Por Francisco de Carvalho

O objectivo do presente estudo é analisar a relação entre as representações sociais do HIV/SIDA das Testemunhas de Jeová com as suas atitudes diante dela e da sua prevenção. O estudo partiu do pressuposto de que a representação social é um processo social que envolve comunicação e discurso ao longo do qual significados e objectos sociais são construídos e elaborados, e que a pesquisa qualitativa é importante para compreender os valores culturais e representações de determinados grupos sobre temas específicos. Daí a nossa opção por este método. O instrumento de recolha de dados consistiu em entrevistas onde foram seleccionadas para o efeito oito pessoas. Assim, partindo da constatação de que as atitudes diferentes que os actores tomam em relação a determinada doença podem estar ligadas a um conjunto de ideias que estes fazem sobre o fenómeno da doença e de que as opiniões e concepções sobre o HIV/SIDA variam de grupo para grupo de acordo com as suas especificidades, levou-nos a interrogar sobre como o HIV/SIDA é visto entre as Testemunhas de Jeová. O trabalho tem como orientação a perspectiva teórica do conceito de representação social, entendida como uma forma elaborada e partilhada de conhecimento social que orienta as condutas dos indivíduos diante dos objectos sociais. Os resultados deste estudo indicaram que, de uma forma geral, os crentes desta congregação têm um bom conhecimento sobre o HIV/SIDA, suas principais vias de transmissão e os principais mecanismos de prevenção. As estratégias de prevenção defendidas por este grupo são a abstinência antes do casamento e fidelidade durante o casamento. Estas duas estratégias diferem do discurso oficial que advoga o uso do preservativo. O preservativo neste grupo é visto como uma forma de promoção da promiscuidade sexual. Estas duas estratégias estão directamente ligadas às suas crenças religiosas apreendidas através dos ensinamentos bíblicos, ou seja, o que se deve fazer para fazer "a vontade de Deus". Quanto à prevalência do HIV/SIDA no país e em particular entre os jovens é explicada, predominantemente, pela "imoralidade sexual", e pela "falta de seriedade nos serviços hospitalares". Portanto, podemos concluir que as representações sociais do HIV/SIDA entre os membros das Testemunhas de Jeová são influenciadas por valores morais e crenças religiosas.

I. INTRODUÇÃO

Pretendemos neste trabalho fazer uma leitura crítica do artigo intitulado "Obstáculos ao uso do preservativo entre estudantes de uma escola secundária na cidade de Maputo, Moçambique".  Este artigo foi publicado na Revista "Routledge, part of the Taylor & Francis Group" e o título original é "Obstacles to condom use among secondary school students in Maputo city, Mozambique", escrito por Sandra Manuel afecta no "Department of Social Anthropology, University of Cape Town, South Africa". O meu interesse neste artigo, que por sinal foi premiado como melhor artigo, começou com a sugestão feita por Patrício Langa de fazer uma critica tendo em conta os ensinamentos do professor Elísio.  Para mim é um grande desafio comentar este artigo, não por ter sido galardoado por um prémio de melhor artigo, mas por se tratar de um tema que tem dado que falar e eu também me atrevo em dizer algo sobre o assunto.

Parto do princípio de que a questão do uso do preservativo é muito complexa e por assim o ser há necessidade de discutirmos certos estudos, como é o caso deste que temos em mão, que procuram compreender os factores sociais associados ao uso e/ou não do preservativo. Estes estudos partem do pressuposto de que existe uma relação entre um aumento de números de casos de infecção pelo HIV e o não uso de preservativo e que as percepções que indivíduos têm sobre o valor do preservativo nas suas relações sexuais impedem a adopção de relações sexuais protegidas.

A crítica de um trabalho sociológico – apesar de ser um trabalho antropológico parto de principio que as fronteiras entre estas duas disciplinas são ténues - obedece cinco aspectos: a teoria, hipótese, operacionalização dos conceitos, trabalho de campo e interpretação (Macamo, 2004). Quanto ao artigo que temos em disposição, tratando-se de "um relatório etnográfico que apresenta de forma exaustiva resultado de uma pesquisa na perspectiva de produzir generalizações" (Ibid), não vamos seguir escrupulosamente a lógica acima exposta. Faremos sim uma leitura crítica sobre alguns aspectos discutidos no artigo tomando em consideração o trabalho de campo a interpretação e as  conclusões.

II. Resumo do Artigo

O presente artigo aborda os factores que estão associados ao não uso do preservativo entre estudantes de uma escola secundária da cidade de Maputo. Para a recolha de dados foram seleccionados 18 estudantes, oito homens e dez mulheres de idade entre 16 a 18 anos de idade. Questionário, grupo de discussão focal e entrevista semi-estruturada foram os instrumentos de recolha de dados. O estudo partiu de uma abordagem do interaccionismo simbólico para compreender como é que os jovens gerem o seu quotidiano, sobretudo quais os significados que eles atribuem as diferentes práticas sócio –culturais. O estudo não partiu de nenhuma hipótese, mas pressupõe que existem obstáculos ao uso do preservativo entre os jovens na cidade de Maputo, ou seja, os jovens da cidade de Maputo raras vezes usam preservativos. As conclusões deste estudo apontam que a confiança e o amor são os argumentos usados pelos jovens citadinos para não usarem preservativo. Este facto os torna imunes a contrair o vírus do HIV. Para, além disso, segundo este estudo, as campanhas de prevenção, que promovem o uso do preservativo somente em relações ocasionais, só reforçam a percepção de que o preservativo é uma questão de tipo de parceiro sexual, ocasional ou permanente, no primeiro usa preservativo e no segundo não usa. São apontados também alguns factores agravantes que levam ao não uso do preservativo, como a falta de informação "precisa", ausência de educação sexual em casa e na escola e a desigualdade de género.

III. Trabalho de Campo

Começando pela amostra, foram seleccionados 10 raparigas e 8 rapazes de idade compreendida entre 16 a 18 anos de uma escola pública. O estudo não refere ao nome da escola nem a sua localização na cidade de Maputo. O critério de selecção da amostra, se bem que foi omitido, não aparece descrito no trabalho. O estudo refere apenas que são jovens da classe média baixa, conceito problemático, se termos em conta a nossa realidade em que a estrutura de classe não me parece ser clara. Quais são as características que faz um grupo de pessoas pertencer a uma classe média baixa? É o facto de viverem em áreas residenciais no centro de Maputo, em famílias nucleares, ter acesso a música estrangeira ou estarem na moda? Parece-me um critério muito vago. Será a que a variável classe social é importante para este estudo?

Por fim a autora descreve o quotidiano destes jovens, hábitos, gostos e diversões. Não percebo para que propósito serve esta descrição. Será que é para sustentar que os jovens da cidade de Maputo têm mais ou menos este tipo de rotina?

IV. Resultados

Nesta parte a autora estruturou os seus resultados em cinco temas: amor e confiança, poder de confiança e sexo natural, discurso oficial de fidelidade e o sexo ocasional, imunidade imaginada, mulher decente e homem com desejos incontroláveis, tabus sobre assuntos sexuais e a falta de informação sobre a sexualidade. Vou explorar apenas os três primeiros temos que do meu ponto de vista acho problemáticos a sua interpretação.

4.1. Amor e Confiança

Assim, no primeiro tema, os resultados deste estudo mostram que existe no seio dos jovens uma forma institucionalizada de viver uma relação amorosa entre homem e mulher, designado por namoro. Pressupõe-se que seja uma fase que antecede o namoro. O namoro é visto como um relacionamento estável, pois baseado na confiança e no amor. Por causa desta ideia de fidelidade muitos jovens não sentem necessidade de usar preservativo. O conceito de confiança é usado neste estudo como sinónimo de fidelidade, de crença no parceiro sexual. A confiança neste estudo é vista também como um obstáculo a prevenção do HIV, primeiro porque estes jovens, ao confiarem nos seus parceiros põem de lado o uso do preservativo, segundo pelo o facto de os jovens estarem constantemente a mudar de namorados. O que ao meu ver é discutível nesta interpretação, é facto da autora ver no preservativo como a única alternativa de prevenção e ver as outras como obstáculos ao uso do preservativo. A fidelidade entre parceiros sexuais também é uma das formas de prevenção. Se ela existe como tal ou seja uma fidelidade mútua baseada na confiança e no amor, então é uma alternativa ao não uso do preservativo. O amor é visto no seio destes jovens como uma condição primeira numa relação de namoro. Os jovens acreditam que se estão com ele ou ela  porque amam, pelo menos esse é o ideal. Se amam-se então não se traem e se não se traem são fieis uns aos outros. Pelo menos este é o pressuposto de amor versus fidelidade. O problema começa, que é geral em toda pesquisa que busca captar percepções de certos grupos sobre as suas práticas, na omissão e na mentira. Como captar estas duas dimensões? Do mesmo modo que se duvida que alguns jovens usam preservativo, pode-se duvidar também da própria fidelidade. Todas alternativas são passíveis de serem violadas. O que talvez deve se procurar perceber nestes jovens é o significado e a importância que eles dão a uma relação sexual e ao preservativo. A questão do prazer sem ou com preservativo. Para estes jovens é mesma coisa uma relação sexual com preservativo e uma sem preservativo? Se calhar não usam o preservativo por achar que a "borracha tira prazer à relação ou dificulta a relação. Por outro lado poderia procurar perceber qual a importância de não usar preservativo numa relação, quem sabe poderia chegar a constatações muito mais interessantes.

4.2. Poder de confiança e sexo natural

Neste item os dados sugerem a existência de um outro tipo de relacionamento que coexiste com a relação firme, o namoro, entre os mesmos inqueridos, em que normalmente os parceiros sexuais são designados por pito ou pita onde o uso de preservativo é considerado fundamental. Se existe uma relação de namoro que pressupõe haver amor e confiança, como é possível as mesmas pessoas terem admitido ter um  pito ou uma pita? O amor e a fidelidade são sentimentos absolutos. Aqueles que amam e são fieis não podem admitir a existência de outro tipo de parceiro sexual. Admitirmos isso implica pormos em causa o conceito de namoro, amor e fidelidade, por conseguinte cairmos na promiscuidade sexual onde a infidelidade e a simples busca do prazer sexual dominam. O que pretendemos dizer é que numa relação de namoro baseada em amor e fidelidade não se admite pito ou pita, porque este tipo de relacionamento retira a confiança que o primeiro pressupõe. Ou estes jovens têm namorados/as e os/as amam e são fieis uns aos outros e alternativa de não usarem o preservativo não constituem nenhum obstáculo as campanhas de prevenção, ou estes jovens não são fieis aos seus parceiros – quer as namoradas/os e os/as pito/as - e correm o risco de não usarem preservativo nas duas relações. E como consequência desta interpretação o que se deve enfatizar nas campanhas de prevenção seria talvez um "não" às relações ocasionais, porque os parceiros ocasionais podem num momento posterior se tornar permanentes. Ter um/a ou mais namorados/as entre os jovens citadinos da capital começa a ser visto como algo normal sem pressupor hierarquias em termos de grau de intimidade e de compromisso. Os homens sobretudo – , mas as mulheres na clandestinidade -  conseguem assumir duas ou mais namoradas e argumentar que amam a todas elas, podem até não confiarem em todas mas, o simples facto de amá-las pode levá-los a não usarem preservativos com todas elas. A construção social da figura de pito ou pita é uma forma de encobrir a infidelidade patente nas relações de namoro ou seja dar legitimidade a necessidade de ter um outro parceiro com um compromisso menos "sério". Admitir a existência desses tipos de parceiros implica admitir uma possibilidade ruptura no relacionamento considerado firme. Na verdade o namoro nos nossos tempos deixou de ser encarado como uma fase de preparação para o casamento, mas como uma espécie de pacto social com vista a regular e legalizar as relações sexuais. Provavelmente a instituição do namoro está tão em crise como a instituição do casamento e que a institucionalização de relacionamentos precários como a que a autora se refere de pito e pita é que está em voga. Se olharmos desta forma o comportamento sexual dos jovens é obvio que a nossa sugestão para as campanhas será o uso do preservativo e que relações como o namoro e o casamento que enfatizam a fidelidade de certeza serão vistas como um entrave ao uso do preservativo. Quanto ao facto de os jovens, sobretudo os rapazes recusarem usar preservativo quando as namoradas os pedem não deve ser visto simplesmente como uma questão de confiança ou desconfiança, mas, talvez, uma certa falta de familiaridade que estes jovens têm com o preservativo. Os jovens ainda não interiorizaram o preservativo como um elemento que faz parte de uma relação sexual. O estranhamento que o preservativo traz nestas pessoas faz com que elas vejam-no como um intruso na relação. Seja como representação da desconfiança seja como uma barreira ao pleno gozo do sexo. Outro elemento que se poderia acrescentar a esta resistência de uso preservativo é a questão do medo. O medo pode ser factor de mudança de atitude ou de resistência a mudança. Se, por exemplo, educássemos as nossas crianças a não brincarem com o fogo porque queima, elas passariam a ter medo do fogo. Do mesmo jeito se educássemos os jovens a não brincar com sexo porque podem apanhar SIDA, os jovens passariam a ter medo do vírus. Mas há grandes diferenças nestes dois casos. Primeiro porque o medo da criança de se queimar é visível, sensível e imediato. Segundo porque entre brincar com fogo e não brincar com fogo, as vantagens  são sentidas para a segunda situação. Pode-se deixar de brincar com fogo e não se perder nada. Mas se continuamos a brincar com fogo se calhar vai nos trazer grandes desgostos. As crianças facilmente perceberão a diferença e saberão tirar vantagem desta lição. No segundo caso a coisa é complexa. A coisa é equacionada de seguinte maneira. Se usarmos o preservativo perdemos o verdadeiro prazer sexual, naturalizado como sendo o carnal, e se não usarmos o preservativo preservamos a nossa identidade masculina – o poder de tomar decisão e a identidade feminina – obediência a vontade do homem. Entre o medo de contrair o vírus HIV e o medo de perder o parceiro, no caso das mulheres / vontade de uma relação "carne – com – carne", no caso dos homens, qual é o mais fácil de assumir? O problema é que o medo de contrair o SIDA não é tão evidente como o segundo medo. Os jovens que lucidamente recusam a usar preservativo não acreditam que podem contrair ou transmitir o vírus, eles têm confiança que sua ou seu parceiro/a não está infectado/a e  por isso neste caso é difícil de haver medo. O medo existe sim, mas quando olham para o outro. Eles acreditam que este problema não é com eles, mas com os outros. O medo de perder o parceiro e a vontade de relação sexual sem intermediário faz com que o preservativo tenha pouca familiaridade nestes jovens, neste aspecto concordamo-nos Sandra.

4.3. Discurso oficial de fidelidade e relações ocasionais

A autora considera que as campanhas de prevenção em Moçambique são responsáveis pela transmissão de certo tipo de mensagens enganosas como aquela "narrativa moralística" de que os jovens simplesmente não devem fazer sexo, o que implica que nestas campanhas de prevenção se focalizassem nas pessoas casadas ou pessoas vivendo com o HIV. Mensagens do tipo "seja fiel ao seu parceiro e use preservativo nas relações ocasionais" são frequentes nestas campanhas. As consequências disso, segundo Manuel, é que, a fidelidade não é uma coisa que as pessoas praticam todo momento e quando as pessoas estão numa relação ocasional nem sempre usam o preservativo. Outro problema destas campanhas ao focalizarem a sua atenção em casais é o facto de ignorarem a existência de relações entre jovens em que a mudança de parceiro é frequente, que implica forçar os jovens a viverem modelos designados para pessoas casadas ou vivendo juntas.

Não percebo as coisas neste sentido, o problema principal deste Slogan é a sua contradição interna. Aconselhar a fidelidade como método de prevenção exclui automaticamente a existência de relações ocasionais. As duas coisas não podem ser aconselhadas aos mesmos pares. Ficaria melhor se dissesse seja fiel ao seu parceiro caso contrário use o preservativo. Ou use preservativo em todas relações, ou seja, sempre fiel ao seu parceiro. Ou partimos de um pressuposto de que a fidelidade está muito aquém de ser uma verdadeira prática entre os jovens ou ainda acreditamos que ela existe e deve ser incentivada como tal sem pressupor fraquezas do tipo traição. Existem instituições que podem educar os jovens nesta direcção como as igrejas à família e a escola em certa medida. Ao partirmos do pressuposto de que a infidelidade é uma prática comum e irremediável entre jovens não temos outra saída senão aconselharmos ao uso do preservativo. Outro problema é o conceito de relações ocasionais, que tipos de relações se referem mesmo? Ou que tipo de parceiros se referem? Será com as prostitutas e as pitas para os homens e os pitos para as mulheres? Se pensarmos nas prostitutas, são poucos homens que estariam interessados em uma relação "nhama com nhama" e da parte delas o medo também é evidente. Na relação com os pitos/as a coisa é mais complicada. Até que ponto estas relações são ocasionais? Sendo uma relação a dois nem sempre os dois estão de acordo sobre este estatuto. Um pode gostar do outro e querer uma relação séria de tipo namoro e abandonar o parceiro anterior, e o outro também poder cair no jogo de sedução. Nestes tipos de relações não está claro na prática onde estamos em presença de relações ocasionais, se é com as namoradas/os ou com as pitas/os, porque as possibilidades de troca de parceiros estão abertas. Mesmo entre casais, quando há relações ocasionais seja com as prostitutas ou com o/a amante - designado por adultério - as possibilidades de haver rupturas estão abertas. Temos que nos perguntar o que leva as pessoas a se traírem? Se for um simples desejo ou impulso sexual por outrem, é simples como dizem nestas campanhas recomenda-se que se use o preservativo. Mas será que é isso só? Então porque há divórcio? Os homens e as mulheres têm sentimentos, gostos e interesses e quando cobiçam a outra ou o outro não implica simplesmente o desejo de os/as possuírem naquele momento, mas implicam, por exemplo, que tenham gostado dele/a e que tirarão algum proveito material ou sentimental nesta outra relação. Por isso é problemático considerar as relações fora do casamento e de tipo pita/o como ocasionais porque elas em certo momento ganham, se excluirmos as prostitutas – salvo algumas excepções – o estatuto de permanente. Nestes casos a fidelidade como método de prevenção pode não ser eficaz, recomendando para tal o uso de preservativo em todas relações sexuais. Quando se opta pela fidelidade é natural que não se use preservativo salvo para se evitarem gravidezes e quando se está sobre existência da promiscuidade sexual irremediável deve-se usar preservativo sempre.