RESERVA DO FINANCEIRAMENTE POSSÍVEL E FLEXISEGURANÇA NO BRASIL[1]

    

Carlos Hélder Carvalho Furtado Mendes[2]

Débora Costa Sousa Barros[3]

Ana Carolina Cardoso[4]

 

 

Sumário: 1 Introdução; 2 A publicização e o status positivo do direito ao trabalho; 2.1 O mínimo do mínimo e máximo do mínimo existencial dos trabalhadores urbanos e rurais; 3 Intervenção estatal através da flexisegurança no direito comparado; 4 Sujeição à reserva do possível como obstáculo da prestação positiva “flexisegurizadora” no Brasil; Conclusão; Referências.

 

RESUMO

 

Abordar-se-á neste trabalho a impossibilidade da implantação do modelo de flexisegurança dinamarquês no Brasil, sob a ótica da reserva do financeiramente possível. Para tanto, inicialmente será exposto que houve uma publicização e constitucionalização do direito ao trabalho, de forma que, enquanto direito fundamental, possui um status positivo. Sendo a flexisegurança uma atuação estatal positiva, carece de recursos financeiros para sua implementação. Posteriormente, trabalhar-se-á o conceito de “mínimo existencial” estabelecido pela doutrina, para possibilitar o entendimento no sentido de que a flexiseugurança extrapola esse conceito, ou, pelo menos, trata-se de “máximo do mínimo” no cenário brasileiro. Ademais, em estudo comparado com o modelo adotado pela Dinamarca, desde a sua concepção histórica até seus pilares atuais de sustentação, buscar-se-á, com base na doutrina e pesquisas estatísticas, a demonstração de que o sistema dinamarquês se tornaria falho em virtude das diferenças econômicas e sociais em relação ao Brasil, tornando-se um grande custo ao Estado e um risco as relações saudáveis de trabalho para o empregado.

 

Palavras-chave: Flexisegurança. Reserva do Possível. Mínimo Existencial.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O direito ao trabalho está na Constituição da República de 1988 enquanto direito fundamental de cunho social, e como tal requer prestações positivas por parte do Estado. O alto índice de desemprego em razão das transformações na economia mundial faz com que seja mister a adoção de medidas que harmonizem os interesses empresariais com as necessidades profissionais. Nesse diapasão, discute-se a possibilidade de implementação, em âmbito nacional, da flexisegurança como forma de diminuição do desemprego.

Flexibilizar, ao contrário de desregulamentar, pressupõe a manutenção da intervenção do Estado nas relações trabalhistas, mas de forma menos ostensiva. É que a proteção ostensiva ao trabalhador possui um paradoxo: ao passo em que é uma solução para os problemas que se verificam quando da adoção de um regime liberal, consubstanciados, principalmente, na exploração desmedida da força de trabalho, afasta os trabalhadores do mercado de trabalho, pois onera demasiadamente os particulares.

Paralelamente à flexibilização, a proposta é que haja segurança de emprego para os trabalhadores. A segurança dos trabalhadores residiria no fato de que, ao desonerar o empregador, o próprio Estado seria onerado.

Dessa forma, a flexisegurança consiste, basicamente, em flexibilizar as relações de trabalho, no que tange a facilidades em contratações e demissões, bem como assegurar o sustento do trabalhador desempregado, ao mesmo tempo em que é oferecida uma gama de novas oportunidades de emprego

Ocorre que os direitos que exigem prestações positivas do Estado estão submetidos, dentre outras condicionantes, à reserva do financeiramente possível. Assim, na esteira de lançar o Estado para o ônus econômico, as diretrizes da flexisegurança devem ser vistas com cautela.

Se de fato, diante da atual ordem econômica, a oneração do particular no Direito do Trabalho for um dos fatores que contribuem para o grande desemprego que atinge o Brasil, por mais árdua que seja essa oneração, os particulares têm conseguido arcá-la. Assim, é questionável se as prestações positivas estatais referentes ao direito social do trabalho constituem, no sentido que ora se discute, em âmbito nacional, e no contexto econômico atual, um mínimo existencial e, consequentemente, se sua implementação no país é financeiramente viável.

2 A PUBLICIZAÇÃO E O STATUS POSITIVO DO DIREITO AO TRABALHO

 

Em meados do século XIX, as normas referentes ao trabalho que até então eram deixadas ao arbítrio dos particulares foram tomadas pelo Estado, conferindo caráter público às relações trabalhistas. Trata-se do Welfare State.

Vólia Bomfim[5] ensina que a necessidade de o Estado intervir na relação contratual para proteger o hipossuficiente foi movida pela pressão da sociedade operária (originada na Europa, mas com legítima pretensão universalista, em razão da centralidade do trabalho na organização da sociedade industrial); pelas relações internacionais (Declaração Universal dos Direitos do Homem e Tratado de Versailles, OIT) e pela ação da Igreja (Encíclica Rerum Novarum).

A principal decorrência do Welfare State é, então, que as relações trabalhistas passam a ser regidas por instituições políticas democráticas. Mas não é só isso. O Welfare State também representa o direito que tem toda pessoa de ser protegida contra abusos do poder econômico, vez que não permanecem dependentes da esfera privada. Para Vólia[6], entretanto, o Welfare nunca foi, efetivamente, aplicado no Brasil, sob o fundamento, dentre outros, de que, por conta do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão de obra excedente, os empregadores impõem regimes e contratos de trabalho unilateralmente.

O certo é que, no Brasil, os direitos trabalhistas foram elevados à categoria de direitos fundamentais de cunho social na Constituição de 1988. Dessa forma, além de publicizados, foram constitucionalizados; e, como tais, exigem prestações positivas por parte do Estado.

Isso porque, explica Ricardo Lobo Torres[7], os direitos da liberdade, como o é o direito ao trabalho, tiveram no início do liberalismo e no positivismo legalista apenas um status negativo, representado pela autodeterminação do indivíduo, a liberdade de ação ou de omissão sem qualquer constrangimento por parte do Estado.

Contudo, em decorrência da concepção do Estado Social de Direito, os direitos fundamentais tiveram enfraquecido o seu status negativus, eis que passaram a depender também das prestações positivas e igualitárias do Estado, exibindo seu status positivus, tanto libertatis quanto socialis, que fixa o relacionamento a partir da cidadania ativa e das prestações públicas garantidas pelo orçamento. Daí não se segue, em absoluto, que a obrigação estatal se esgote na garantia do mínimo existencial, mas que este gera a pretensão às prestações positivas obrigatórias do Estado - não basta ter a liberdade de trabalhar, mas também poder desfrutar dessa liberdade mediante a atuação estatal.

Enquanto os direitos de defesa dirigem-se, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações (...) implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (MENDES, 2012, p. 685)[8]

Nesse contexto, o Estado precisa atuar, junto aos trabalhadores e empregadores, no intuito de conciliar interesses antagônicos. Se há a obrigação constitucional estatal de prover essa demanda, resta saber, em que medida, essas pretensões podem ser atendidas, e é daí que surgem propostas e discussões em torno da flexisegurança.

2.1 O MÍNIMO DO MÍNIMO E MÁXIMO DO MÍNIMO EXISTENCIAL DOS TRABALHADORES URBANOS E RURAIS.

 

Torres[9] aborda o mínimo existencial enquanto subsistema da teoria dos direitos fundamentais, pois não é um princípio jurídico, mas o conteúdo essencial desses direitos. Não é princípio jurídico por não exigir as principais características destes, quais sejam, as de ser objeto de ponderação e de valer prima facie. Justamente por constituir o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, o mínimo existencial é irredutível por definição e insuscetível de sopesamento. Outrossim, o mínimo existencial é uma norma-regra, pois se aplica por subsunção, constitui direitos definitivos e se sujeita ao tudo ou nada.

Além disso, ainda segundo o autor[10], o mínimo existencial é protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais. Diz-se, pois, que é direito de status negativus e de status positivus, sendo certo que não raro se convertem uma na outra ou se implicam mutuamente a proteção constitucional positiva e a negativa. Nesse sentido, trata-se, então, de um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.

Ao afirmar que o mínimo existencial constitui o núcleo intocável e irrestringível dos direitos fundamentais, não significa que a recíproca seja verdadeira, isto é, que qualquer conteúdo fundamental se transforma em mínimo existencial. Também não se pode deduzir, por via de consequência, que seu conteúdo é invariável no tempo e no espaço. Pelo contrário: os direitos prestacionais, que excedam o mínimo existencial por lhe faltar a nota específica de direito à existência digna, são passíveis de restrições; e aquilo que se configura como conteúdo do mínimo existencial é variável a partir da economia, sociedade e desenvolvimento do local sobre o qual recai seu âmbito de proteção.

No Estado Democrático de Direito, impõe-se a garantia do mínimo existencial em sua dimensão máxima. A tendência dos países em desenvolvimento, como é o Brasil, é no sentido de conferir extensão maior do que nas nações desenvolvidas ao mínimo existencial, pela necessidade da proteção estatal aos bens essenciais à sobrevivência do elevado número de hipossuficientes. Mas apesar de coincidir com o núcleo essencial e ser impassível de restrições por deliberação estatal, não se pode concluir que o mínimo existencial é ilimitado: o mínimo existencial, em seu status positivus, está sujeito a – tão somente – limites fáticos, sobretudo de ordem financeira.

Há aqui um paradoxo: na medida em que se estende a proteção do mínimo existencial dos direitos prestacionais, cresce também os obstáculos fáticos ara a sua realização. Assim, “os diretos sociais devem se otimizar até o ponto em que não se prejudique o processo econômico nacional, não se comprometa a saúde das finanças públicas, não se violem direitos fundamentais nem se neutralizem as prestações por conflitos internos”[11]

Transpondo essas informações para a publicização e constitucionalização do direito social ao trabalho, é certo que o Brasil atingiu certo patamar de garantias trabalhistas: um mínimo existencial laboral, ou seja, condições mínimas pra uma relação trabalhista digna ao trabalhador. E é nesse contexto que é possível vislumbrar duas óbices á flexisegurança no Brasil: de um lado, a flexibilização não pode ser desmedida a ponto de atingir o núcleo essencial das garantias trabalhistas, ou seja, “na flexibilização, um núcleo de normas de ordem pública permanece intangível, pois sem estas não se pode conceber a vida do trabalhador com dignidade, sendo fundamental à manutenção do Estado Social”[12].

De outro lado, as prestações positivas para a proteção do direito social ao trabalho, como a flexisegurança, implicará diretamente despesa para o ente público, e indiretamente para os administrados, aos quais serão imputados a contribuição tributária. No âmbito financeiro, a implementação da flexisegurança depende da reserva de lei instituidora das políticas públicas por conta de sua feição programática, da reserva da lei orçamentária e do empenho da Administração. A prestação positiva está, portanto, subordinada à reserva financeiramente do possível.

3 INTERVENÇÃO ESTATAL ATRAVÉS DA “FLEXISEGURANÇA” NO DIREITO COMPARADO

Com fulcro na perspectiva de que o direito do trabalho é um direito às prestações positivas, alguns países que integram a União Europeia tentaram conciliar dois fatores antagônicos: a flexibilidade do mercado de trabalho e a segurança dos trabalhadores, segurança esta que seria provida pelo próprio Estado, com vistas à diminuição do desemprego e o fomento da economia. Essa conciliação ocorre, basicamente, quando facilita-se a mobilidade de emprego através de formas flexíveis de contratação e da dispensa sem ônus para o empregador. Em contrapartida, para promover o amparo do trabalhador, este contaria com um seguro desemprego estatal e uma política para relocação de trabalho. Haveria, portanto, a desoneração do empregador e do empregado, e a consequente oneração do Estado, que necessitará aumentar sua receita com cobrança de mais impostos.

Congruente a tal entendimento leciona Vólia Bomfim[13] que flexissegurança se embasaria em uma relação triangular, que consistiria em um mercado flexível pela desregulamentação das regras trabalhistas, um sistema de indenização generosa proporcionado por um Estado Social, e uma política estatal de “ativação” do mercado de trabalho. Essa política estatal nada mais é que oferecer cursos de qualificação e métodos de motivação para sustentar a dinâmica da busca por novas oportunidades de emprego.

Em países como a Dinamarca, “o bom êxito do modelo” decorreu de ausência de problemas de inflação desde os anos noventa associada a uma elevada mobilidade de mão-de-obra e ao mesmo tempo generosa prestação de desemprego. Contou-se sobremaneira com o excelente desenvolvimento de educação e formação profissional do sistema público, fator que atende às necessidades do aparato industrial. Logo, toda essa combinação de fatores levaram à possibilidade de se flexibilizar as relações de trabalho e a segurança econômica e social. “Os trabalhadores não contemplados pelo sistema de prestações por desemprego estão cobertos por um sistema de desemprego e por prestações da previdência social custeadas principalmente pelo Estado” [14].

Construiu-se um sistema rotativo de prestações trabalhistas no qual os trabalhadores frequentam formações e enquanto isso são substituídos temporariamente por pessoas que estão em situação de desemprego. O regime assistencial de política ativa de emprego[15] relaciona-se às exigências cujo Estado impõe ao individuo desempregado de participar de programas de capacitação profissional, programas educativos e, nesse caso, medidas ativas no mercado de trabalho. Essa exigência afeta diretamente o direito do desempregado a prestações pecuniárias[16]. “Para que sejam eficazes, o fomento dos mercados de trabalho flexíveis e a garantia de segurança devem permitir que os assalariados sejam adaptáveis para ingressar e reingressar no emprego produtivo e impulsionar suas carreiras”[17]. Tal afirmação tem ampla ligação e corrobora a ideia de que o ente público deve ter ênfase seja em estratégias de aprendizagem, seja em sistemas de seguridade social.

Além de tais peculiaridades destacam-se as elevadas taxas de emprego e, consequentemente, baixos níveis de desemprego; a já destacada mobilidade profissional – um quarto dos trabalhadores permanece ao serviço do mesmo empregador menos de um ano –; o baixo risco de pobreza e elevada participação em ações de aprendizagem conforme dados destacados pelo Comissão das Comunidades Europeias[18].

Esse modelo dinamarquês segue o padrão de que flexibilidade e segurança são complementares ao criarem benefícios a ambas as partes da relação laboral. Henning Jorgensen[19] afirma que as novas formas de flexibilizar as relações de trabalho nem sempre seria antagônica à segurança, no sentido de que a primeira, em um mercado de trabalho moderno e competitivo, pode apresentar-se como interesse do empregado, quando da possível compatibilização entre seus interesses e satisfações pessoais com o equilíbrio do trabalho; e a segunda, segurança em uma relação de emprego mais estável se apresentar como interesse do empregador, haja vista a existência do grande interesse em manter empregados leais e bem qualificados.

Entretanto a dinâmica laboral dinamarquesa surgiu em uma construção histórico-social que teve como destaque o chamado “Compromisso de Setembro” que ocorreu em 1899. Evento este que ficou marcado por um extenso período de greve que acarretou grandes implicações sociais, tais quais o primeiro convênio coletivo geral do mundo. O acordo teve como partes a Confederação Sindical Dinamarquesa e a Confederação Patronal Dinamarquesa, estes (Dansk Arbejdsgiverforening) aceitaram aqueles (Landsorganisationen) como parceiros negociais, enquanto que a Confederação Sindical aceitou o direito dos empregadores a recrutar e a despedir, o que ensejou para a construção do modelo flexível de relações trabalhistas liberal presente no país[20].

Há que se destacar a política do diálogo e do consenso desenvolvida após o Compromisso de Setembro, seja entre os parceiros sociais, seja entre estes e o Estado dinamarquês, certamente, o triângulo dourado dinamarquês não se resume apenas as ações e politicas sociais desenvolvidas, mas também se estende à relação conjunta entre os três entes supracitados. “Os parceiros sociais desenvolveram, ao longo de vários anos, uma política alargada quanto à sua responsabilidade a nível social, tal como a administração pública aprendeu a aplicar os seus recursos e a sua influência” [21].

A partir de tal relação possibilitou-se – como discorre Jorgensen[22] – que esses agentes sociais regulassem salários, as condições de trabalho, o horário de trabalho, as possibilidades de obter mais capacitação e educação e muitos outros assuntos por meio de convênios coletivos; gerou-se então “uma tradição de regulações voluntárias do mercado de trabalho”.

Em geral, o aparelho político não só consulta os interlocutores sociais antes de formular legislação sobre o mercado de trabalho, mas com frequência os convida a participar diretamente na elaboração de políticas. Por isso, houve relativamente poucas mediações políticas no sistema de relações de trabalho nos últimos 100 anos. (JORGENSEN, Henning. op. cit., p. 53)

Nessa relação triangular do ouro dinamarquês, acrescentam-se ainda e destacam-se – veementemente – os elementos ativos das políticas do mercado de trabalho e as medidas educativas, pois acrescentam-se programas de aprendizagem e capacitação profissional, chega-se à porcentagem de 13% da força de trabalho que assiste a um curso de formação por ano e à porcentagem de 11% em políticas ativas do mercado de trabalho por ano[23].

Enfim, através dessa exposição do modelo dinamarquês em termos de flexisegurança, é possível depreender-se que, apesar da minimização do Estado, a característica do Welfare State no sentido de proteger seus cidadãos contra os abusos da economia decorrentes da dependência da esfera privada manteve-se presente, uma vez que não ocorreu a desregulamentação total dos direitos trabalhistas, e houve um ostensivo amparo estatal para garantir a segurança empregatícia.

4 SUJEIÇÃO À RESERVA DO POSSÍVEL COMO OBSTÁCULO DA PRESTAÇÃO POSITIVA “FLEXISEGURIZADORA” NO BRASIL

Como mencionado, o status positivo social das prestações estatais compõe-se pela concessão de garantias e direitos que o Estado oferta ao cidadão. Porém, a concessão desses direitos fundamentais, bem como do mínimo existencial só será possível com observância da realidade econômica do país, ou seja, “se houver disponibilidade financeira” [24].

A interpretação do conceito de reserva do possível no Brasil, segundo o Supremo Tribunal Federal, decorre da inescapável vinculação financeira das receitas previstas no orçamento estatal e a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais[25], ou seja, a reserva do possível estaria vinculada à possibilidade ou não do Estado arcar com despesas de suas prestações positivas.

Observa-se então que a implementação da flexisegurança apresenta limites evidentes que fundamentam-se na barreira orçamentária que tem o país quanto a prestação de auxílio desemprego. Seria inviável onerar o Estado brasileiro com sistemas de indenizações trabalhistas após flexibilizar ou desregulamentar as regras trabalhistas para amparar tão somente um mercado flexível. Antes de se pensar em flexibilizar as regras trabalhistas, ao Brasil cabe “repensar o conjunto de sistema de proteção social público e de política de emprego” [26].

Os gastos do Brasil (2006) destinados a políticas de mercado de trabalho, dentre políticas ativas e passivas, em relação ao PIB medem 0,88 enquanto que na Dinamarca, onde foi implementado o modelo de flexisegurança, no ano de 2005 alcançaram 4,25[27]. Embora os gastos com seguro desemprego do Brasil sejam significativos – 0,44 do PIB em 2006 segundo Ministério do Trabalho e Emprego – ainda são bem menores que os de países como a Dinamarca[28].

De acordo com Chahad[29] existem sérios erros no funcionamento do Seguro Desemprego brasileiro, tais quais: uma não adequada integração entre o seguro desemprego e as políticas ativas voltadas para o mercado de trabalho, o acesso crescente de jovens e trabalhadores com melhores rendas, a demanda pelo beneficio depende pouco do desemprego em si, existem efeitos perversos no pagamento do beneficio devido à existência de um amplo setor informal e também ao acúmulo de pagamentos de benefícios pelo termino da relação de emprego.

Diante deste quadro e a realidade econômica enfrentada pelo Brasil observa-se a impossibilidade de se onerar o Estado ao pagamento de maiores garantias ensejadas pela adoção da flexibilização das relações trabalhistas conforme o modelo dinamarquês. “O Estado não possui recursos suficientes para ofertar todas as prestações relacionadas como direitos fundamentais sociais, devendo eleger aquelas que julga mais pertinentes de acordo com as condições do momento”[30]

O que se demonstra neste ensaio é que flexibilizar as garantias e direitos trabalhistas conquistados para onerar o Estado brasileiro em maior seguridade e políticas para o mercado de trabalho não se configuram – na esfera fundamental brasileira – como “mínimo existencial”, haja vista o vasto conteúdo que este detém e que em muitos casos é apenas assegurado ao cidadão o “mínimo do mínimo existencial”. Tal afirmação é claramente perceptível quando se observa a realidade da saúde ou da educação brasileira. Questões que na Dinamarca também são exemplos a se seguir vez que segundo Relatório do Desenvolvimento Humano 2013[31], o percentual de satisfeitos com o serviço de saúde chegam aos 82% e satisfeitos em educação chegam aos 64,5%.

Ademais, flexibilizar garantias trabalhistas quando o Estado não pode arcar com tais ônus transporta o trabalhador a condições indignas os tornando “fantoches nas mãos do poder econômico do empregador” [32]. Fato que seria indesejável haja vista o enorme desrespeito à dignidade humana[33].

5 CONCLUSÃO

 

Diante das transformações sociais e econômicas que tiveram impacto no índice de desemprego, faz-se necessária uma reflexão sobre a possibilidade de realização de dinamização das relações de trabalho a partir da flexibilização das normas estatais. Entretanto, sob o manto de estar defendendo um modelo de bem-estar social, mesmo porque o direito ao trabalho, enquanto direito social, implica tanto direitos a prestações estatais (status positivus) quanto direitos de defesa (status negativus), não se pode entender que as consequências da minimização do Estado onde de fato houve aplicação e eficácia do Welfare, como a Dinamarca, seria a mesma no Brasil.

Ademais, políticas sociais como a flexisegurança demandam o emprego de recursos públicos. Todavia, em razão da inexistência de orçamento para a satisfação de todas as necessidades sociais, a Administração pública precisa fazer escolhas alocativas. É dizer, a escolha da destinação de receitas para uma política social e não para a outra deve levar em consideração, principalmente, a efetividade da prestação com base no mínimo existencial.

O mínimo existencial, núcleo essencial dos direitos fundamentais, em razão de sua natureza de norma-regra, não está sujeito a ponderações ou restrições. Sendo assim, as demandas sociais que careçam do mínimo existencial devem ser atendidas com prioridade em relação àquelas que já são satisfeitas em maior grau. É que o núcleo essencial, apesar de ser irrestringível, não é ilimitado: ele depende da reserva do financeiramente possível.

O certo é que em um Estado Democrático de Direito, como é o Brasil, a proteção do mínimo existencial de todos os direitos fundamentais deferia ser efetiva em sua dimensão máxima – o máximo do mínimo. E em que pese a implementação da flexisegurança representar uma tentativa de máxima efetividade, não se pode deixar de levar em consideração que outros ramos sociais, como a saúde e a educação, ainda carecem do mínimo do mínimo – o que não ocorre com o direito do trabalho no atual cenário nacional.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. STF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF nº 45-9 – Distrito Federal. Despacho do Min. Rel. Celso de Mello, de 29/04/2004.

CARNEIRO FILHO, José Cláudio. A reserva do financeiramente possível e seus paradigmas. ANIMA: Revista Eletrônica do Curso de Direito da OPET, v. 1, p. 531 – 563, 2009.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 9ª ed. rev., e atual., Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2014.

_____. Princípios trabalhistas, novas profissões, globalização da economia e flexibilização das normas trabalhistas. Niterói, Rio de janeiro: Impetus, 2010.  p. 52.

COMISSAO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Para a definicao de principios comuns deflexiguranca: mais e melhores empregos mediante flexibilidade e seguranca. Bruxelas, 2007. 23 p. Comunicacao da Comissao ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comite Economico e SocialEuropeu e ao Comite das Regioes. Disponível em: http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2007:0359:FIN:PT:PDF. Acesso em abril de 14.

COMITE ECONOMICO e SOCIAL EUROPEU. ECO/167 Flexisegurança: o caso da Dinamarca. Bruxelas, 17 de maio de 2006. p. 8. Disponível em: http://eescopinions.eesc.europa.eu/viewdoc.aspx?doc=ces/eco/eco167/pt/ces740-2006_ac_pt.doc. Acesso em abril de 14.

CHADAD, José Paulo Zeetano. Flexibilidade e segurança no mercado de trabalho: a busca da melhoria da proteção social dos trabalhadores brasileiros. In: WELLER, Jürgen (Ed.). O novo cenário laboral latino-americano: regulação, proteção e políticas ativas nos mercados de trabalho> Santiago: CEPAL, 2009. cap. 4, p. 87 – 110. Disponível em:

<http://www.eclac.org/publicaciones/xml/7/38197/O_novo_cenario_laboral_document.pdf>. Acesso em: abr. 2014.

CHAHAD, Políticas ativas e passivas no mercado de trabalho: aspectos conceituais, a experiência internacional e avaliação do caso brasileiro, convenio CEPAL/PNUD/OIT, São Paulo, 2006.

CHOUCO, Liliana. BRAS, Nuno. Flexisegurança. Instituto Politecnico de Coimbra. Maio, 2008. p. 15. Disponível em: http://prof.santana-e-silva.pt/gestao_de_empresas/trabalhos_07_08/word/Flexiseguran%C3%A7a.pdf

JORGENSEN, Henning. O modelo dinamarquês de “flexisegurança” e as lições pertinentes para a américa latina. 2009. p. 49 – 69. In: WELLER, Jürgen (Ed.). O novo cenário laboral latino-americano: regulação, proteção e políticas ativas nos mercados de trabalho> Santiago: CEPAL, 2009. cap. 4, p. 87 – 110. Disponível em: <http://www.eclac.org/publicaciones/xml/7/38197/O_novo_cenario_laboral_document.pdf>. Acesso em: abr. 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva 2012.

ROMITA, Arion Sayão. Flexisegurança: a reforma do mercado de trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 44

TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial – 2ª tiragem – outubro 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2009

PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2013. A Ascensão do Sul: Progresso Humano num mundo diversificado. Disponível em: http://www.pnud.org.br/arquivos/rdh-2013.pdf.

 

 

 



[1]Paper apresentado à disciplina Direito Individual do Trabalho, do curso de Direito da UNDB.

[2]Aluno do 7º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[3]Aluna do 7º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[4]Professora Orientadora

[5] CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 9ª ed. rev., e atual., Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2014.

[6] CASSAR, Vólia Bomfim. Op., Cit.

[7] TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial – 2ª tiragem – outubro 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2009

[8] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva 2012. p. 685

[9] TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial – 2ª tiragem – outubro 2009. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

[10] Ibid., p. 184

[11] Ibid., p. 131.

[12] CASSAR, Vólia Bomfim. Princípios trabalhistas, novas profissões, globalização da economia e flexibilização das normas trabalhistas. Niterói, Rio de janeiro: Impetus, 2010.  p. 52.

[13] CASSAR, Vólia Bomfim. op., cit., 2010.  p. 53

[14] ROMITA, Arion Sayão. Flexisegurança: a reforma do mercado de trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 44

[15] CHOUCO, Liliana, BRAS, Nuno. Flexisegurança. Instituto Politecnico de Coimbra. Maio, 2008. p. 15.

[16] ROMITA, Arion Sayão. Op., cit., p. 45. “Essa nova política trabalhista dinamarquesa é representada pela metáfora do ‘triângulo dourado’, cujos lados são, respectivamente, a flexibilidade na relação de emprego, um sistema generoso de prestações por desemprego e uma nova política de ativação do mercado de trabalho”.

[17] JORGENSEN, Henning. O modelo dinamarquês de “flexisegurança” e as lições pertinentes para a américa latina. CEPAL – Coleccion Documentos de proyectos. O novo cenário laboral latino-americano: regulação, proteção e politicas. 2009. p. 49 – 69.

[18]COMISSAO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Para a definicao de principios comuns deflexiguranca: mais e melhores empregos mediante flexibilidade e seguranca. Bruxelas, 2007. 23 p. Comunicacao da Comissao ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comite Economico e SocialEuropeu e ao Comite das Regioes. “A Dinamarca caracteriza-se por elevadas taxas de emprego (77,4% em 2006), reduzidos níveis de desemprego (3,9%), desemprego juvenil (7,7%) e desemprego de longa duração (0,8%), grande mobilidade profissional (um quarto dos trabalhadores permanece ao serviço do mesmo empregador menos de um ano), elevada participação em acções de aprendizagem ao longo da vida (27,4%), baixa taxa de risco de pobreza (12%) e um generalizado sentimento de segurança entre a população”.

[19] JORGENSEN, Henning. Op., cit., p. 50.

[20] COMITE ECONOMICO e SOCIAL EUROPEU. ECO/167 Flexisegurança: o caso da Dinamarca. Bruxelas, 17 de maio de 2006. p. 8.

[21] Ibid, p. 9

[22] JORGENSEN, Henning. Op., cit., p. 53.

[23] Ibid.,p. 61.

[24] TORRES, Ricardo Lobo. op. cit., p. 110.

[25] STF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF nº 45-9 – Distrito Federal. Despacho do Min. Rel. Celso de Mello, de 29/04/2004.

[26] CASSAR, Vólia Bomfim. op. cit., p. 53.

[27] CHAHAD, “Políticas ativas e passivas no mercado de trabalho: aspectos conceituais, a experiência

internacional e avaliação do caso brasileiro”, convenio CEPAL/PNUD/OIT, São Paulo, 2006.

[28] Id. Flexibilizade e segurança no mercado de trabalho: a busca da melhoria da proteção social dos trabalhadores brasileiros. CEPAL – Coleccion Documentos de proyectos. O novo cenário laboral latino-americano: regulação, proteção e politicas. 2009. p., 92.

[29] Ibid., 93.

[30] CARNEIRO FILHO, José Cláudio. A reserva do financeiramente possível e seus paradigmas. ANIMA: Revista Eletrônica do Curso de Direito da OPET, v. 1, p. 531 – 563, 2009.

[31] PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2013. A Ascensão do Sul: Progresso Humano num mundo diversificado. Disponível em: http://www.pnud.org.br/arquivos/rdh-2013.pdf.

[32] CASSAR, Vólia Bomfim., op., cit., p. 57.

[33] Para Vólia Bomfim Cassar a flexibilidade de normas trabalhistas deve ser utilizada somente sob as vestes de exceção para a manutenção ou recuperação da saúde da sociedade empresária ou empresário. “É a resposta que mais harmoniza com os postulados constitucionais de valoração da dignidade da pessoa humana e como proteção ao princípio fundamental ao trabalho”. (op., cit, p., 65)