RELATÓRIO FINAL DA DISCIPLINA CIDADE CONSTITUCIONAL DO URUGUAI

A disciplina ACH 3666 Ciudad Constitucional: Montevideo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) foi realizada a partir da cooperação da Universidade de São Paulo (USP) e da República Oriental del Uruguay. Essa cooperação foi possível devido ao empenho dos professores doutores Marcelo Arno Nerling, Wagner Iglesias e Jaime Crozatti em formatar o projeto. Os professores citados foram responsáveis por realizar os contatos com os órgãos governamentais e universidades uruguaias, planejar nosso roteiro de visitas, organizar a logística e o orçamento dos gastos realizados para viabilizar a viagem. Sendo uma iniciativa pioneira na USP, o projeto inicialmente enfrentou dificuldades em relação ao financiamento pela Universidade. Porém, com trabalho árduo, dedicação e o know-how construído em outra disciplina que configura como a mais demandada da USP (Cidade constitucional para Brasília), foi possível a realização do projeto com sucesso.

O projeto da viagem didática em Montevidéu é um projeto de extensão, pesquisa e ensino diferenciado que promove a formação da pessoal e social dos indivíduos por meio de desafios diários, principalmente por ter sido pioneiro. Esses desafios consistem na quebra da barreira da sala de aula, universidade, zona leste de São Paulo e finalmente Brasil, pois quando é proposto um projeto dessa magnitude os graduandos são retirados de sua zona de conforto, não só porque estão atravessando a fronteira de seu pais, saindo dos lugares que conhece, das realidades que costuma refletir. Mas porque saem de sua rotina, conhecem o novo, o diferente, sentem-se incomodados, desafiados. E é esse que deve ser o intuito das atividades acadêmicas, fazer com que as pessoas fiquem instigadas com a reflexão, com o alto conhecimento para daí construir sua relação com o outro, discordando, discutindo e construindo conjuntamente. Podemos transpor essa lógica para o espaço, para o local que estamos, que existimos, que pertencemos ou não. A frase de Cervantes sempre utilizada pelo professor Nerling “aquele que lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito”, realmente reflete o que vivenciamos nessa viagem.

Nesse sucinto relatório para a disciplina ACH 3666 abordarei conjuntamente os aprendizados das atividades que realizamos e vivenciamos em Montevidéu, destacando a formulação, implementação e avaliação das políticas públicas de acordo com as relações Estado e sociedade. E por fim, farei uma conclusão do impacto dessa atividade para os gestores de políticas públicas.

Discutimos com professores e grupos da sociedade organizada uruguaia sobre as políticas que envolvem a questão do aborto, matrimônio igualitário e sobre a legalização da maconha. Vimos que para essas três políticas públicas serem realizadas houve uma articulação concentrada e bem informada da sociedade civil, essa, no Uruguai, tem constante e permanente participação na formação de agenda de seu governo. Por mais que existam diversos outros grupos de interesse, a sociedade civil organizada consegue se destacar por conta de sua forte presença nas discussões, assembléias, votações. Por conta disso, consegue ter acesso as informações, construir conhecimento e por fim, consolidar a opinião pública que move o Estado e o governo. As políticas públicas são formuladas bottom up recebendo maior apoio da população que se mantém coesa e que fiscaliza as ações do Estado. Com isso, o papel do Estado é estritamente atender as demandas da população e não estabelecer um poder coercitivo.

A lei N°18.426 “DEFENSA DEL DERECHO ALA SALUD SEXUALY REPRODUCTIVA”, por exemplo, foi resultado de pressões políticas e sociais.Em seu Artigo1° diz: “(Deberes del Estado).- El Estado garantizará condiciones para el ejercicio pleno de los derechos sexuales y reproductivos de toda la población. A tal efecto, promoverá políticas nacionales de salud sexual y reproductiva, diseñará programas y organizará los servicios para desarrollarlos, de conformidad con los principios y normas que se establecen en los artículos siguientes.” Como podemos ver, a sociedade civil estabeleceu um dever ao Estado que lhe garante a saúde pública. Essa lei não é uma lei para o aborto e sim uma lei para a melhoria das relações Estado -sociedade de forma que o Estado seja um auxiliador em momentos delicados como o da gravidez e da primeira infância. Dessa forma, visa universalizar o atendimento da saúde sexual e reprodutiva, por meio de maior divulgação cientifica, melhor atendimento médico-hospitalar, maior discussão na educação básica, evitar mortes de mulheres na gravidez e proteger os direitos das crianças e adolescentes.

O matrimônio igualitário também passou por ampla discussão o que ocasionou a aprovação da LEI Nº 19.075 onde se aponta que:

Artículo 1º.- Sustitúyese el artículo 83 del Código Civil, por el siguiente: “Artigo 83 – El matrimonio civil es la unión permanente, con arreglo a ley, de dos personas de distinto o igual sexo. El matrimonio civil es obligatorio en todo el territorio del Estado, no reconociéndose, a partir del 21 de julio de 1885, otro legítimo que el celebrado con arreglo a este Capítulo y con sujeción a las disposiciones establecidas en las leyes de Registro de Estado Civil y su reglamentación". Logo, houve o reconhecimento dos diretos das pessoas que não seguem os padrões heteronormativos e com isso se estende a cidadania com seus direitos e deveres.

Outro caso importante é a Lei de regularização da maconha que trata sobre a importação, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição. A Lei 19.172 dispõe no Artigo 4° “ La presente ley tiene por objeto proteger a los habitantes del país de los riesgos que implica el vínculo con el comercio ilegal y el narcotráfico buscando, mediante la intervención del Estado, atacar las devastadoras consecuencias sanitarias, sociales y económicas del uso problemático de sustancias psicoactivas, así como reducir la incidencia del narcotráfico y el crimen organizado. A tales efectos, se disponen las medidas tendientes al control y regulación del cannabis psicoactivo y sus derivados, así como aquellas que buscan educar, concientizar y prevenir a la sociedad de los riesgos para la salud del uso del cannabis, particularmente en lo que tiene que ver con el desarrollo de las adicciones. Se priorizarán la promoción de actitudes vitales, los hábitos saludables y el bienestar de la comunidad, teniendo en cuenta las pautas dela Organización Mundialdela Saludrespecto al consumo de los distintos tipos de sustancias psicoactivas.”

Ou seja, a liberalização da maconha foi feita pensando em combater o narcotráfico e com isso reduzir a mortalidade feita pelo crime. Porém, não foi realizada sem as devidas medidas de saúde pública e econômica. Todos os cidadãos Uruguaios possuem o direito de ter tratamento e acompanhamento médico em caso de necessidade de reabilitação. Além disso, a quantidade de cultivo é delimitada e regulada pelo governo. Os indicadores apontam que realmente o tráfico reduziu drásticamente. A arrecadação do Estado aumentou e houve melhoria na segurança e saúde da população. Esse é um grande exemplo de como a resolução de problemas pode ser feita quebrando o histórico da luta contra a algo, ou seja, mudando a visão sobre o objeto de estudo e assim conseguir ver um horizonte de possibilidades de soluções para o problema. As políticas públicas uruguaias são marcadas pela mudança de perspectiva, inovação e por fim constante acompanhamento da sociedade civil organizada.

Outra política pública de destaque no Uruguai é a educação financeira. Para os órgãos públicos é importante que as pessoas entendam o sentido de existirem impostos, como e para quê são criados. Assim as pessoas têm uma visão melhor de onde está sendo aplicado os recursos e assim a sonegação abaixa, pois os cidadãos querem contribuir com a melhoria do espaço público. Mas essa não é tarefa fácil. Exige diversos projetos e avaliação contínua. O Plano Ceibal é um deles. Nesse projeto cada aluno recebe um laptop com conteúdos didáticos e lúdicos para auxiliar a educação financeira.

O Uruguai têm atualmente um alto desenvolvimento educacional e a cada ano melhora suas políticas visando dar um ferramental de conhecimentos para sua população. O Plano Ceibal enfrentou inicialmente alguns problemas como a falta de tomadas nas escolas, o que impossibilitava recarregar o aparelho; a falta do sistema wi - fi em muitas escolas, o que impedia o funcionamento uma vez que é necessário o acesso à internet; a logística era deficitária para trocas e reposição, deixando alguns sem o aparelho ou com o aparelho desatualizado; houve alguns problemas com os docentes em implementar o sistema pois alguns achavam que dispersava a atenção do estudante; a elaboração de indicadores de avaliação é deficitária pois os resultados são a longo prazo. Esses problemas foram contornados pelo governo uruguaio nos primeiros anos de implementação do projeto. A questão de infraestrutura e logística foi corrigida, os professores foram habilitados a utilizar o aparelho e ajudaram a melhora-lo, e estão sendo realizadas pesquisas para fomentar a construção de indicadores para mensurar o impacto do projeto.

Todas essas políticas públicas apresentadas precisam ser orientadas não somente para a coesão social dos cidadãos uruguaios, mas sim para a integração com os países vizinhos e com o mundo. Dessa forma, não é possível implementar e manter essas políticas públicas sem pensar nos impactos que causam aos outros países. Muitas das políticas adotadas pelo Uruguai são pioneiras e inovadoras, porém, devido a extensão do país, densidade demográfica e homogeneidade política o país consegue implementar com maior facilidades que seus países vizinhos que não possuem uma sociedade civil organizada tão forte. Com isso, há uma dificuldade de diálogo entre os países. O Mercosul que antes tratava mais sobre a questão econômica, atualmente também estabelece um papel político e diplomático.  A livre circulação de pessoas e a garantia dos direitos das mesmas, em todos países, garantem a cidadania e os direitos humanos.

Portanto, as políticas públicas são implementadas com sucesso quando há integração das pessoas e países e foi essa a conclusão que essa viagem didática trouxe para a formação dos futuros gestores públicos. O tomador de decisão precisa conhecer as leis e os stakeholders das políticas públicas para conseguir alinhar os indivíduos em prol da melhoria social, política e econômica. Nós realizamos diversas atividades, vimos outras realidades e ideologias distintas, mas o intuito não foi trocar radicalmente de idéia e sim refletir sobre nós mesmos e nossa atuação na sociedade, para que, conforme lapidamos e melhoramos nossa essência como ser humano, esteja preparado para pensar em nossos deveres e atuar de modo efetivo para a melhoria da gestão de políticas públicas nacionais/mundiais.