A pequenez humana

Leite Derramado, de Chico Buarque de Hollanda, 195 páginas, Editora Companhia Das Letras, lançado em 2009, retrata a história da poderosa família Assumpção, na versão de Eulálio, um senhor idoso, internado em um hospital, filho do senador Assumpção, que rememora, repetidamente, para a sua filha e as enfermeiras, a sua história e a trajetória decadente de sua base familiar, apresentando fatos históricos do Brasil e da mentalidade burguesa incrustada na política brasileira, bem como seus traumas e suas aventuras. O livro mistura ficção e realidade sem longas exposições e com a maestria concisa que Chico tanto exibe em sua poética musical.
Eulálio lembra Brás Cubas, de Machado de Assis, por seu insucesso, mesmo sendo fruto de uma elite social. A obra, assim como o texto de Machado, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, se revela em capítulos curtos, cenas repetidas, numa espécie de videoclipe.
Como qualquer pessoa idosa já meio esclerosada, Eulálio mostra seus deslizes repetidas vezes, de maneira desordenada, com ironias e ideologias tematicamente desorganizadas, porém sem perder de vista Matilde, seu amor mal resolvido, que o abandonou e marcou sua tristeza na vida. A trama ratifica o talento de Chico Buarque para a brevidade textual, que o torna capaz de sugerir muito em pouquíssimas palavras.
A melancolia de um idoso se exprime em pensamentos que se voltam mais para o passado que para o presente e o futuro: "Ao passo que o tempo futuro se estreita, as pessoas mais novas têm de se amontoar de qualquer jeito num canto de minha cabeça. Já para o passado tenho um salão cada vez mais espaçoso, onde cabem com folga meus pais, avós, primos distantes e colegas de faculdade que eu já tinha esquecido, com seus respectivos salões cheios de parentes e contraparentes e penetras com suas amantes, mais as reminiscências dessa gente toda, até o tempo de Napoleão".
A sensação do mundo de outrora, quando o tempo parecia mais devagar, é avaliada: "(...) naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava".
O aparecimento do fotógrafo é poeticamente retratado: "(...) profissionais da fotografia, captando instantâneos para a posteridade, como se dizia".
O interesse por lugar tranquilo e cultura elitista aparece antiteticamente como forma de evasão: "(...) começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler".
O nome Eulálio pesa ao personagem: "A me chamar Eulálio, preferia envelhecer e ser sepultado com meus apelidos infantis, Lalinho, Lalá, Lilico. O Eulálio do meu tetravô português, passando pelo meu trisavô, bisavô, avô e pai, para mim era menos um nome do que um eco".
De forma irônica e lírica, sugere-se que algumas pessoas convivem bem com o estilo da tristeza: "(...) em mamãe a desgraça não caía mal, trajes pretos eram adequados à sua natureza.
Um dito aponta como ocorre a decadência: "(...) pai rico, filho nobre, neto pobre".
Outra questão interessante é a criatividade inventiva dos idosos: "Mas lembrança de velho não é muito confiável".
Já a modernidade traz modismos curiosamente avaliados pelas pessoas mais vividas: "(...) uma namoradinha de alfinete no umbigo".
A personagem Eulálio assume as dobras da memória: "(...) minha cabeça às vezes fica meio embolada".
O chalé aparece na narrativa frequentemente como o espaço, o cenário, o local determinante na vida de Eulálio, uma parte dele, e a especulação imobiliária também surge na história: "Quando eu morrer, meu chalé cairá comigo, para dar lugar a mais um edifício de apartamentos".
Autocriticamente, Eulálio, apresentando etimologia interessante da palavra esnobe, constata-se fracassado, apesar da origem de família de renome: "(...) minha linhagem não me faz melhor que ninguém. (...) Agi como um esnobe, que, como todos devem saber, significa indivíduo sem nobreza".
Por vezes o texto indica análise filosófica do destino: "Nos dados de alguma fiandeira, provavelmente a linha da vida de Matilde seria de fibra melhor que a minha, e mais extensa. Mas muitas vezes uma vida para no meio do caminho, não por ser a linha curta, e sim tortuosa".
O tráfico de influência na família poderosa revela criticamente a força de um nome de poder para burlar as leis: "Desembaraçar na alfândega artefatos e explosivos, por exemplo, era questão que meu pai resolvia com um telefonema, ou por meio de qualquer despachante".
A falência da família Assumpção se relaciona à temática histórica: "Em Londres, me falaram de calamidades financeiras, milhões de libras esterlinas fulminadas da noite para o dia, devido ao crack da bolsa de Nova York. Era o caso do espólio da família Assumpção, desafortunadamente aplicado no mercado de ações norte-americano".
O abandono da mulher é sempre ciclicamente lembrado: "(...) e mais bonança teria minha mulher, se algum dia voltasse para casa".
O ciúme se apresenta filosoficamente como inveja: "O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas e, mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura".
O problema entre sogra e nora é abordado: "De birra nunca levou a menina para ver a avó, esperava que a avó viesse, e nas poucas vezes que ela veio, Matilde lhe mostrava a Eulália pelada".
A mudança cultural por que passa a sociedade é abarcada: (...) cachaça, que agora era moda servir até em locais requintados".
Um momento erótico do enredo mostra o saudosismo sexual na memória de orgasmo do idoso Eulálio: "Prendi seus punhos na parede, ela se debatia, mas eu a controlava com meus joelhos atrás dos seus. E com meu tronco eu a apertava, eu a espremia a valer, eu quase a esmagava na parede, até que Matilde disse, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremeu inteiro, levando o meu a tremer junto".
O assassinato do pai de Eulálio exibe a corrupção e a violência de um tempo que marcou a política brasileira, e a qualidade dos impressos da época é vista de modo elitista: "(...) jornais que gente de respeito não lê".
Reflexo cultural, a educação de antes era marcada pela agressão física: "(...) de quando em quando, acho que sentia falta de baixar as calças para meu pai me surrar com o cinto".
A decadência de uma família leva à mudança de nome até de ruas ou a nomeação de vielas e travessas sem grande importância: "(...) os liberais tomaram o poder e trocaram seu nome pelo de um caudilho gaúcho. (...) conferiu a meu pai aquela rua sem saída. Meu avô também é uma travessa, lá para o lado das docas".
O crítico personagem sente o desprezo ao idoso: "As pessoas não se dão o trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro".
A importância do espaço em que se vive pode ser poeticamente notada: "(...) mamãe era mesmo como a flor, que ao mudar de vaso às vezes fenece".
O preconceito de gente rica por gente que trabalha aparece, assim como a valorização e a desvalorização de determinados profissionais no curso da história: "Mas este seria um jantar reservado, sem garçons nem tochas, porque mamãe ainda guardava luto, e a muito custo concedera em abrir a mansão para um simples engenheiro".
Novamente, a saudade recorrente de Matilde aponta eroticamente o poder de uma mulher na história da vida de um homem: "Dispo Matilde com os olhos, mas, ao invés de vê-la nua, vejo o vestido sem o corpo dela".
O refinamento da mãe exemplifica a educação alimentar privilegiada: "(...) minha mão não suportaria ver um vinho branco em mesa de carne vermelha".
Para quem é viajado, torna-se irônico ouvir outro idioma na boca de quem só aprendeu na escola: "Falava um francês escolar, articulando as palavras como quem passa um ditado...".
Os vestido de Matilde causavam fantasias em Eulálio: "Não me atrevia a deitar putas no leito conjugal, e entre as damas disponíveis, nem todas se sujeitavam a vestir as roupas de sua mãe".
A ausência de amigos é outra marca abordada na história de Eulálio: "Mas se nem nos tempos de estudante eu havia feito amigos, difícil seria agora que morava numa casa nada convidativa. (...) nas sombras da casa assombrada".
A partida de Matilde em todo momento se mostra marcante e inaceitável: "Mas abandonar uma criança ainda lactente, pequerrucha, de se carregar debaixo do braço, isso não entrava na cabeça de ninguém, não fazia sentido, não podia ser".
A velhice é explicada: "Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópia dela, para a hipótese de a história se extraviar. (...) só de Matilde no saguão da escola juntei recordações em série para o resto da vida. (...) Vestidos com mofo no armário ou bijuterias com ferrugem na gaveta, que bem ou mal me ficaram na lembrança (...) Recuei ao pé da escada, recuei dez anos para reviver o dia em que vi Matilde desceu pelo corrimão, sendo suspensa das aulas por uma semana".
O código ilógico e violento usado na conduta educativa de uma época aparece exemplificado: "Papai não admite que alguém encoste no filho, fora ele e mamãe. E quando me bate com cinto ou com as costas da mão, pode tirar sangue e até me quebrar um dente, mas em cabeça de criança não se toca".
Que o tempo é uma grande mentira, já disseram os filósofos. Por isso, na cabeça de um senhor marcado por sucessões temporais amorosas, a cronologia é ilusória: "É esquisito ter lembrança de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre. (...) Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida. (...) Não é culpa minha se os acontecimentos às vezes me vêm à memória fora da ordem em que se produziram".
O descaso familiar e o mau atendimento em hospitais são questionados: "Os bens que me restam, não os vou deixar para uma filha que me internou à força, mesmo imobilizado eu estaria melhor em casa. Minhas dores eram crônicas, eu já previa onde e quando iam doer. Mas aqui sinto dores que não são minhas, devo estar com uma infecção hospitalar. (...) ouço rumores de que estou na fila para uma vaga em hospital público".
Uma questão decadente é mostrada na família Assumpção, o tráfico de drogas e a dificuldade financeira: "Porque meu tataraneto, você sabe, faz comércio de entorpecentes, acho que outro dia o vi com a namoradinha nessa televisão, os dois algemados no aeroporto, escondendo a cara. Se ele for parar no xadrez, aí mesmo é que a Maria Eulália vai me entregar às baratas. Isso porque ela não sabe que ainda tenho recursos, se soubesse já os teria torrado, como torrou o casarão, o chalé, os imóveis todos, até o jazigo da família ela passou nos cobres. (...) se ela vendesse o nosso apartamento em vez da sepultura me acharia menos desalojado".
Apresenta-se o modismo habitacional da filha de Eulálio, advindo com o crescimento e a urbanização: "Já na adolescência considerava meio jeca isso de casa com quintal, invejava as colegas que se mudavam para os edifícios modernos do bairro, com fachadas de Mármore em art déco".
O expressionismo da revista modernista contextualiza o leitor nas primeiras décadas do século XX: "Mas quando o sujeito se levantou, me surpreendeu sua baixa estatura, lembrava essas caricaturas da revista Fon-Fon, o tronco desproporcional às pernas curtas".
Uma foto do pai de Eulálio o faz se sentir orgulhoso, porém, ao mesmo tempo, lembra a sua decadência: "A foto é das prediletas da mamãe, traz meu pai ao lado da rainha Elizabeth, um degrau abaixo do rei". Também se mostram outras fotografias reveladoras da antiga nobreza da família: "(...) Mostrava-lhe as fotos na escrivaninha, seu trisavô com os reis da Bélgica, seu tetravô andando de costas em Londres, mas ele não queria saber de velharias".
A imprensa comprada, como ainda ocorre hoje, é ilustrada: "E perdíamos dia a dia mais terreno para a concorrência, que não vacilava em seduzir certos jornalistas com quem ainda ontem trocávamos favores".
Devaneios e incertezas da velhice surgem, nas paredes da memória, diversas vezes: "Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é um arremedo de lembrança anterior. (...) São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora".
A decadência da família não é bem aceita por Eulálio, ao reprovar gostos musicais e namoricos de seu sobrinho com moças de classe econômica baixa: "Ao som de sambas, rumbas, rock and roll, o Eulálio se entretinha no quarto com empregadinhas do bairro, caixas de supermercado, namorou até uma oriental, garçonete num sushi bar. (...) Por baixo de uma batucada. Distingui sua cantilena triste, aguda, que subitamente deu lugar a gritos guturais, fode eu, negão!, enraba eu, negão!, e não sou homem que se melindre à toa. Mas assim que cruzei com ela, me vi compelido a lhe dizer, o negão aí é descendente de dom Eulálio Penalva d?Assumpção, conselheiro do marquês de Pombal".
A etiqueta importa muito aos nobres, como se nota na narrativa: "Mas para ele tampouco seria fácil conviver com uma mulher que assobiava para chamar garçom... (...) e ainda bem que mamãe não estava ali para me ver bebendo um bordeaux em copo de geleia".
Uma questão triste para a velhice é a persistência de lembranças ruins: "Com a idade a gente dá para repetir velhas lembranças, e as que menos gostamos de revolver são as que persistem na mente com maior nitidez".
Outra questão recorrente na velhice, ao se aproximar da morte, é a religião: "Estou mesmo inclinado a crer na vida eterna e faço fé em que Matilde esteja à minha espera, apesar de no catecismo nunca terem me explicado direito a ressurreição da carne".
A má companhia gera problemas em relações amorosas e separações: "Eva tinha sido uma companhia perniciosa para Matilde, desde o início encheu sua cabeça de fantasias".
Muitas vezes o enciumado precisa conhecer o motivo de seu ciúme, e isso gera delírios sentimentais caóticos: "E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância a esse ciúme. (...) E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta".
A preocupação financeira da filha é recorrente na obra: "Também tenho uma filha, minha herdeira universal, já me fez passar todos os bens para o seu nome a fim de adiantar o inventário".
Eulálio, em sua fala, exibe o racismo histórico de que o negro sofre no Brasil e o crescimento de favelas: "Opinei que servir na polícia era um grande progresso para os negros, que ainda ontem o governo só empregava na limpeza pública. (...) A diferença era que ao nosso redor a cidade agora não acabava mais, grassavam casebres de alvenaria crua e sem telhado, onde antes havia clubes campestres e chácaras aprazíveis (...) gentalha da igreja (...) Talvez até seja um avanço para os negros, que ainda ontem sacrificavam animais no candomblé, andarem agora arrumadinhos com a Bíblia debaixo do braço".
Ironicamente a traição se configura na trama: "Logo que fui abandonado costumavam cochichar pelas minhas costas (...) Porém agora faziam profundo silêncio à minha chegada, como se eu estivesse promovido a uma categoria respeitável de marido enganado".
Uma correspondência aparece de forma personificada e revela o medo da verdade no enredo: "Era uma carta gorda (...) calculei que haveria ali dentro no mínimo oito folhas escritas (...) letra ruim de médico (...) parecia covardia eu jamais ter aberto aquela carta".
Conforme se observa nos fragmentos transcritos, o livro como um todo é sugestivo, marcando os leitores profundamente, pois aborda a existência e suas nuances pessoais, políticas e culturais. Por isso, deve ser lido com bastante atenção aos detalhes de linguagem e conteúdo, os quais levam a reflexões relevantes sobre o viver e as ilusões da pequenez humana diante da marcha incessante da história.

Jean Carlos Neris de Paula