Resenha crítica do texto Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade de Gilvo Marçal Brandão.In: Coleção Clássicos da Política, volume II, organizada por Francisco Wefford. Editora Ática, São Paulo, 2002.

RESUMO

Hegel é um dos maiores representantes do Idealismo Alemão, principal percussor da filosofia marxista e considerado por muitos críticos como um pensador que legitima o totalitarismo. Neste comentário, Gilvo Marçal Brandão nos apresenta alguns dados sobre o percurso intelectual do pensador, alguns dos princípios mais importantes presentes em sua filosofia, bem como algumas críticas dirigidas a mesma, apresentando também um breve quadro da filosofia "pós-hegeliana". Algumas temáticas são privilegiadas pelo comentador, como a distinção entre Estado Político e Sociedade Civil, a liberdade concreta e as críticas formuladas por Hegel contra as teorias contratualistas do jusnaturalismo. O Estado emerge como um todo maior que a soma das partes, uma vez que se exerce na resolução de todas as contradições presentes na sociedade civil, e não é posterior aos homens; nada existe, na filosofia de Hegel, fora do Estado.

Palavras-chave: Idealismo Alemão; Dialética; Friedrich Hegel

ABSTRACT

Hegel is one of the most representative thinkers of the German Idealism, principal precedent of the Marxist philosophy and was considered by many critics as a thinker who legitimizes the political totalitarianism. In this comment, Gilvo Marçal Torch presents us some data about the intellectual evolution of the thinker, as well as some of the most important principles on his philosophy. The comemmentator show us some criticism directed to the thinker too, presenting also a short picture of the philosophy based on Hegel. Some themes are privileged by the commentator, like the distinction between PoliticalState and Civil Society, the concrete freedom and the criticism elaborated by Hegel against the contratualist theories on jusnaturalism. The State surfaces as a whole bigger than the sum of the parts, as it is practised in the resolution of all the present contradictions in the civil society, and it´s not subsequent to the men; nothing exists, in Hegel philosophy, out of the State.

Key-Words: German Idealism; Dialetic; Friedrich Hegel.

O presente capítulo abarca, como a grande maioria dos textos contida na coleção Clássicos da Política, organizada por Francisco Weffort em dois volumes, dois momentos distintos. O primeiro é composto do comentário de Gilvo Marçal Brandão sobre a filosofia hegeliana, enquanto o segundo, de alguns excertos selecionados pelo comentador a partir de uma das obras mais referenciadas de Friedrich Hegel: Princípios da Filosofia do Direito. Porém, em relação aos outros comentários, este apresenta ao menos uma particularidade: a justificativa, do comentador acerca de sua seleção de fragmentos da obra hegeliana. Brandão selecionou os parágrafos 535 a 552 desta obra, apresentando-os em sua ordem original. Ou seja, sua seleção foi de um único fragmento contínuo. Neste sentido, Brandão argumenta que apresentar frases e fragmentos fora do seu contexto argumentativo poderia comprometer a compreensão do leitor.

No início do seu texto, Brandão apresenta algumas breves colocações acerca do momento histórico que contextualizou a obra filosófica de Hegel, bem como o próprio percurso filosófico do pensador alemão. Brandão pontua que, no princípio, Hegel esteve mais voltado para análises teóricas e históricas, que abarcavam temáticas ligadas à economia, á religião e à política, mais que não possuíam em si então um caráter "tecnicamente filosófico". Também merecem destaque os estudos de Hegel acerca de seus predecessores, Kant, Fichte e Schelling – sendo que o filósofo começara sua carreira intelectual como discípulo deste último, com o qual viria a romper posteriormente. O comentador dedica também um pequeno espaço à carreira do filósofo como jornalista político.

Já em relação à própria filosofia do teórico alemão, Brandão lembra que foi Hegel, e não Marx, como muitos poderiam supor, o primeiro a propor uma distinção entre a sociedade civil e o Estado político. Segundo o comentador, a sociedade civil se define como um:

(...) sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si.[1]

Em outras palavras, a sociedade civil é um palco de antagonismos e contradições, permeadas por dependências mutuas entre todos os indivíduos. Já o Estado político funcionaria em um outro registro, o dos interesses públicos e universais, onde as contradições encontradas na sociedade civil já se encontram superadas. Em oposição à fragmentação da sociedade civil, o Estado político representaria a unidade. Desta forma, o Estado não reflete as contradições presentes na sociedade; ao contrário, remete à resolução destas contradições. Neste ponto, a partir das formulações deNorberto Bobbio, outro comentador da obra hegeliana, Brandão coloca que a sociedade civil comporta não somente o âmbito das relações econômicas e a constituição de classes, mas também a administração da justiça e o ordenamento administrativo e corporativo. Outro ponto destacado pelo comentador é que em Hegel esferas que estão a princípio situadas fora e anteriormente ao Estado – como a família e a sociedade civil – só existem e se desenvolvem no interior do próprio Estado. Assim, não podem existir fora do Estado. A conclusão final a que este raciocínio leva é a de que "não há história fora do Estado. Não há nada fora da história"[2]. Esta conclusão fundamentaria, então, as ambições do pensador alemão em"construir a filosofia enquanto expressão especulativa da própria história"[3].

Brandão apresenta a forma pela qual Hegel subverte a teoria contratualista da formação do Estado. Para Hegel, não há e nem nunca houve um pacto entre indivíduo e Estado; o sujeito não pode ao menos escolher participar ou não do Estado, sendo, inclusive, constituído por ele. Trata-se aqui de uma relação efetiva, e não de uma relação optativa. Considerar o Estado como produto de um pacto que visa atender apenas aos interesses individuais também não explicaria "por que o Estado pode exigir do indivíduo o sacrifício da própria vida em benefício da preservação e do desenvolvimento do todo"[4]. De fato, para Hegel, seguindo Brandão, a força associativa do conjunto Estado mais sociedade civil se expressa justamente na guerra – o que, conforme foi possível verificar, não corresponde aos interesses individuais de quem luta no conflito. Haveria aí um "todo", que justifica as partes.

O comentador apresenta também ao leitor a crítica ao jusnaturalismo formulada por Hegel. O filósofo alemão acusa os jusnaturalistas de se limitarem a uma concepção idealista do Estado, com vistas a estabelecer apenas aquilo que o estado deveria ser, negligenciando o que ele efetivamente é. Neste sentido, o comentador recorre a outro estudioso de Hegel, Jean Hyppolite, para apresentar a idéia de que a teoria do contratualismo, ao supor indivíduos isolados uns dos outros, teria apenas criado uma ficção científica – uma concepção de um homem fora da história, apenas na esfera do ideal. Logo, o contratualismo, enquanto idealista, ignora as manifestações concretas da história dos homens. Se Hegel propõe que nada existe fora da história, tal contratualismo idealista, portanto, não seria nada mais que uma mera abstração.

O Estado Moderno em Hegel é "um todo que subsiste na e através da mais extrema autonomização das partes"[5], ou seja, as partes se organizam com uma determinada autonomia, porém, de maneira a sempre se referir a um todo, uma unidade maior. O Estado se exerce enquanto em função das vontades particulares, porém, os indivíduos não vivem somente para seus interesses, negligenciando o universal. É uma relação de inter-dependência entre as duas esferas. Neste ponto, o comentador critica as leituras que tomam a filosofia hegeliana por totalitária. Tais leituras se baseariam no argumento de que tal formulação do Estado terminaria por esmagar os interesses individuais, na medida em que o Estado é maior que a soma das partes. Brandão rebate esta perspectiva argumentando que a totalidade a qual se refere Hegel cumpriria mais propriamente a função de desenvolver todas as determinações existentes, e não aniquilá-las. Não é questão de suprimir as diversidades, mas desenvolvê-las.

Brandão realiza então uma breve explanação da noção de liberdade concreta na filosofia hegeliana, tendo no Estado vinculado à razão "o absoluto no qual a liberdade encontra sua própria significação"[6].

Ao fim do texto, o comentador apresenta ao leitor em termos muito gerais, alguns outros autores que se caracterizaram por uma reação a Hegel, apontando tanto uma vertente esquerdista - que empresta da filosofia hegeliana a noção do materialismo dialético, que expressa o caráter transitório em tudo que existe -quanto outra direitista, que tende a enfatizar o idealismo hegeliano, fundamentado na acepção de que a história teria realizado sua meta final. Estes autores são Lukacs, Weil, Haym, e, como não poderia de ser mencionado, Marx.

O texto de Brandão é uma boa introdução ao pensamento hegeliano, apesar de possuir alguns pontos obscuros, como quando discute a questão da liberdade. Entretanto, ao considerar-se que Hegel é tomado por muitos como um pensador de difícil leitura, demasiadamente hermético e prolixo, o esforço do comentador em esclarecer alguns de seus princípios ganha relevo, especialmente em função do pouco espaço cedido ao mesmo para que realize este trabalho – problema este que inclusive é apontado no texto. Trata-se, portanto, de um bom comentário, que apesar de breve, merece ser estudado minuciosamente.



[1] BRANDÃO, Gilvo Marçal. Hegel: o Estado como realização histórica da liberdade. In: WEFFORT, Francisco (org) Coleção Clássicos da Política, volume II, organizada por Francisco Wefford. Editora Ática, São Paulo, 2002, p; 105

[2]Idem, ibidem, P. 106

[3] Op. Cit p. 106

[4] Op. Cit, p.. 106

[5] Op. Cit, p. 109

[6] Op. Cit. p. 112