SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte burguesa: Qu’est-ce que Le Tiers Ètat? 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

 

 

Emmanuel Sieyès propõe um plano de trabalho muito simples, segundo suas convicções, em que se deve responder a três perguntas: O que é o Terceiro Estado? Tudo; o que ele tem sido até agora, na ordem política? Nada; e o que ele pede? Ser alguma coisa.

Segundo o autor, somente o Terceiro Estado poderia ser considerado uma Nação. Pois, as outras ordens – clero e nobreza – seriam uma espécie de parasita; visto que o necessário para que uma Nação subsista e prospere são os trabalhos particulares e as funções públicas.

Quanto aos trabalhos particulares, podem ser divididos em quatro classes: trabalhos do campo; industriais; comerciantes e negociantes; e prestadores de serviço (desde as profissões científicas e liberais mais consideradas, até os serviços domésticos menos considerados). Segundo o autor, esses trabalhos sustentam a sociedade. No que se refere às funções públicas, são denominadas: a Espada, a Toga, a Igreja e a Administração.

Para o autor, o Terceiro Estado é tudo, mas encontra-se entrevado e oprimido; já sem os privilégios da nobreza e do clero, seria um tudo livre e fluorescente. Em razão que, as classes privilegiadas, não entram na organização social, dado que só servem de carga para a nação. A ociosidade, a exceção (direitos políticos à parte) e o abuso advindo da nobreza, e o gozo da melhor parcela decorrentes dos esforços, sem nada contribuir, caracterizam que, certamente, tal classe não faz parte da nação.

Nos Estados Gerais – Antigo Regime – a representação do reino diante do rei dava-se pelo clero, a nobreza e o Terceiro Estado. Porém, a representação do povo, é quase sempre vista como um direito de certos cargos ou funções. Para Sieyès, diante da lei, todos têm os mesmos privilégios, independentemente de sua origem; condenando tais privilégios, pois estes são contrários ao direito comum. O autor critica que os Estados Gerais detêm o poder legislativo, estando alheio à vontade geral, formando uma tripla “aristocracia” com a Igreja, a Toga e a Espada. Afirma que o Terceiro Estado tem sido “nada”, ou seja, os seus direitos políticos tem sido nulos, já que, até então, não teve verdadeiros representantes nos Estados Gerais.

O francês explica que petições foram dirigidas ao governo pelas municipalidades, exigindo igual representação do Terceiro Estado equiparando-se às das ordens dos privilegiados; mostrando que o povo quer ter representatividade, mas por deputados oriundos de sua ordem e que estejam hábeis para defender seus interesses. O Terceiro Estado pede que os votos sejam por cabeças, e não mais por ordem. Descortinando que o Terceiro Estado pede para “ser alguma coisa”. Sieyès expõe que o direito à propriedade é natural, o que não acontece com o privilégio, e teme que ela dê seu poderoso apoio contra o Terceiro Estado; apesar de as municipalidades acreditarem que bastar afastar os privilegiados da representação do povo para que seja extinta sua influência, pois lembra que nos campos os ‘senhores’ geralmente tinham grande prestígio sobre os camponeses.

Desse modo, o autor expõe as três petições partidas das municipalidades. A Primeira Petição elenca que os representantes do Terceiro Estado sejam designados somente a partir de cidadãos que realmente pertençam ao mesmo, ou seja, não possuam nenhuma espécie de privilégio. Vários critérios são determinados para os elegíveis a representante do Terceiro Estado, em que estão excluídos os subalternos de qualquer natureza (pois podem ter influência presumida por parte dos privilegiados), as mulheres, os indivíduos de pouca idade, os vagabundos, os mendigos e os empregados domésticos. No entanto, existem as classes disponíveis, aquelas em que seus homens receberam educação liberal, permitindo que cultivassem a razão, podendo nascer o interesse pelos assuntos públicos.

A Segunda Petição exige que seus deputados sejam em número igual ao da nobreza e do clero. Sieyès mostra, através de números, que a diferença entre a quantidade de pessoas pertencentes às duas primeiras ordens é muito desproporcional à quantidade de pessoas do Terceiro Estado; e que qualquer tentativa de admitir princípios reguladores – tamanho da população, contribuição de impostos – o Terceiro Estado está na dianteira.

A Terceira Petição diz que os Estados Gerais não votem por ordens, mas por cabeças. Segundo o autor, o anseio seria que os representantes chegassem a um interesse comum, pois qualquer que fosse a proporção que se adote, não é possível preencher o objetivo proposto, que seria reunir a vontade dos representantes em um propósito comum.

Algumas propostas foram feitas pelo governo e pelos privilegiados. O plano das Assembléias Provinciais foi uma proposta do governo na intenção de não levar em consideração a ordem pessoal dos cidadãos, mas as suas propriedades – a ordem real. Tais propriedades se dividiam em quatro: as senhorias (possuidores eram nobres ou plebeus, eclesiásticos ou leigos); e as propriedades ordinárias ou simples, que se dividiam em do clero, bens do campo e propriedades das cidades. Desse modo, observou Sieyès, que com exceção da propriedade do clero, as outras três propriedades poderiam ser representadas igualmente por quaisquer homens, plebeus, nobres ou sacerdotes; chegando a dar ao clero e a nobreza o mesmo número de representantes do Terceiro Estado, e entre os deputados, membros das classes dos privilegiados, o que continuava a desfavorecer a representação do mesmo.

Sieyès explica, também, a possibilidade do rei convocar um grupo de nobres escolhidos – os notáveis – sob influência de seu primeiro ministro, o senhor Necker. A função de tal grupo seria discutir sobre os interesses da nação e do trono, algo que, segundo o autor, foi um erro, visto que os integrantes somente defendiam interesses próprios.

O autor evidencia que as causas do Terceiro Estado são extraordinariamente defendidas por alguns escritores eclesiásticos e nobres, e não pelos próprios membros da ordem. Elucida que o silêncio dos não-privilegiados é resultado da opressão a qual foram submetidos; e que não se surpreende que os primeiros defensores da humanidade e da justiça tenham surgido das duas primeiras ordens, que são os primeiros a abdicar os velhos erros e preferem os interesses nacionais aos interesses pessoais.

Os notáveis propõem que as duas primeiras ordens paguem os mesmos impostos que o Terceiro Estado. Entretanto, Sieyès acreditava que seria uma estratégia dos privilegiados, em vista que a igualdade no pagamento de impostos não seria um ato de generosidade, mas de justiça. Uma equidade antecipada no pagamento de tributos iria distrair o Terceiro Estado na sua verdadeira necessidade – abolir sua nulidade política nos Estados Gerais.

O autor critica a proposta intermediária dos amigos comuns dos privilegiados e do ministério, que coloca a votação de subsídios, e tudo que diz respeito aos impostos, por cabeça. Pois, o francês confirma que como o voto dos subsídios deve ser a última deliberação dos Estados Gerais, devem ter confirmado previamente todas as demais sentenças.

Sieyès põe que alguns interesses diferentes começaram a surgir na ordem da nobreza. Entre tais interesses, está o de imitar a Constituição inglesa, que constitui que famílias mais ilustres estabeleçam uma câmara alta. Assim, a alta nobreza enviaria os demais nobres para a ordem dos comuns, com os outros cidadãos. Mas, segundo o autor, não caberia na França essa mudança, já que nada adiantaria reunir todas as três ordens em uma só, se o clero e a nobreza não tiverem interesses voltados para o comum, pois o ideal seria que gozassem dos mesmos direitos de simples cidadãos.

A Constituição inglesa torna-se um modelo para muitos franceses, porém o autor não considera esse ‘espírito de imitação’ adequado para conduzir o processo constitucional do país. Ele delimita vários aspectos, entre os quais se a Constituição britânica seria realmente boa e se boa, seria adequada à França? Não. Para Sieyès, a Constituição da Inglaterra teria mais uma preocupação em controlar uma desordem do que buscar uma ordem, considerando-a incompleta e não adaptável à França.

O francês debate que, em uma nação livre, a forma de acabar com as diferenças reproduz-se no respeito à Constituição. E que essa liberdade não é possível com os notáveis, mas sim com a própria nação, pois somente ela tem direito em fazê-la. Para o autor, sempre se deve partir dos bons princípios e da moral. Para tanto, segue do princípio de compreender o mecanismo social analisando a sociedade como uma máquina ordinária, a fim de chegar a uma harmonia geral resultante. Assim, na formação das sociedades políticas, existem três épocas que se destacam. Na primeira época, caracterizada pelo jogo das vontades individuais, idealiza-se um número mais ou menos considerável de indivíduos que querem se reunir e que exerçam todos os direitos de uma nação, e assim a formam; são chamadas de associação – origem do poder. Na segunda época, os associados querem dar consistência a sua união, estão voltados para o bem comum e para o poder público; pois na origem as vontades individuais podem se tornar essenciais, mas consideradas separadamente podem se tornar nulas, daí surge a ideia de algo comum.  Na terceira, em decorrência de os associados serem muito numerosos e estarem dispersos em uma superfície muito extensa para exercerem, eles próprios, sua vontade comum, confiam no exercício da vontade nacional a alguns deles, dando origem a um governo por procuração.

Como distinção entre a terceira época e a segunda, Sieyès enfatiza que não é mais uma vontade comum que age, mas uma vontade representativa. Ressalta que a vontade do corpo representativo não é plena e ilimitada, é somente uma parte da vontade comum nacional; e que a vontade comum é comissionada – não a exercem com direito próprio, é o direito do outro.

A nação é a origem, existe antes de tudo; sua vontade é sempre legal, pois é a lei. Antes e acima dela somente o direito natural; e dela emana toda série de leis positivas. Com isso, o autor explica que, em primeira linha, as leis constitucionais se dividem em duas partes: umas referentes ao corpo legislativo e as outras aos demais corpos ativos, em tudo que se vincula a organização e função dos mesmos corpos. Essas leis são chamadas de fundamentais, pois os corpos não podem alterá-las; a Constituição, portanto, não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte.  Sieyès compreende que a nação se forma unicamente pelo direito natural, enquanto o governo, contrariamente, só se regula pelo direito positivo.

Uma nação pode ter dois tipos de representantes: os ordinários – que se limitam aos assuntos do governo; e os extraordinários – que formam a assembléia. Os representantes extraordinários devem perceber que formam uma comissão de uma nação, e, portanto, devem buscar tudo quanto for matéria de interesse comum. Assim, delibera e regulamenta uma Constituição.

Então, o autor chega a afirmação de que seria preciso recorrer a uma representação extraordinária em meio às dificuldades e brigas sobre os próximos Estados Gerais – a nação é que deve ser consultada. Propõe, portanto, que por intermédio de um método em que se inicia com a formação de pequenas circunscrições que formariam províncias, que por sua vez, enviariam à metrópole os verdadeiros representantes extraordinários com o poder constituinte, destituídos de qualquer ordem social. Enfatiza que, os Estados Gerais são o poder constituído, e isto posto, não podem fazer modificações constitucionais. Então, o que pode ser feito é a convocação da nação, através de representantes extraordinários, para a reformulação (ou criação) constitucional.

O autor segue defendendo os argumentos de que há a necessidade de só reconhecer a vontade comum na opinião da maioria. Decorrendo, que na França, os representantes do Terceiro Estado são os verdadeiros detentores da vontade nacional. Todo seu raciocínio vai de encontro à ideia de demonstrar o direito que o Terceiro Estado tem de formar, sozinho, uma Assembléia Nacional.

Para o abade francês, com o propósito de adquirir os direitos políticos de uma forma útil para a nação, o Terceiro Estado deve apoiar-se em dois meios: no primeiro seria formada uma Assembléia Nacional composta pelo Terceiro Estado, visto que as outras duas ordens, mesmo reunidas, representam apenas uns vinte mil indivíduos, enquanto que a ordem dos não privilegiados representa vinte e cinco milhões de indivíduos; afirmando que os deputados do clero e da nobreza são incompetentes em votar pela nação, já que não são representantes da mesma. No segundo meio, a ordem do Terceiro Estado suspenderia o exercício do seu poder, nada seria definido até que a nação tenha julgado o processo que divide as três ordens enquanto der rumos ao litígio e ao restante das controvérsias, admite que esse seria o caminho mais generoso. Pois, para o autor, o Terceiro Estado pode considerar-se sob dois aspectos, no primeiro em que se vê como uma ordem, nesse caso admite as duas outras ordens, consentindo duvidar de seus direitos até a decisão do juiz supremo. No segundo aspecto, o Terceiro Estado é a nação, com seus representantes formando a Assembléia Nacional, sendo possuidores de todos os seus direitos e únicos depositários da vontade geral, portanto não existe litígio.

Sieyés segue explicando que é necessário compreender qual o objetivo de uma assembléia representativa. Pois, a vontade de uma nação é o resultado das vontades individuais. Então, a autor classifica as três espécies de interesses que existem no coração do homem: 1º. Interesse comum; 2º. Interesse do corpo; e 3º. Interesse pessoal. Para tanto, para se ter uma Assembléia Nacional, que de fato represente a nação, é necessário se abster dos interesses pessoais, e deve buscar engajamento com o que é comum; e formar uma Assembléia legislativa com espírito de corpo que não se degenere em uma aristocracia. Tudo o que sai da qualidade de comum não deverá participar dos direitos políticos, esclarecendo que os privilegiados não podem ser eleitores e nem elegíveis, pois a legislação de um povo só está encarregada do interesse geral, fazendo-se necessário excluir tudo o que for contrário da ordem comum.