Richard Sennett, professor de sociologia da Universidade de Nova York e da London School of Economics escreveu em 1998 o ensaio sobre ética do trabalho A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Sennett, neste ensaio, dá continuidade a sua pesquisa e reflexão sobre as novas relações de trabalho no capitalismo moderno e suas conseqüências no caráter individual. É autor também de outros ensaios e livros como Carne e Pedra, O declínio do Homem Público e The Hidden Injuries of Class (com Jonathan Cobb), Este longo ensaio inicia-se como uma conferência feita na Universidade de Cambridge em 1996 por Sennett. Segundo o autor, a permanência no Centro de Estudo Avançado em Ciências Comportamentais lhe proporcionou tempo suficiente para escrever esta obra. Além disso, o autor evidencia suas experiências pessoais com trabalhadores americanos ao longo de sua vida e, a partir de tais experiências, passa a refletir sobre as relações de trabalho, o caráter pessoal e as suas transformações no novo capitalismo.

Com base em sua definição de caráter: “traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (p.10), Sennett passa a questionar as relações de trabalho contemporâneo e suas implicações nos valores pessoais como a lealdade e os compromissos mútuos. Como definir nossos traços pessoais, nosso valor em uma sociedade onde tudo é efêmero, onde a flexibilidade, ou seja, o poder de se ajustar a qualquer meio é tido como valor? Não é possível construir um caráter em um capitalismo flexível, onde não há metas a longo prazo, pois a construção deste depende de valores duradouros, relações duradouras, de longo prazo, isto não é possível em uma sociedade onde as instituições vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas.

Para discutir esta questão, Sennett recorre à várias fontes, como dados econômicos, narrativas históricas e teorias sociais como de Max Weber e Adam Smith e, ainda, à sua vida diária , seu método é como de um antropólogo, segundo o próprio autor. A obra é dividida em oito breves capítulos, onde se define o tempo capitalista, se compara o velho capitalismo e o novo, mostram-se as dificuldades de se compreender as novas relações de trabalho, o ataque do capitalismo ao caráter pessoal, a mudança ética do trabalho, os sentimentos despertos nos indivíduo como o fracasso, o desnorteamento, a depressão e, por fim, como lidar e viver neste meio? Há remédio para os males do trabalho? São as respostas para estas questões que Sennett procura nesta discussão.

No primeiro capítulo, Deriva, Sennett relata a história de duas gerações norte-americanas, Enrico e Rico, filho de Enrico. Este relato serve como comparação entre dois modelos de trabalhadores. O trabalhador fordista, burocratizado e rotinizado, que planeja sua vida e suas metas se baseando em um tempo linear, cumulativo e disciplinado, que constrói sua história e expectativas a partir de uma progressão de longo prazo. E o trabalhador flexibilizado do capitalismo mais recente, que muda de endereço freqüentemente, não estabelece laços duráveis de afinidade com os vizinhos, muda de emprego constantemente, não planeja suas metas a partir de expectativas de longo prazo, ou seja, vive uma vida de incertezas, vida sem laços duráveis. O trabalhador flexível não possui laços duráveis nem com sua própria família. Segundo Sennett, a dificuldade de se estabelecer laços duráveis está corrompendo o caráter e como isso acontece é demonstrado ao longo do ensaio.

A rotina era o grande mal do velho capitalismo, segundo Adam Smith ela embrutecia o espírito, na tentativa de se livrar deste mal a nova sociedade buscou flexibilizar o tempo, de forma a não ficar presa a uma rotina, a uma programação. Esta negação da rotina, do velho capitalismo, pode ser vista na negação do modo de vida de Enrico por seu filho Rico. Rico se esforça para não demonstrar nenhum laço ou vestígio do trabalhador braçal que buscava o Sonho americano como que era seu pai, Rico quer fugir da rotina. O grande problema é que esta rotina baseada no tempo linear foi substituída por novas formas de domínio e controle. No velho capitalismo fordista, o poder e o controle eram visíveis, o patrão no alto do escritório controlava e supervisionava o trabalho dos operários, regulava o tempo. O novo capitalismo flexibilizou o tempo, os produtos são cada vez menos duráveis, seguindo a dinâmica de curto prazo, os empregos são temporários. Contudo, esta lógica de desburocratização concentrou o poder ainda mais nas mãos dos capitalistas que, agora, são invisíveis dentro das empresas. A aparente liberdade dada ao trabalhador através do trabalho em equipe, onde ele decide o que fazer sem o patrão lhe dar comandos, na verdade colocou o trabalhador ainda mais sob o comando do capitalista. Isso aconteceu porque ele já não domina mais o que faz, a atomização cada vez maior das tarefas fez com que não se precisasse mais de tanta preparação, treinamento por parte do trabalhador, como conseqüência este deixou de possuir o domínio sobre seu emprego, por isso ele sempre está mudando de área, de empresa, de função, já não possui vínculos fortes com suas tarefas, com seus colegas. A ausência de apego ao longo prazo com seu trabalho, a não formação de laços duráveis acabou flexibilizando e por fim corrompendo o caráter, pois este depende de tempo para se consolidar na medida em que só podemos definir quem somos, o valor que temos quando buscamos a valorização de nós pelos outros. Ou seja, só definimos nosso caráter quando constituímos laços duráveis que permitam nos situar dentro de um meio social.

O novo capitalismo, pois, se caracteriza pela capacidade imediata, a flexibilização, o risco, a alienação completa do indivíduo, “não se mexer é tomado como sinal de fracasso, parecendo a estabilidade quase uma morte em vida” (p.102). Mudar o tempo todo faz a pessoa se esquecer da realidade a qual pertence, no antigo capitalismo a consciência de se pertencer a uma classe era facilmente perceptível, no capitalismo atual não se sabe a que grupo social se pertence. Esta realidade pode ser vista quando Sennett pergunta a alguns padeiros a que classe pertencem, dizem indefinidamente serem  da classe média. No jogo capitalista atual todos acreditam serem potenciais vencedores, sabem que os vencedores fazem parte de um minúsculo grupo, porém não se mexer é condenar-se ao fracasso. “O risco é um teste de caráter; o importante é fazer o esforço, arriscar a sorte, mesmo sabendo-se racionalmente que se está condenado a fracassar” (p.106). Assim, os indivíduos se vêem esvaziados moral, social, cultural e politicamente. As relações humanas se tornam uma simulação teatral, relações sem poder, sem autoridade. Desta forma, a construção de uma história de vida que una as pessoas fica impossibilitada, pois não há padrão e nem responsabilidade. As pessoas estão sujeitas ao sentimento de fracasso.

Neste sentido, as pessoas mais velhas ou mais experientes são vistas como decadentes, fracassadas, pois flexibilidade, risco, não combinam com acumulação de experiência, de tempo de vida. A história de Rose é um bom exemplo dado pelo autor, ela admite “não ter mais coragem” (p.107). “As atuais condições da vida empresarial encerram muitos preconceitos contra a meia-idade. Dispostos a negar o valor da experiência passada da pessoa” (p.107). Além disso, este exemplo demonstra como o novo capitalismo se tornou desnorteante e deprimente, criou éticas contrárias à autodisciplina e à auto-modelação da ética de trabalho como a descrita em A ética protestante e o espírito de capitalismo de Max Weber. O poder está presente, mas a autoridade está ausente. O repúdio da autoridade e da responsabilidade permite a fuga das greves e das crises, já que não há laços fortes o suficiente para haver uma coesão. Não há nenhuma autoridade para reconhecer nosso valor, estamos à deriva do fracasso, estamos à deriva de nós mesmos. O pronome nós é temido pelos capitalistas, temem o ressurgimento dos sindicatos, assim no capitalismo moderno não dá motivos para as pessoas se unirem, “há história, mas não narrativa partilhada de dificuldade e portanto tampouco destino partilhado” (p.176). Para Sennett, um regime assim não pode se preservar por muito tempo.

A corrosão do caráter foi escolhido pela revista Business Week como um dos dez melhores livros de 1998 devido a sua crítica ao ambiente de trabalho do capitalismo moderno, tido como mais humano do que as insalubres e monótonas fábricas do velho capitalismo. Para Sennett, a aparente melhoria das condições de trabalho tão elogiadas, não passam de pura ilusão, a verdade é que o caráter humano foi profundamente corrompido. A lealdade, os compromissos pessoais são impraticáveis, é a desumanização total do ser humano. Assim, o autor consegue demonstrar como esta corrosão acontece utilizando exemplos reais, ao optar pela narrativa e não puramente o uso de estatísticas e tabelas, consegue dar vida, expressão, para provar sua hipótese inicial  de que as novas relações do novo capitalismo flexível corromperam e corrompem o caráter do ser humano. A partir desta conclusão o autor leva o leitor a refletir sobre o tipo de sociedade que está sendo construída, uma sociedade em que os indivíduos não se vêem necessários uns aos outros, ou seja, é o individualismo nascido da burguesia industrial do velho capitalismo levado ao extremo, potencializado.

Por conseguinte, pode-se inclusive traçar um paralelo entre a visão de Sennet e as teses dos filósofos Foucault e Hannah Arendt. Para Foucault os indivíduos exercem “papéis” dentro de uma sociedade baseada em relações de poder, na sua mais conhecida obra “Vigiar e Punir”, o filósofo mostra como essas relações de poder mudaram e mudam ao longo da história, relações que estão o tempo todo se reconfigurando. Da mesma forma, Sennett analisa o capitalismo dos finais do século XX e suas relações de trabalho a partir da reconstrução das mudanças e reconfigurações ocorridas no capitalismo desde a época em que surgiram os primeiros trabalhos pensando este sistema como algo configurado, como a análise de Adam Smith em A Riqueza das Nações do século XVIII, até a consolidação do chamado capitalismo flexível, onde, diferentemente do antigo capitalismo da análise foucaultiana, o poder existe, mas a autoridade é invisível, porém a ausência desta autoridade visível não extingue as relações de poder entre trabalhadores e capitalistas. Aliás, este ponto sobre a crise na autoridade também é destacada por Arendt em “Entre o passado e o futuro” no capítulo sobre o que é autoridade, onde ela vê nesta crise, assim como Sennet, algo que corrompe o ser humano.

 

 

Bibliografia de apoio:

ARENDT, Hannah. O que é autoridade? In: Entre o passado e o futuro.

 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.