Resenha acerca do capítulo II do livro: Vigiar e punir de Michel Foucault.

Fábio Santos de Andrade

Julho de 2009

Capítulo II

Os recursos para o bom adestramento

Discute-se como as práticas avaliativas tornaram-se dispositivos de vigilância permanente e de bom adestramento docilizando corpos e mentes. Há um constante jogo de poder/saber que se evidencia na avaliação: desde a sujeição dos alunos e alunas às regras estabelecidas na e pela escola, até a circunscrição do que é permitido, ou não é permitido, pela sociedade para transformar algo em saber escolarizável. Examinam-se como as práticas avaliativas podem gerar efeitos relacionais de controle e de disciplinamento, mediante práticas de sujeição e de resistência operadas pelo entrecruzamento de tecnologias de si e relações de poder, interferindo na constituição de subjetividades.

A vigilância hierárquica

O sonho de uma sociedade perfeita é atribuído, historicamente, aos filósofos e juristas das Luzes. Mas Foucault, céptico quanto à bondade das suas intenções, considera que havia sobretudo um sonho de militarizar a sociedade, tendo como referências fundamentais as engrenagens de uma máquina, as coerções permanentes, os treinos indefinidamente progressivos, a docilidade automática. Enfim, uma espécie de disciplina nacional, o que implicava a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, como formas por excelência de adestramento dos corpos e das mentes. Começa por afirmar que, na época clássica, a par das grandes descobertas científicas, se desenvolveram técnicas de vigilância, olhares que viam sem ser vistos, verdadeiros observatórios da multiplicidade humana que almejavam um saber novo sobre o homem, através de técnicas e de processos que o submetessem e permitissem a sua utilização. E o paradigma desses observatórios seria o acampamento militar, com a sua geometria, as suas filas, as suas colunas, a distribuição espacial das tendas.

A sanção normalizadora

No contexto histórico de suavização das penas generaliza-se a idéia de utilizar a prisão para cumprimento de praticamente todas as penas e castigos. Os reformadores não a aceitavam porque aparecia marcada pelos abusos do poder despótico do soberano, e chegam mesmo a pedir a sua supressão. Mas, surpreendentemente, em menos de 20 anos a prisão mudou de estatuto. O Império decidiu-se pelo encarceramento como medida ótima e programou um grande edifício carceral, ajustado aos patamares da divisão administrativa, uma grande arquitetura, complexa e hierarquizada, integrada no corpo do aparelho do Estado. O patíbulo e o cadafalso do corpo do supliciado cedem lugar a uma materialidade totalmente diferente, a uma física do poder totalmente diferente, a uma maneira totalmente diferente de investir o corpo do homem. Os muros altos da prisão passam a simbolizar os novos castelos da ordem civil, em França e por toda a Europa.

Neste contexto, na época clássica foram construídos alguns dos que viriam a ser considerados os grandes modelos do encarceramento punitivo. O objeto da pena não eram já representações, mas de novo o corpo e a alma do indivíduo. Os instrumentos utilizados não eram mais os discursos, os sinais, as mensagens implícitas, como na época dos suplícios, mas formas de coerção, esquemas de limitação, exercícios repetidos. A finalidade já não era reconstruir o sujeito de direito, o cidadão preso ao pacto social, mas de novo o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras e ordens, e que interiorizaria uma autoridade exterior a si.

O exame

O exame, em Foucault, é um conceito muito mais abrangente que um mero jogo de perguntas e respostas, um sistema de notas ou classificações. O exame é válido para todas as ciências humanas, da psiquiatria à pedagogia e ao diagnóstico clínico, passando pelo simples ato de contratação de mão-de-obra. E tão importante é, que Foucault considera mesmo que uma das condições essenciais para a libertação epistemológica da medicina, no final do séc. XVIII, foi à organização do hospital como aparelho de examinar. As inspeções e visitas médicas de antes, irregulares, rápidas e descontínuas, transformaram-se numa observação regular, que punha o doente em situação de exame quase permanente. Quanto ao hospital em si, de local de assistência vai passar, por força do exame, a local de formação e aperfeiçoamento científico, de constituição de um saber, de afirmação da disciplina médica. O mesmo processo e o mesmo tipo de modificações atravessam a escola, tornada uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que, para além de medir, classificar e sancionar, força uma comparação permanente de cada um com todos. Representando uma verdadeira e constante troca de conhecimentos e saberes do mestre para o aluno, a escola torna-se no local de elaboração da pedagogia, e marca o nascimento desta como ciência. No exército, por seu turno, em função de constantes inspeções e de manobras indefinidamente repetidas, desenvolveu-se um imenso saber tático.

Para Foucault, porém, a mais relevante consequência do exame situa-se ao nível da individualidade do indivíduo. No exército, nos hospitais e nos estabelecimentos de ensino, foram criadas e desenvolvidas técnicas e inovações importantes (registros e anotações escritas) relativas à identificação, à descrição, à evolução dos corpos e das mentes, consubstanciadas numa série de códigos homogeneizantes: código físico, código médico, código escolar, código militar que, ainda que bastante rudimentares na sua forma qualitativa e na sua forma quantitativa, marcam o momento de uma primeira formalização do individual dentro das relações do poder.

ANÁLISE CRÍTICA

Dependendo das épocas e dos regimes em vigor, bem como das tradições, dos usos e dos costumes dos povos, assim essa tentativa de subjugação usou táticas, estratégias e técnicas mais ou menos violentas (os suplícios), mais ou menos "viris" (o encarceramento), mais ou menos refinadas (a separação, o isolamento). Com todas se pretendia castigar ou, numa perspectiva mais humanizada, tratar o diferente até que se rendesse e acabasse por se tornar igual. A uniformização, a homogeneização, foram e são utopias de qualquer poder, político, econômico, corporativo, social... Alma sã em corpo são, objetivo já perseguido na Antiguidade Clássica pelos gregos continua a ser, através dos séculos e dos diferentes modelos políticos, aquilo que se efetivamente se pretende: chegar à alma, ou à mente do homem, através da disciplina/subjugação do seu corpo, disciplinando-a e subjugando-a também: controlar a mente através do controle do corpo.

Referência Bibliográfica

FOUCAULT, M. vigiar e punir. Petrópolis: ED. VOZES, 2003.