Kelsen inicia sua primeira parte da obra Teoria Geral do Direito e do Estado, que trata especificamente do Direito, fazendo algumas considerações a respeito da diferença entre Direito e Justiça. Assim como Bobbio (2001, p.23) e, por ora, Bergel (2006, p.06), Kelsen apresenta o Direito como um sistema de regras de conduta humana. Mas afirma também que, como o Direito é um conjunto de regras de conduta, seria necessário encontrar, mesmo que no seio das mais variadas definições, características comuns que o individualizasse. No entanto, o que cabe, inicialmente, é mostrar que Kelsen, a partir de um posicionamento caracteristicamente juspositivista, faz questão de dizer que o Direito não tem qualquer relação com a justiça, e desse modo, propõe que a afirmação: "Certa ordem social tem o caráter de Direito, é uma ordem jurídica", independe do julgamento moral de qualificar essa ordem como boa ou justa. Assim, afirma: "uma ciência do Direito positivo deve ser claramente distinguida de uma filosofia da justiça". Essa distinção se faz necessária, porque a justiça, para Kelsen, é a eterna busca da felicidade pelo homem. Já que a felicidade é algo subjetivo, acaba-se relativizando a justiça e a enchendo de julgamentos valorativos subjetivos. Tal subjetividade impede a instituição de uma ciência Jurídica.

A crítica que ele faz ao Direito Natural baseia-se no fato de que os jusnaturalistas, em busca de tornar suas idéias suscetíveis de uma análise científica – o que Kelsen afirma ser uma auto-ilusão, não conseguem definir o conteúdo dessa ordem justa de uma forma exata e objetiva. Assim, são encontradas apenas fórmulas justas vazias como "a cada um o que é seu", sem ser estabelecido o que é "o seu de cada um". Kelsen substitui, então, o ideal de justiça pelo de paz, visto que o caráter subjetivo de justiça implicaria na defesa de interesses, e esta interferiria em uma relação, causando um conflito de interesses. Essas relações só poderiam ser reguladas por leis, garantindo-se, assim, a manutenção da ordem, da paz. E justo seria agir em conformidade com a lei. "Apenas com o sentido de legalidade é que a justiça pode fazer parte de uma ciência do Direito", afirma Kelsen.

"O Direito é uma ordem coercitiva", afirma categoricamente Kelsen. A coercitividade do Direito seria exercida por meio de uma sanção. Sanção esta que se diferenciaria das sanções morais, a saber, a reprovação dos outros, e das religiosas, estas exercidas por um ser sobre-humano, pelo fato de estar socialmente organizada. Esse posicionamento de Kelsen é ratificado por Bergel em sua Teoria Geral do Direito, onde afirma que "o respeito ao direito é garantido pela previsão de uma sanção socialmente organizada" (BERGEL, 2006, p.49), distinguindo o direito da moral que, segundo ele, "é sancionada só pela consciência do indivíduo, por um hipotético além ou pela reprovação dos outros.".

A sanção é vista como um método de obtenção de um comportamento socialmente desejado, à medida que obriga os indivíduos a agirem de certa forma, caso contrário ocorrerá uma punição. Mas essa teoria de Kelsen, não passou despercebida, ao contrário, levantou inúmeras críticas, conforme observa Reale, que cita duas: a que ressalta o cumprimento espontâneo do Direito, e a que diz respeito ao encadeamento de normas em um processo ao infinito. Conforme observa a professora Edith Maria Barbosa Ramos, em Introdução ao Estudo do Direito, a apresentação do elemento "sanção" como essencial à definição do Direito consiste em um erro por parte dos autores tradicionalistas, entre eles, Kelsen. Assim, o método empregado pelos tradicionalistas para definirem a sanção como característica suficiente do Direito é inconsistente, pois, se tomada a acepção de sanção como tutela, depreende-se que há regras jurídicas que para serem respeitadas não necessariamente têm de ser dotadas de uma punição. E, ao asseverar isso, bate-se de frente com o supracitado por Bergel, o qual segue os passos de Kelsen. Desse modo, "alguns internacionalistas asseveram que o direito não precisa ser repressivo para ser respeitado, e muitos constitucionalistas afirmam que as leis não repressivas são leis da mesma forma que aquelas dotadas de sanção repressiva." (RAMOS, 2003, p.61).

Outro ponto importante e que está diretamente ligado à sanção no Direito é o delito, "conduta considerada nociva à sociedade e que, de acordo com as intenções da ordem jurídica, tem de ser evitada", assevera Kelsen. Desse modo, Kelsen afirma que a noção de "delito" só está presente no âmbito do Direito Positivo. Assim, não se pode definir "delito" como uma conduta má em si, mas apenas aquela que vai de encontro a uma norma jurídica positivada e que acarreta uma sanção. "Não existem mala in se, existem apenas mala in prohibitum", sendo mau um comportamento apenas se for proibido. Essa afirmação redunda no exposto no art.5º, XXXIX da Constituição Federal, cujo texto constitucional dispõe que "não há crime sem lei anterior que o defina (...)". A definição jurídica de delito é uma conduta do indivíduo contra o qual é dirigida uma sanção, como conseqüência de sua conduta. Ligado ao conceito de delito vem o conceito de dever jurídico, que se resume na obrigação que tem o sujeito de uma relação jurídica de se abster da conduta contrária a prescrita por uma norma que regulamenta tal relação jurídica, ou seja, abster-se de cometer um delito. Por sua vez, o direito jurídico de uma pessoa constitui um dever jurídico de outra pessoa para com aquele portador do direito, e o não cumprimento desse dever é uma condição para a aplicação de uma sanção. Pois o possuidor do dever jurídico está obrigado a respeitar o direito do outro, caso este faça uso de seu direito. Desse modo, o direito jurídico de um indivíduo sobre a conduta de outro pressupõe um dever jurídico deste.

Ao falar em direito jurídico, Kelsen ressalta a importância de fazer algumas restrições ao conceito de direito jurídico. Desenvolve, então, a noção do que vem a ser direito subjetivo e direito objetivo, estabelecendo as suas diferenças e trazendo à tona esse dualismo. Assim, o direito subjetivo corresponde ao interesse e à vontade do portador de direito jurídico, e o direito objetivo às normas e regras jurídicas, que regulamentam o direito jurídico subjetivo. Conseqüentemente, ao se falar em direitos subjetivos, não se podem depreender interesses ou vontades irrestritas, mas interesses protegidos pela ordem jurídica. No entanto Kelsen julga incorreto definir um direito subjetivo por um interesse protegido pela ordem jurídica. Isso porque o direito jurídico existe independentemente de um interesse ou uma vontado do indivíduo. O legislador supõe alguns interesses e os protege por meio da ordem jurídica. Então a essência do direito jurídico está não no interesse do indivíduo, mas na proteção que o Direito objetivo dá àquele direito subjetivo. Por fim, Kelsen afirma que o "direito jurídico subjetivo é, em resumo, o Direito objetivo".

"A ordem jurídica é um sistema de normas". Kelsen assim inicia seu discurso acerca da ordem jurídica, em que trata do fundamento de validade do sistema jurídico. Aqui está presente o que Kelsen vai chamar de "norma fundamental". Em um sistema positivo de normas, a conformidade destas com a realidade ou com ideais de justiça não configuram fundamentos de validade para elas. Conforme Kelsen, "o fundamento para a validade de uma norma é sempre uma norma, não um fato".  Desse modo, essa norma que atribui validade a uma outra é chamada por Kelsen de "norma fundamental". A norma fundamental é a norma superior a todas as outras normas, é um pressuposto de validade. Desse modo, todas as normas que derivam da mesma norma fundamental formam uma ordem, um sistema. Algumas objeções são feitas a teoria da norma fundamental conforme observa Bobbio em sua Teoria do Ordenamento Jurídico. Uma das suas objeções apontadas por Bobbio é aquela que se refere ao fundamento da norma fundamental. Ora, a norma fundamental é um pressuposto; a função dela em um sistema normativo é a mesma de um postulado em sistema científico, ou seja, não são dedutíveis (BOBBIO, 1995, p.62). Se fosse admitido um fundamento para ela, seria necessário fundamentar essa norma que serviu de fundamento e, assim, sucessivamente. Isso só teria sentido se transcendesse o próprio ordenamento jurídico, buscando as fundamentações fora dele (em um poder divino, em obediência a uma lei natural, ou a uma convenção originária). Mas essa resposta desloca o problema da existência de um ordenamento jurídico para sua justificação (BOBBIO, 1995, p.63). Outra objeção feita a teoria da norma fundamental apontada por Bobbio é aquela que diz respeito ao conteúdo da norma fundamental: "A norma fundamental, assim como a temos aqui pressuposta, estabelece que é preciso obedecer ao poder originário (que é o mesmo poder constituinte). Mas o que é o poder originário? É o conjunto das forças políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram o ordenamteno jurídico. Objeta-se então que fazer todo o sistema normativo do poder originário significa reduzir o direito à força". (BOBBIO, 1995,p.65)

Com relação à validade e à eficácia da norma jurídica, Kelsen, o que outrora não acontecia, reconhece que a validade da norma está condicionada ao critério do mínimo de eficácia. Uma norma para ser válida deve, além de estar em conformidade com os critérios de validade formal - ser criada por um órgão competente e por meio do procedimento prescrito por outra norma - , estar contida em uma ordem jurídica eficaz como um todo. "A eficácia da ordem jurídica como um todo é uma condição necessária para a validade de cada norma individual da ordem", assevera Kelsen. Entretanto ele adverte que a eficácia não é um fundamento de validade da norma, mas apenas uma condição. Uma norma é válida, porque foi criada de acordo com a forma prescrita na constituição; mas não se pode obrigar os invíduos de uma sociedade a agirem de acordo com uma norma se o prórpio sistema não tem eficácia. Nessa ocasião é necessário que se verifique o princípio da legitimidade. Em resumo, pode-se citar o afirmado pelo professor Miguel Reale, em Lições Preliminares de Direito: "Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo. A eficácia, ao contrário, tem um caráter experimental, porquanto se refere ao comportamento efetivo do Direito por parte de uma sociedade (...)". (REALE, 2002, p.114).

REFERÊNCIAS

BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Bauru - SP: EDIPRO, 2001.
_______________. Teoria do Ordenamento jurídico. 6ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
RAMOS, Edith Maria Barbosa. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Herberth Alessandro da Cunha Machado, acadêmico de Direito da Universidade Federal do Maranhão.