WERNER LEBER

COMENTÁRIO DO LIVRO I (CAPÍTULO PRIMEIRO) DE A ÉTICA A NICÔMACO DE ARISTÓTELES [1]

Aristóteles nos informa que toda atividade humana tende a um fim e que esse fim visa sempre a um grau de bem, ou Emprego e até Perícia, como dizem alguns comentadores. A felicidade (eudaimonia) é o bem supremo que pode ser obtido através da ação humana (1095a18), e essa seria, em suma, o objetivo geral da ética.[2]  Mas observa Aristóteles, “[...] a maioria das pessoas parece estar completamente escravizada a preferir uma vida de animais de pasto”(ARISTÓTELES, 2009, p 19). A Felicidade é uma certa atividade da alma de acordo com uma excelência completa (1102a5). Veremos adiante que essa excelência tem a ver com ser “bem-sucedido; dar-se bem”. Estudo das excelências apresentam formas (1102a6). Formas de excelência: do caráter do Homem (éticas); do pensamento teórico (dianoéticas) (1103a5). O fim que se busca na ética não é buscado em vista de outro, mas em vista de si mesmo (1097a15 – 1097b1) “na verdade, simplesmente completo é aquele é aquele fim que é sempre escolhido segundo si próprio e nunca como meio em vista de qualquer outro. Um fim desse gênero parece ser, em absoluto, a felicidade.[3] Há uma função tipicamente para o Humano (1098a1)? Se há, como ela seria ou que ela seria? Aristóteles pondera que os pés, as mãos, os olhos cumprem funções. Aristóteles se pergunta se tal poderia também ser aplicado ao que se denomina “humano”. Chega então à conclusão de que no “humano” há algo como uma vida ativa que é inerente à dimensão da alma, e que ele, considera “capacitante de razão” (op. cit., p. 27).[4] E Aristóteles insistirá que essa “capacitante de razão” dá-se em dois sentidos: a) obediência a uma orientação (bom senso; equilíbrio; prudência); b) compreensão. São essas as duas dimensões da alma (Psiché). Alma não é espiritualidade (como cultivar uma religião, por exemplo), mas atividade humana, a lucidez e a existência que transcorre. Daí que os bens, as atividades, que respeitam a alma são de excelência maior e mais completa, mais autêntica. Mas são as ações que se ligam ao que se chama alma, que Aristóteles considera “felicidade”.

A felicidade é objeto de aprendizagem, habituação, disciplina, acaso ou destino divino? Qual é a resposta de Aristóteles? Assim diz ele: “É melhor que a felicidade dependa de uma certa aprendizagem que da sorte ou acaso. Confiar o sublime e o excelente ao acaso, é absurdo” (op. cit., p. 31). É por isso que, conforme Aristóteles, nem o boi e nem o cavalo, podem, nesse sentido, ser felizes.[5] E as crianças são felizes? O que nos diz o estagirita? E os mortos são felizes? Aristóteles não diz que sim....nem que não. Argumenta que não sabemos. Como entender essa frase: “Uma pessoa verdadeiramente boa é reta como um quadrado”?[6] Todavia, dá a entender que as pessoas que corretamente usam sua razão são felizes.

O louvor (o elogio). O louvor é uma coisa excelente, mas não é a felicidade que se busca. Não é a realização daquilo que se considera agir bem. Louvar grandes ações, louvar a justiça ou o justo, pode ser um ato nobre, um ato de quem está praticando coisas boas, úteis. Mas a felicidade não se prende ao louvor. Na tradução portuguesa, o tradutor prefere o termo “incapacitante de razão”. Do que se trata, afinal? Os animais não conseguem refletir sobre suas ações e nem as modificar porque estão presos à sua natureza. Não possuem transcendentalidade, e por isso, mesmo não dotados de senso ético e não podem aprender o que seria “agir bem” e fazer o que é racionalmente justo. O que Aristóteles denomina “incapacitante de razão” se refere a esse aspecto. Mas também ao fato de que o ser humano não tem um domínio completo de sua razão. Felicidade não é um objeto, mas uma atividade mental, uma contemplação racional, uma especulação metafísica.[7]

Seria a racionalidade então como ação, como virtude, como consciência, a tal “atividade da alma” e uma outra questão presente na alma seria como que “irracional”? Teria a alma essa duplicidade? Aristóteles não é claro nesse aspecto. Sugere que a “alma” seja dupla, uma parte que conhecemos e outra que poder ser apenas intuída, já que não a podemos acessá-la empiricamente. Não conhecemos, em si, o que seria alma. Pressupomos a razão como realização da alma (excelência, virtude). Como também não sabemos se os mortos são felizes ou não, ou se são acometidos pelas afecções vivenciais (dor, inveja, prazer, ódio, amor). Aristóteles nos diz que há uma incapacidade na alma que não se relaciona “racionalmente” com a razão. Pleonasminho legal né!!! Ele dá o exemplo da planta – função vital e nutritiva responsável pelo crescimento. Seria em nós então algo como os instintos, a natureza? Os organismos vivos servem-se de uma lógica, de um princípio vital que, nos humanos, é responsável pela alimentação, pelo crescimento. Mas tal dimensão existe em todos os seres vivos. Entretanto, nos humanos, existem as forças contrárias, aquelas que nos levam a afastarmo-nos do que seria a excelência. Também isso Aristóteles considera “incapacitante de razão”. Portanto, entre animais e humanos, a uma diferença fundamental no que diz respeito a esse assunto. A tal “incapacitante de razão” - termo utilizado pelo tradutor António de Castro Caeiro - se apresenta de modo duplo nos humanos: eles possuem a “incapacitante de razão natural” e aquela que advém das sensações (o que nos arrasta e nos afasta da Eudaimonia; da excelência), enquanto nos animais só a primeira é verificada (p. 38-39). Quero ainda acrescentar algumas considerações que o comentador  Barnes (2005) apresenta sobre o entendimento da vida prática de Aristóteles. Conforme esse autor, Aristóteles pensa em termos estatais ou coletivos. A sua ética se preocuparia com a “excelência” que seria como que uma função estatal ou coletiva, visto que o ser humano é um animal social (como ele diz em A POLÍTCA) e também um “animal político”, posto que só se realiza na Polis. Assim, ética seria pensada em termos de “como bem proceder em termos racionais” (frónesis= prudência). Ou como agir com equilíbrio (prudência) para dar-se bem (para ser bem sucedido). Mas o que é isso, afinal? Segundo a visão de Aristóteles, a ética tem uma relação direta com a política. O Bem que se busca, e que seria o fim da ética (o Sumo Bem ou a Excelência), encontra-se naquilo que chama-se Eudaimonia (felicidade). Mas não felicidade em termos modernos e sim de dedicação e realização. Como escreve o comentador: “[...] Sua principal tese na Ética não é que a felicidade consiste em atividade intelectual, mas que a atividade intelectual excelente constitui para os homens o sucesso ou a realização. Os gigantes intelectuais da história talvez não tenham sido todos felizes, mas foram pessoas bem-sucedidas – todos eles se realizaram e alcançaram a Eudaimonia”. (BARNES, 2005, p. 125-126). Como ficou dito, Aristóteles pensa em termos coletivos e o Bem ou Excelência - agir bem - não deixa de estar situado no âmbito do Coletivo ou da Polis (Estado). A Ética é uma ciência que visa a delinear as condições de felicidade geral da Polis. No mundo antigo ainda não havia a ideia de individualidade – o indivíduo como instância política -, com, por exemplo, CPF, Registro de Nascimento e Título de Propriedade. Essa é uma concepção iluminista e liberal moderna. Nada disso existia no tempo de Aristóteles. Pelo menos não com os objetivos que atualmente conhecemos. Felicidade pode ser também entendido como “boa vida” dedicada à coletividade, ou seja, ao viver em sociedade. Assim como as famílias precisam de uma boa vida – uma vida regida intelectualmente pela prudência e pela virtude (areté), assim também o Estado (a Polis) é a soma das virtudes e prudências das pessoas que visam a um Estado (Polis) de excelência ou autossuficiência.[8]  Senão, vejamos o que nos diz Aristóteles sobre isso: “o bem que cada um obtém e conserva para si é suficiente para dar a si por satisfeito; mas o bem que um povo e os Estados obtêm e conservam é mais belo e mais próximo do que é divino”.[9] E, finalmente, Aristóteles conclui que a ética é uma ciência contemplativa sobre e para a felicidade. Todavia, lembremos, felicidade, nesse caso, é sempre o Bem da Polis e do bom uso racional. E não felicidade como fruição, extravasamento festivo, nos moldes individualistas atuais. Esse tipo de felicidade, como já falou-se acima, Aristóteles considerava atitude de animal de pasto.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro I, páginas 17-39.

BARNES, Jonathan. Aristóteles. Tradução de A. Sobral e M. S. Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2005, páginas 123-130. (Coleção: Mestres do Pensar).

 

[1] O que segue não é uma exegese, mas apenas um escopo, um retalho, uma consideração sobre alguns aspectos do texto visando a contribuir para o entendimento da prova de filosofia do vestibular da UFPR, de modo especial, mas também a outros vestibulares que demandam entendimentos filosóficos.

[2] Conforme a seguinte referência: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro I, páginas 17-39. Há outras traduções, mas meu escopo refere-se à paginação desta tradução. Citações de páginas, quando não estão diretamente referidas por notas explícitas, dizem respeito ao texto desta versão.

[3] Op. cit., p. 26.

[4] No texto da Coleção “Os Pensadores” não se usa essa expressão. Naquela tradução (que eu não consultei para escrever esse comentário) utiliza-se a expressão  “função”; “atividade” “precisão”, conforme páginas 56-57 da Coleção “Os Pensadores”, da tradução de Gerd Bornheim e Leonel Vallandro, de 1984.  

[5] ARISTÓTELES, op. cit, p. 32

[6] Id., ibid., p. 33

[7] É interessante como Aristóteles, nesse aspecto, aproxima-se de Platão. Mesmo que tenha discordado de seu mestre em vários aspectos, no que diz respeito ao tipo de ser que é seria a ética, ele acaba por assumir os ideais da razão – as formas – que herdou e Aristóteles.

[8] A “boa vida”, que é a Meta do Estado, se identifica com a EUDAIMONIA, que é a meta dos indivíduos” BARNES, op. cit., p. 127-128.

[9] ARISTÓTELES, Ética...op. cit., p. 18.