Heidegger, Althusser, Leibniz, Espinosa surgem com naturalidade pela enorme erudição e pela versatilidade com que Comte-Sponville consegue relacionar Sócrates, Epicuro, Sêneca a Heidegger e Descartes, só por exemplo. A meu ver, não se trata de um comentário de história da filosofia tradicional, e sim de uma obra, embora curta, pouco mais de 120 páginas, que reúne um mosaico completo e erudito sobre filosofia e as ciências de modo geral. Não só nessa obra, mas também em outras, Comte-Sponville tem despontado como um dos mais promissores escritores de filosofia das gerações pós-guerra. A capacidade de reunir vários e diferentes autores sobre uma cronologia histórica da filosofia tem não só a intenção de retratar aspectos da trajetória que assim se considera “histórica”, mas apresentar a sua arte, ou seja, produzir filosofia, isto é, ter a capacidade de oferecer aos leitores uma interpretação é ímpar. Nesse sentido, nosso autor, passeia por Nietzsche e Pascal com interpretações muito próprias. Ele está bem consciente disso quando escreve, por exemplo, as seguintes palavras “Toda filosofia pode designar-se adequadamente por um nome próprio, que é o de seu criador. Nenhuma ciência pode fazer isso, ou mesmo nenhuma teoria científica, a não ser por abuso de linguagem ou sob um ponto de vista histórico” (p. 18).

O Autor põe-se a discutir o que seria uma definição adequada de filosofia. Flerta com várias definições mas as considera inadequadas. Filosofia não é nem poesia, nem literatura, nem ciência, nem religião, nem misticismo, nem positivismo, nem “prática teórica não-científica” (p. 20). Todas as definições se relacionam com ela, mas nenhuma delas dá conta do sentido da Filos+Sofia, da etimologia que reúne Amizade ao Saber. O autor, conscientemente, nos oferece não uma resposta categórica, porém nos mostra que o erro está em querer dizer o que é filosofia sem dizer o que é matemática, o que é ciência, o que é literatura, o que é poesia, o que é justiça, o que é o ser humano? Também ninguém responde a essas questões de modo técnico. Ninguém tem respostas totalmente objetivas que respondam a esses termos com exatidão. Comte-Sponville, assim, não sai da pergunta que formula de modo positivo, mas tão somente aponta que a pergunta está em princípio mal feita. Por que temos de responder “o que é filosofia?” se com outros saberes isso não ocorre? Aqui está a intenção do autor, ou seja, mostrar que a filosofia está consciente do perigo que a ronda e ao mesmo tempo mostrar que a pergunta “o que é filosofia?” procede do senso comum que pressupõe estejam as outras questões já respondidas. Pois, a filosofia, em si outra coisa não é que a incerteza do próprio pensamento.

 

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

O capítulo I, A FILOSOFIA E SUA HISTÓRIA, (páginas 25-72) seguem um esquema tradicional em termos cronológicos. Todavia, os ingredientes apresentados vêm recheados de percepções filosóficas muito próprias do autor. Como é óbvio, não é possível resenhar sem resumir e escolher. Primeiramente peguemos uma pequena passagem em que o autor se pergunta a respeito do seja, enfim, “história da filosofia?”. E conclui, se é que se pode chamar isso de conclusão, que uma possível história da filosofia não é nem história de verdades e nem histórias de conhecimentos (p. 26-27). A meu ver, aqui vale uma bem conhecida frase, muito conhecida entre estudiosos de filosofia: “não há história da filosofia sem fazer já com essa história, filosofia”. Isso significa, a filosofia pode ter uma trajetória histórica, mas o que seja “o histórico” fica melhor explicitado se tomado em sentido filosófico. Foi com isso que Heidegger tanto lutou. A história é um problema. Se por história se entende um “ente”, um algo positivamente dado, uma interpretação “objetivante”, então a história é ciência, e como ciência não pode e nunca pôde prescindir da filosofia por ser ela a “ciência dos entes”, como Aristóteles a definiu. A metafísica é história ou a história pressupõe a metafísica? O historicismo, via de regra, ou ignora ou considera essa questão irrelevante. Comte-Sponville não. E nem poderia. Ela é a mais elementar questão da filosofia.  Daí que Comte-Sponville pode concluir sobre isso o seguinte: “[...] não conhecimentos propriamente filosóficos. Desse modo ela é sem progresso, tanto quanto é sem certeza” (p. 27). Daí que a história da filosofia nunca é a história de uma verdade assim aceita, mas tão somente a verdade do intérprete de cada autor ou situação. Cada pensador atual ao interpretar Aristóteles ou kant, por exemplo, lerá o que a eles parece ser a “verdade” de tais autores (p. 28-30). Isso não é óbvio não. Do ponto de vista normativo da ciência e da história, a questão é bem menos subjetiva. A história das ciências olha para o passado ao passo que a da filosofia, para o presente e futuro (conforme p. 31). Foi por isso que afirmei, já considerando que Comte-Sponville parte deste pressuposto também, que não há História da Filosofia sem Filosofar.

 

CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS FILOSÓFICAS

De acordo com nosso autor, é equivocado associar Kant a Copérnico, conforme aquela paródia sempre repetida nos manuais de filosofia, segundo a qual Kant faz no século XVIII com a filosofia o mesmo que Copérnico fizera com a física no século XVI, ou seja, colocar o sujeito no centro. Conforme Comte-Sponville, Kant recoloca o Sujeito depois que Copérnico o expulsou de lá (p. 60). Também não é correto associar Kant ao ceticismo científico. Pessoalmente, nunca achei Kant, cético. Nem entendo como Comte-Sponville chega a questionar isso. Creio que seja pelo suposto fim da Metafísica, segundo a qual, conforme Kant, às ciências cabe tão somente os problemas descritivos que se encaixam no A priori e no A posteriori, não podendo elas resolver questões religiosas ou éticas. Nesse sentido, Kant, para Comte-Sponville, é um platônico no sentido de que as coisas têm dois graus. Um dependente dos sentidos e da percepção e outro que só diz respeito às formas racionais que não se encaixam na experiência empírica. Hegel é alguém que quis colocar o mundo na sua cabeça (p. 62). Hegel é uma espécie de profeta, alguém que pensou ter fundado a nova Trindade (p. 63). Se a própria história é Deus, Hegel pensou tê-la apreendido em seu sistema dialético. Percebe-se que o autor faz seus comentários com certa ironia. Para Hegel, razão é história e história e razão (p. 63). Mas não fica claro se Sponville concorda com isso. Aparentemente não, mas reconhece que o sistema hegeliano é de uma profundidade e de uma dificuldade inesgotável, nas quais é inclusive difícil de respirar (p. 63-64).

Para Comte-Sponville, “a vida é não é um sistema, e sim uma aventura” (p. 65). Nesse caso, está contra Pascal. Pascal lhe soa religioso demais. Há uma tendência em rejeitar os problemas religiosos como pouco pertinentes ou então desqualificá-los com ironia. Desse modo, Kierkegaard e Pascal são religiosos demais, dogmáticos demais e, quem sabe, filósofos de menos. Se assim for, pelo menos nesse aspecto, aqui encontro-me em franca discordância com André Comte-Sponville. Mas ele também sabe que é “[...] a fé, e não o humor, que salva” (p. 66). Nietzsche é “[...] fascinante e perigoso [...] gênio multiforme, o maior sofista dos tempos modernos” (p. 67). Nietzsche é gênio, iconoclasta e trágico. Um filósofo de marteladas, alguém que não queria morrer por verdades. Um dionisíaco, um grande brincalhão que fez da tragédia de sua vida pessoal uma filosofia bombástica e zombeteira. Comte-Sponville vê Nietzsche como alguém que amava mais a vida que a felicidade (p. 67). Em Nietzsche, a felicidade só pode surgir como liberdade de quem se libertou primeiro de si mesmo.

Marx quis colocar Hegel em pé. É o social que determina a consciência das pessoas. Marx é materialista. É economista; não é filósofo (p. 68). Se para Marx, naquela também conhecida frase “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, mas o que importa é transformá-lo”, para Comte-Sponville a conclusão é bem irônica: “a maioria dos filósofos marxistas, contudo, preferirá interpretar Marx” (p. 68). Também nessas aporias surge a pergunta se Freud é filósofo. Ele próprio, conforme nosso autor, nunca pretendeu isso. Na página 70, Comte-Sponville observa que seus comentários orientam-se pela filosofia continental. Do século XVVII em diante, a filosofia europeia divide-se em peninsular (britânica) e continental. Hume, Locke, Bacon, Hobbes vinculam-se à filosofia peninsular, mais ligada ao empirismo.

CAPÍTULO II: CORRENTES

Trata-se uma abordagem rica em análises, detalhada, mas que comentaremos apenas em parte. O autor, ainda que se utilize de vários autores, faz um apanhado com o qual pretende apontar os rumos da filosofia atual. Em sua visão, duas questões tornaram-se viscerais: a ciência a ética. Começa com Kant (p. 73) e termina  no biologismo de Darwin, na cosmologia de Copérnico e na psicologia de Freud. Todas elas, humilhantes para nós (p. 112). As ciências viram na metafísica nada mais e nada menos que coisas improváveis e inverificáveis. Tal é o caso do filósofos de Viena, como Popper, por exemplo. Seguindo Comte, proclamarão apenas a lógica expressas nas proposições científicas  e nas possibilidades da linguagem (p. 76-77). Questão pertinente será apresentada na página 80 e seguintes em que o autor considera o materialismo e o imanentismo não um problema de ateísmo, mas apenas uma comparação errada diante das religiões transcendentais. Marx e Epicuro não eram ateus, conforme escreve. A neurobiologia só transformou o ser humano em um animal como outro qualquer. Mas como pode ela cobrar provas da filosofia se também não prova nada? (p. 81). Em suas páginas finais, Comte-Sponville percorre questões morais e éticas que abordam os problemas vindos dos estoicos e epicureus até os contemporâneos como Deleuze. E assim escreve: “A moral nos foi legada pela humanidade, como o cerne da civilização e o contrário da barbárie. Ela precisa menos de um fundamento do que de nossa fidelidade” (p. 95). E conclui seu texto voltando à sabedoria (sofia) e à amizade (filein). Desse modo, “a filosofia é um trabalho que ninguém pode fazer em nosso lugar – e que ninguém, mesmo por sua própria conta, pode concluir” (p. 118). A sabedoria seria o alvo e a filosofia o caminho. E aqui cabem as brilhantes palavras: “Se fôssemos sábios, não mais precisaríamos filosofar. Mas, se fôssemos completamente loucos ou completamente ignorantes, não poderíamos fazê-lo” (p. 119).

Toda paginação citada na resenha que ora apresento, diz respeito à edição acima citada.

É provável que isso tenha ocorrido porque Montaigne seja claramente um imanentista, um materialista. Como a filosofia que o sucedeu inclinou-se pelo idealismo, pelo menos essa é minha sugestão, Montaigne ficou em segundo plano. A mim, não sei o quanto estou correto, Comte-Sponville alinha-se a Montaigne justamente porque o idealismo filosófico, aquele que transparece mais claramente em Kant, Hegel, Fichte, por exemplo, não o convence.

Não sem razão escreveu outra obra denominada “O espírito do ateísmo moderno”, e que será resenhado por mim também.

Sua obra mais conhecida e comentada é certamente “Pequeno tratado das grandes virtudes”. No Brasil ela saiu pela Editora Martins Fontes, de São Paulo.

Conforme páginas 23 e 24.

Essa parece ser a única definição mais ou menos objetiva que o autor oferece, conforme página 17.

Não podemos no alongar em conceitos heideggerianos agora. Uma análise que considero bem sucedida sobre isso encontra-se em BORNHEIM, Gerd. Metafísica e finitude. São Paulo: Perspectiva, 2001, páginas 177-231.

Foi isso que levou seu compatriota e colaborador, Luc Ferry, considerar André Comte-Sponville ou um agnóstico ou um budista não-confesso. Ver FERRY, O homem-deus: ou o sentido da vida. Tradução Jorge Bastos. 3ª edição. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.