UFC

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Disciplina: Antropologia I

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO

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“CAPOEIRAGEM NA PRACINHA DO CAMPO DO REMO”

 

 

 

Ledervan Vieira Cazé

 

Fortaleza

2014

 

 

“O capoeira tem forma abstrata, o momento lhe concede ser ator, guerreiro, mocinho e vilão, ou simplesmente integrar tudo num conjunto teatral de malícia no cenário real da vida do protagonista.”

Sandro Capoeira

 

 

  1. 1.     Introdução

 

Os estudos antropológicos, ainda que recentes, quando analisados cronologicamente a partir da gênese das ciências naturais, por exemplo, tomam para si a responsabilidade de fazer um tipo diferenciado de ciência para além do empirismo clássico, através de sua abordagem peculiar, a “observação participativa”. A relativização cultural, na concepção de um estudo do homem inteiro, proposta por esta disciplina, trouxe à ciência, como um todo, uma novíssima forma de perceber o objeto de estudo. Abrir-se ao novo, compreendendo a si através do entendimento do outro, sem aceitar, de fato ou não, sua legitimidade revolucionou metodologicamente toda forma de produzir conhecimento.científico.

Nesse sentido, o campo torna-se um todo nos estudos etnológicos, pois propõe descentralizar o olhar. Em suma, a marca do antropólogo é a abordagem do objeto e não a contemplação do objeto em si, através da descentralização do seu olhar pessoal por um viés cultural, sociológico e pela observação participante do vivenciado em campo, a partir de uma rede de dependência mútua da qual ele também faz parte (Bauman e May, 2001).

Assim, o respectivo trabalho preocupa-se, de maneira sintética, a estudar ativamente (observação participante e experiência pessoal) o pequeno cotidiano de um encontro regular de capoeiristas (praticantes de capoeira) da periferia do Município de Caucaia para a prática da “capoeiragem” (prática de capoeira). Tais indivíduos de nossa sociedade, sob o referencial dominante, por vezes, foram considerados marginais e carregam simbolicamente o pré-julgo dos opressores que os denominaram de “vadios”. Do ponto de vista histórico e jurídico ficaram sob a apreciação da lei das Contravenções Penais (Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil de 1890,) e foram tratados até a década de 1930 como “capoeiras”, sinônimo e “personificação” da vadiagem.

Retomando esta introdução, trata-se este trabalho de uma simples etnografia, ainda que vivenciada, de um encontro de “vadios capoeiristas” secularmente simbolizado por uma “roda de capoeira”, evento onde capoeiristas compartilham seus ensinamentos filosóficos, através de debates informais ao “pé do berimbau” (local onde começa o círculo e inicia o jogo) e suas habilidades físicas, que são mensuradas através do “jogo”, termo usado para designar a prática da capoeira, variando este, de acordo com o ritmo e a cadência dada aos instrumentos que compõem a roda de capoeira (Silva, 2010). E nessa perspectiva, o jogo pode ser amistoso, ou não.

Para alcançar o objetivo proposto realizei conversas informais com os praticantes de capoeira no local, considerando suas especificidades além de uma observação participante e envolvimento pessoal no evento em si. Posteriormente, realizei pesquisa documental sobre a totalidade daquele espaço público e da prática dessa manifestação cultural ali e, a partir desse levantamento, elaborei um sucinto recenciamento de momentos distintos do evento com base na própria experimentação desde pesquisador.

Ressalte-se ainda que, para sistematizar metodologicamente esta incipiente tentativa de produzir um relatório essencialmente antropológico, recorri aos ensinamentos teóricos e práticos na bibliografia específica de “Argonautas do Pacífico Ocidental”, de Bronislaw Malinowski, 2ª edição de 1978. Portanto e nessa perspectiva, reitero que procurei, de forma fidedigna, relatar os fatos diretamente observados e relacionar as declarações informais coletadas no local com minhas inferências e sensações pessoais no âmbito daquela confraria específica. Tomei como referência principal para isso, os princípios metodológicos apresentados pelo respectivo autor; tais quais: enfatizar valores e critérios etnográficos (objetivos científicos), assegurar boas condições de trabalho e priorizar, sistematicamente, a boa práxis do campo (métodos espaciais de coleta, manipulação e registro de evidência).

Por fim, desenvolvemos o entendimento de que a prática de “capoeiragem” na “Praça do Campo do Remo” comporta grande valor simbólico aos moradores adjacentes àquele espaço, pois é visto como evento mobilizador de entretenimento local e promotor de valores culturais a todos que comungam o respectivo momento, participantes ou observadores, adeptos ou não, homens e mulheres ou crianças e adultos.

 

  1. 2.     Confraternizando na Praça: “festa, vadiação e confraternização”.

Em uma noite qualquer de Sexta Feira amigos se encontram para confraternizar acontecimentos diversos e peculiares. Trata-se de contrapor cotidianos distintos, onde estes indivíduos encontram uns nos outros semelhanças que os ajudam a compreender os resultados distintos de suas vidas; superações e derrotas, problemas e soluções, percalços, projetos pessoais, etc. são assuntos comuns a este tipo de sociabilização. Em suma, é nesse contexto que capoeiristas se encontram toda última Sexta Feira de cada mês na “Pracinha do Campo do Remo” para a “Roda de Integração das lideranças (lideranças da “capoeiragem”) de Caucaia”.

O espaço deste singelo estudo etnográfico, citado acima, localiza-se no Município de Caucaia, precisamente no bairro da “grande” Jurema, na comunidade do “Parque Guadalajara” adjacente. A praça, em si, localiza-se no quadrante entre as Av. Dom Almeida Lustosa, Rua Acapulco, Rua Sacy e Rua Galiente, compartilhando o “território” do Campo de Futebol que leva o nome do time local: “Time do Remo”. O respectivo espaço público é dotado de equipamentos lúdicos de diversão coletiva como balanços, escorregadores, pupa-pulas e outros brinquedos diversos, além de bancos, jardins e todos os objetos de uso comunal que caracterizam uma praça.

O espaço da Praça foi reformado no início do ano de 2012, na atual gestão do governo municipal e, até onde pude constatar, foi rebatizada com o nome popular que foi citado acima. Todavia, não consegui consultar fontes fidedignas que pudessem, de fato, relatar outrora o nome “oficial” do lugar. Logo, apelo para a oralidade daqueles que comungam o espaço como legitimidade, mais do que suficiente, para descrever as especificidades do lugar. O respectivo lugar também é palco constante de outras manifestações da comunidade, como peças teatrais organizadas por jovens da paróquia local e pelo CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) localizado nas proximidades. Também é comum as mais diversas brincadeiras infantis, a instalação de parquinhos temáticos e circos, além dos jogos de futebol que conclamam a comunidade em competições esportivas.

A praça como “palco” diversificado do respectivo evento cultural Capoeira, objeto de nosso estudo, ainda é incipientemente reveladora de singularidades, pois somente no de 2012 que os capoeiristas locais resolveram planejar e organizar o respectivo evento.

Desde os primórdios do século XX até nossa atualidade, a capoeira vem ganhando espaço nas cidades brasileiras. Viaja paulatinamente dos “terreiros” das fazendas e outros espaços rurais para estabelecer-se como fenômeno sociocultural marcadamente urbano. Em um primeiro momento, conquista espaço no âmbito da periferia e, posteriormente, avança para bairros de estamentos sociais mais abastados. Todavia, sua raiz ainda é bastante vigente nas camadas populares de nossa sociedade, sobretudo, entre os marginalizados socialmente.

A “Roda de Integração das lideranças de Caucaia“, ou “Roda de Confraternização”, como passaremos a chama-la, conclama grande parcela de capoeiristas e simpatizantes da capoeira de Caucaia e Fortaleza, pois é caracterizada como uma “Roda de Rua” (aquela que não acontece dentro de academias específicas) e, esta, pode ser conceituada como um evento aberto a qualquer capoeirista, convidado ou não, desde que, se responsabilize por suas ações durante a realização deste e que se submeta as regras de um Mestre na roda ou de outro, não mestre, mas um praticante mais antigo, a quem foi depositado, de maneira simbolicamente democrática, a responsabilidade de liderar a realização do evento.

A rede espacial subordinada a força polarizadora do evento elege bairros distintos dos dois municípios como: Conjunto Nova Metrópole, Conjunto Metropolitano, Araturí, Parque Potira, Jurema, Henrique Jorge, Parque Genibaú, Bom jardim, Quintino Cunha e outros tantos. Na ocasião desta observação participante presenciei capoeiristas das cidades de São Gonçalo do Amarante e Maracanaú que vieram prestigiar o encontro.

A grandiosidade que se estabeleceu ocorrera pela disseminação da importância do encontro e pela oportunidade de promoção pessoal dos participantes no complexo universo da capoeira do estado do Ceará. A publicidade é feita, em um primeiro momento, pelas redes midiáticas digitais, como “facebook”, por exemplo, e espalhada consuetudinariamente pelos próprios capoeiristas.

Numa análise simples, mensurada na dimensão do olhar, é notório que, em cada edição da “Roda de Confraternização da Pracinha do Campo do Remo” percebemos uma participação, aproximada, de 70 ou mais capoeiristas; organizando cerca de quatorze grupos distintos de capoeiragem, tais como: Associação de Capoeira Cultura Negra, Grupo de Capoeira Resistência, Grupo de Capoeira Cordão de Ouro, Grupo de Capoeira Bandeira de Prata, Grupo União Capoeira, Grupo de Capoeira Negaça, Associação Marabaiano de Capoeira, Grupo Legião de Capoeira, União Paulista de Capoeira, Companhia Volta ao Mundo de Capoeira, Grupo Capoeira Brasil, Grupo Muzenza de Capoeira, Grupo Arte Brasil de Capoeira, Grupo de Capoeira Nação Palmares, etc.

Cabe nesse momento, para melhor esclarecer nosso leitor não praticante desta luta/dança brasileira que existe, entre aqueles que a praticam, filiados a grupos, associações, companhias e outras instituições promotoras de capoeiragem, uma organização particular, pautada num senso comum doutrinário e simbólico, ou seja, cada conjunto de praticantes ostenta uma bandeira de ensinamento de capoeiragem, basilar àquilo que se tem, em um primeiro momento, como adequado a formação de seus discípulos, ainda que, recorra, para isso, aos primeiros ensinamentos da disciplina, sistematizados já na década de 1930, com Mestre Bimba (Emanuel dos Reis Machado – primeiro educador de Capoeira). Assim, na práxis da capoeira, cada “grupo”, analisado de maneira mais genérica, sistematiza seus ensinamentos a partir daquilo que acha mais coerente. Há grupos que priorizam mais a estética dos movimentos, exaltando mais saltos acrobáticos e performance de “floreios” (habilidade de usar o corpo para realizar movimentos de extrema flexibilidade), em detrimento da praticidade da autodefesa “crua”, por exemplo, que usa movimentos corporais simples, mas efetivos e grosseiros, para contundir, prioritariamente, o oponente, como prega a “Capoeira Regional Baiana”. Diante de maior curiosidade sobre o assunto, consultar Vieira (1995).

Nesse sentido e de maneira sincera, as chamadas “Rodas de Rua” assumem o risco de trazer à tona certas “dicotomias didáticas” de ensinamento da capoeira que promovem, durante a prática de capoeiragem, embates ideológicos materializados de forma violenta ou não no “calor” do jogo. Todavia, o que é certo e recorrente nas “Rodas de Rua” é toda a contemplação do “mosaico” cultural que conclama a arte brasileira da capoeira; é o total arrebatamento que esta atividade lúdica promove nas pessoas que a contemplam.  Nas palavras de Silva (2010 p. 4), causa “[...] uma múltipla gama de reações nas pessoas que assistem à roda: em alguns casos estranheza; em outros perplexidade; em outros, ainda, fascínio”.

Consubstanciando com a afirmativa acima, Vasconcelos (2006), citado também por Silva (2010), concede à prática da capoeiragem de rua o justo mérito, a meu ver, de encantar alegremente todos aqueles que se aproximam dela.

                              

O cenário é marcado pela alegria de uma embriagante paixão. Imiscuída na preparação de articulações poéticas que entoam o canto da tradição afrodescendente. [...] É provável que essa mnemônica poética explique a arte de criar movimentos bailados no cenário da brincadeira e deslocados pela eficiência da potência [...]. (VASCONCELOS, 2006, p. 121 In Silva, 2010 p .04).

Em suma é um grande festejo, pois mesmo diante dos movimentos, essencialmente violentos de uma “contenda capoeirística” percebidos, em um primeiro momento, por aqueles que não estão familiarizados com a prática em si, o respeito mútuo entre os combatentes é uma regra do próprio jogo que nunca deve ser desrespeitada, visto a sabedoria simbólica e intrínseca na arte de “esquivar-se”, como necessidade essencial de manter-se na peleja para conquistar, a partir daí, a liberdade de contra-atacar ou não, como expressão máxima de autogestão, por assim dizer.

Vasconcelos (2006), diz que Capoeira é a própria “arte de esquivar”, seja na roda de capoeira, seja na vida. Grosso modo, é a expressão de sobrevivência daqueles que precisam se adaptar as mais diferentes mazelas sociais das quais são vitimados.

Arte da esquiva. Possibilidade de ataque desfeito e refeito pela circularidade de novo movimento que encontra o tempo correto para ser encaixado no ventre do adversário. [...] Ataca, demonstra sua habilidade e resolve não acertar. Sabe que pode bater e não faz porque não quer. A simulação e teatralização da luta é parte de uma dança. [...] Um jogo que dança na malícia da roda. É o entusiasmo e o êxtase do Deus do teatro que no contexto da capoeiragem é capaz de dançar. É Dionísio quem comanda a roda e o cenário de uma embriaguez vigilante e atenta aos mínimos movimentos e intenções do outro. (Vasconcelos, 2006, p. 120 In Silva 2010 p. 04)).

Nesse sentindo e relativizando o entendimento da abordagem mimética de Benjamim (1994), apud Vasconcelos (2006), o capoeirista, por vezes oprimido e marginalizado na sociedade, dentro do universo de uma roda de capoeira é o protagonista absoluto de sua história, senhor de sua liberdade e promotor de sua transformação.

Resgatando o objetivo deste tópico e finalizando-o para adentrarmos na descrição dos acontecimentos do dia 28 de Março de 2014, recorte cronológico ao qual me debrucei para melhor observar o respectivo objeto, reitero a necessidade de mais produções acadêmicas referentes a esta temática, posto que, são raríssimos os profissionais que se dedicam a observar este fenômeno demasiado rico de cultura, promotor de cidadania e educação, mas que ainda caminha vagarosamente na trilha do verdadeiro reconhecimento, pois carece de voz, como tudo que é marginal em nossa sociedade.

  1. 3.     Roda de Integração das lideranças de Caucaia: “Sexta Feira de Capoeira boa”.

 

Aos adeptos dessa arte secular é sabido que não se tem dia, nem hora e nem momento qualquer pré-definido que, de fato, condicione uma oportunidade verdadeiramente pura e aceitável para sair de casa e “capoeirar” pelo mundo. O soar do Berimbau, instrumento musical singular à Capoeira, manifesta nos capoeiristas um intenso desejo corpóreo de malemolência absoluta. Promove na mente um status psíquico e ancestral de embriaguez, mediante o som produzido por ele, acompanhado por outros de funções percussivas. O caráter lúdico daquele universo conclama no ser do praticante a necessidade de brincar mais uma vez de capoeira ... e outra... e outra... e outra.

Nesse sentido, a noite de Sexta Feira me parece mais do que perfeita para pegar meu “abadá” (calça tradicionalmente usada para a prática da Capoeira), recolher documentos úteis, subir na minha velha moto Honda, passar lá na casa do Mestre e partir para a Pracinha do Campo do Remo, onde mais uma vez reencontrarei os amigos de capoeiragem. Ressalte-se que antes desse ritual de preparação, conciliei-me com a esposa, posto que, já não sou mais um jovem sem responsabilidades e sei perfeitamente que, mais cedo ou mais tarde, a roda acaba e tenho que voltar pra casa.

Assim, ao chegar na casa do Mestre (discípulo de Mestre Zé Ivan, um dos primeiros educadores da capoeiragem no estado do Ceará), compartilhei, a priori, certos receios daquela roda de rua da qual iríamos participar dentro de alguns minutos. Meu Mestre, amigo e professor, personificação da “memória viva” da capoeira local, reinterou a singularidade do evento e a oportunidade de aprendizado ali. Contudo, enfatizou também para ter cuidado, pois um verdadeiro capoeirista sabe chegar em todos os lugares, se fazer presente e sair, produzindo naqueles que ele deixou para trás, a vontade, ainda que, incipiente de revê-lo novamente.

Retomando o fio da meada, partimos por volta das 18h:45min do dia 28 de Março de 2014 (Sexta Feira), chegando ao local pretendido rapidamente, ás 19:00h, visto que, estávamos ambos com veículos próprios e a proximidade irrelevante com o respectivo local de destino.  Tomando como referência a localização do nosso bairro, Conjunto Habitacional Nova Metrópole.

Chegando a Praça, avistei de longe velhos amigos e grande quantidade de pessoas amontoadas ao redor dos intrumentos; provavelmente curiosos da comunidade.  Percebi também novos capoeiristas, “caras novas”, por assim dizer, pois os reconheci apenas pelas vestimentas que os caracterizavam. Estacionei a moto fora da praça e caminhei até o centro, onde, de fato, aconteçeria o evento. A atmosfera já era de festa, saudosismo[U1]  e reencontros. Tempo de relembrar velhas estórias, rodas outroras, “capoeira das antigas”, como se costuma dizer no meio. É também, em outras palavras, uma fuga do cotidiano, pois, em meio a esta “confraria capoeirística” são suscitadas e partilhadas as sensações de reconforto e revigoramento.

O Mestre, claro, bem mais festejado do que eu, sentara para conversar com outros alunos que reencontrara ali. Nesse meio tempo, aproveitei para brincar com um dos pandeiros que estavam dispostos ao chão e para comprimentar aqueles que me saudavam. Os minutos passam e não demorei muito para me dar conta de que o centro daquela praça já estava tomado por capoeiristas, oriundos de todos os lugares das adjacências, bairros próximos, contíguos ou distantes e que, desfilava na praça, homens e mulheres, velhos e crianças, todos de branco, ostentando a bandeira de seu grupo de referência capoeirística.

Já passara das 19h:30min quando o Berimbau entuou seu primeiro som de autoridade. Pois é ele, o Berimbau, o Urucungo, o Gobo, o Gunga, o Marimbau, o Bucumbumba, o Arco musical ou qualquer outra nomenclatura que o definir, o  instrumento de referência de uma roda de capoeira. É ele quem comanda o rítimo; quem dá cadência aos movimentos e dita o estilo que se joga no centro do círculo. É como um ícone “totêmico” de todo capoerista, visto que, eles se reconheçem no seu tinido.

O Mestre, a quem cabe o direito consquistado por anos de prática de tocar os primeiros acordes do Berimbau numa roda, escolheu iniciar o evento com um rítimo mais lento, cadenciado, mas malicioso, denominado secularmente de “Capoeira Angola”. Tal estilo de capoeiragem é reconhecido como um estilo “miudo”, lento, mais extremamente feroz, pois sua gênese é oriunda dos primórdios da Capoeira e, portanto, ainda carrega no bojo, toda objetividade da libertação escrava, dissimulada na quase inércia dos movimentos. Metaforicamente, é como uma serpente que esconde sua real velocidade ao ludibriar sua vítima com a lentidão inicial.

A exposição dos movimentos da Capoeira Angola é algo esteticamente belo, simétrico e pontual, mas ao mesmo tempo carregado de fetichismo. Cada golpe desferido ali é, quase sempre, uma oferenda mística as entidades que, intrissicamente, fazem parte daquele espetáculo encatado. Se invoca permissão espíritual para quase tudo que se faz. O sinal da cruz sobre a cabeça é constante e equiparado, em quantidade, apenas a alusão incessante à antigos mestres míticos. O simbolismo sincrético ali é mais do que evidente, pois contempla um “catolicismo pagão” singular. É marcadamente notório que o fenômeno da Capoeira é, de forma complementar, sagrado e profano e que essa dualidade é aceita e legitimada por seus praticantes, independente de crença ou credo religioso.

Não obstante, a contenda é regida incoscientemente pelo rítimo e exigi dos lutadores concentração e força absoluta para manterem-se, quase sempre, de cabeça para baixo. A peculiaridade dos golpes é outra variável singular, pois é comum pisar no pé do adversário ou driblá-lo com movimentos aparentemente “desequilibrados”, por exemplo.

Derrepente, um dos lutadores pára subtamente de mover-se e estende uma das mãos para o ar. Aparenta está “entoado” por alguma manifestação da alma e persiste na inércia até que seu oponente também cessa seus movimentos e ajoelha-se ao “pé” do Berimbau. Reparo que já tinha visto aquilo antes e reconheço o momento tenso. É uma “Chamada de Angola” ou “chamada de morte”. Resquícios de seu passado sangrento, a Capoeira Angola resgata, mesmo numa contemporaneidade estilizada, alguns costumes do tempo de sua ilegalidade, quando no meio do jogo, um dos “guerreiros capoeira” desafiava o outro a se aproximar sem defesa e tocar-lhe uma parte do corpo, enquando este preparava um golpe derradeiro e mortal. Ao desafiado só restava, se aceitasse o desafio, uma esquiva rápida e audaciosa. Evidentemente que, na atualidade, tudo tornou-se mais um resgate cultural, expressado na dimensão teatral e dramática do momento de outrora do que, de fato, num fatídico desafio de morte entre camaradas.

Cabe colocar neste momento que minhas experiências pessoais no respectivo evento, ou seja, minha prática de capoeiragem na roda, se limitará a descrever apenas a ênfase do sentimento de satisfação espiritual e física, pois como coloquei em momentos distintos deste texto, está numa roda de capoeira é entregar-se a “inconsciência de uma embriaguez consciente”. Ouve-se apenas o ritmo, e corpo baila sozinho, conforme for. A mente transcende sua realidade e, unida ao corpo, parece coincidir numa só existência. Tudo que se faz, a partir daí, é essencialmente concentrado. O corpo fica extremamente sensível e arisco aos movimentos do seu oponente e tudo mais permanece constante, porque nada mais importa. Em suma, é como se fosse tomado por uma força impessoal, constituída de diversos sentimentos coletivos. É “uma força que ergue ao seu (meu) redor, todo um turbilhão de fenômenos orgânicos e psíquicos” (DURKHEIM, 1999, p. 68-69).

Passara-se mais de uma hora e o relógio informa que já são aproximadamente 20h:35min e o rítmo da roda precisa ser dinamizado. A malícia do jogo de Angola, traz a lentidão que lhe convem, mas conduz a diminuição do entusiasmo dos praticantes que, em sua maioria, são adéptos de outro estilo. Tudo tem seu tempo e seu instante.  Portanto, neste momento o Berimbau modifica o estilo de jogo entoando um rítmo diferente, mais rápido, ainda que, cadenciado. Chama-se de “Capoeira Benguela” este novo momento da roda. Neste tipo de capoeira os movimentos são quebrados e fluidamente transformados em outros. O duelo de camaradas é conduzido mais no chão do que gingando e exige do capoeirista mais inteligência e velocidade do que o tipo anterior de jogo.

Corpos elásticos bailam harmoniosamente uns sobre os outros, predomimando, aquele que seguir pontualmente o que foi planejado, como contra-ataque, no momento anterior em que se esquivara. Em outras palavras, a “Capoeira Benguela” é o dominio da estratagema.

Recortando um pouco o meu relato etnográfico, avanço para o fim do evento, onde o rítimo estava mais rápido e entusiasmado. O relógio marca aproximadamente 21h:15min e estamos no climax da roda de capoeira. Neste momento, já são dezenas de capoeiristas e, mesmo os atrazados, já marcavam presença na praça. O estilo de capoeira vigente era a “Capoeira Regional”, ou Capoeira Regional Baiana, registrada na Federação de Pugilismo do estado da Bahia como “Luta Capoeira” nos anos dourados de Mestre Bimba (década de 1930). Os movimentos são vigorosos, rápidos e objetivos. Neste momento, os inciantes na capoeiragem não têm vez, pois agora só entra na roda os capoeiristas experientes, cuja perícia, carregada simbolicamente nos “cordões” (graduações) que ostentam no “abada”, revelam os anos de treino e dedicação. Neste momento, ocorre a legitimação absoluta de que esta prática cultural é uma genuina arte marcial brasileira e que, enquanto luta, pode ser mortal.

“Martelos” pra lá, “Armadas” pra cá, “Meia Lua de Compasso” e “Escorões” são os golpes mais usados. “Cutuveladas”, “Tapões”, “Cabeçadas” em um segundo momento, quando as pernas já começam a falhar. Não se engane o leitor em achar que Capoeira é apenas esteticamente belo, pois é também um instrumento grandioso, efetivo e destrutivo de autodefesa. O Berimbau não pára e nem diminui o rítimo frenético; os capoeiristas também não. O semblante de todos, sem acessão, é de fascínio pela violência técnica e responsável do momento. Os comentários são os mais variados: “_fulano é muito bom […] olha como ele esquivou daquilo…”_nossa, essa passou perto…” “_Vai irmão, não desiste não!”. Ali, na roda, permeia a habilidade de um ou de outro capoeirista e, este, com certeza, torna-se-a mito na próxima roda. É como se cada um daqueles “competidores” necessitassem de autoafirmação e deixassem de ser, por um curto período de tempo, oprimidos, e passassem a ser opressores, senhores uns dos outros, pela força coercitiva do “mérito”, do treino, da prática e da habilidade conquistada a partir desta. A Capoeira, na roda, coroa rei aquele que é mais dedicado fisicamente, possuidor de desenvoltura. Contudo, já dizem os “mestres antigos” que este, nem sempre será um “bom capoeira”, porque para alcançar este status deve haver harmonia entre a habilidade física e a sabedoria da mente.

Já são 22:00h e, entre mortos e feridos salvaram-se todos. Um “machucadinho” ali, uma “contusão” aqui, nada que possa, de fato, macular a essência confraternizadora do evento. Após o grito de “iê” (parada imediata) entoado pelo Mestre da Roda, esta cessa e está tudo acabado. O Berimbau se cala e os movimentos páram imediatamente. Tudo que aconteçeu, durante, está consumado e tudo que não aconteçeu aguardará o próximo encontro. Todos permanecem em pé e na formação circular, enquanto se comprimentam respeitosamente mais uma vez. Animosidades são abafadas e deixadas momentaneamente de lado, a paz reina, enquanto os debates finais iniciam-se. Ritualisticamente quem tem a palavra é o Mestre e, este, a distribui democraticamente. Um capoeirista fala, depois o outro e outro, sistematicamente após. Geralmente promovem seus próprios eventos e trabalhos pedagógicos com a Capoeira. Ai são gastos, mais ou menos, mais quinze minutos com conversa, risos e estórias. Logo, o Mestre dá mais um grito de “iê”, preparando todos para a saudação final e a despedida. Como o único Mestre presente é o que me acompanhou, este dá a saudação final do seu grupo de referência (Associação de Capoeira Cultura Negra), todos respondem respeitosamente e está selado o fim do evento.

  1. 4.     Considerações Finais: “até a próxima volta ao mundo câmara”.

O silêncio posterior ao fim do evento marca na praça a tristeza de mais uma temporada sem aquela animação, sem festa, sem música ou sorrisos sinceros. Todavia, a regularidade que traz a gênese deste evento, recria a esperança cíclica que tudo estará lá novamente daqui a um mês. E afinal, o que são trinta luas?

A roda de confraternização na “Pracinha do Campo do Remo”, promove integração substancial com a comunidade próxima. Dá aqueles espectadores uma visão lúdica e cultural de um instrumento que também é, por vezes, pedagógico e que, por consequência, pode ser promotor de mudanças sociais. Não são raras as famílias que procuram os professores do bairro, após a roda, a fim de matricularem seus filhos na Capoeira desta ou daquela academia. Ressalta-se que, também não é raro, a existência dessas academias formais de Capoeira funcionando já dentro das escolas nas mais variadas comunidades e com os mais diferentes públicos. Neste sentido, o professor de Capoeira é, por vezes, um formador de opinião onde desenvolve trabalho e que, seu projeto é, em muitos momentos, muito mais efetivo do que grande parte das políticas públicas distribuídas ali.

Vivemos um momento ímpar de democracia, ou pelo menos, um momento de maturação desta, onde instrumentos socioeducativos como a Capoeira, triplamente rica em cultura, educação e lazer podem e devem ser constantemente utilizados, de forma consciente, como ferramentas de promoção de valores reais de sociabilização, moralmente corretos e essencialmente críticos.

De forma geral, aprende-se com a capoeira que “escorregar” não é cair, é só um “jeitinho” que o corpo dá e que, portanto, devemos nos levantar e encarar nossos adversários de frente, respeitando os mais fortes, mas não os temendo por completo. Aprendemos com a Capoeira a exaltar a capacidade do mais fraco em superar suas impossibilidades. Como dizem as músicas da Capoeira, quem nunca caiu na roda, não sabe o valor que a queda tem e não sabe como levantar. Principalmente não vai estar pronto pra cair dinovo, se assim a vida o condicionar.

Ser capoeira é ser essencialmente “malandro”, no sentido mais singelo do adjetivo. É ter capacidade de adaptação. É encarar a vida de frente e vencer, ou ser derrotado, e voltar a tentar. É simplesmente superação.

Por fim, este estudo etnográfico privilegiou os acontecimentos provenientes da Roda de Confraternização da Praça do Campo do Remo, na “grande” Jurema e, pretendeu relatar as experiências observadas no local, das 19:00h às 22:00h do dia 28 de março de 2014 (Sexta Feira). Contudo, condicionou sua principal análise na dimensão cultural do objeto, das relações sociais que ele promove com os participantes e com a comunidade no entorno sem, de fato, dissocia-lo da sua dimensão sociopedagógica.

Nesse sentido, os aspectos conclusivos deste trabalho procura resgatar de forma lúcida e, em virtude da insipiência do estudo, pragmática, o “esquema mental básico” do nosso objeto, enquanto comunidade singular que apresenta lei, ordem e um todo coerente próprio (Malinowski, 1978).

Quadro 01: Resgate Sinótico de momentos relevantes da observação.

Momento Peculiar

Horário Aproximado

Relevância na Observação

Tipo de Comportamento

 

“Chegada na Pracinha do Campo do Remo”

 

 

19:00h

“Recepção calorosa entre estranhos que se reconhecem mediante um laço comum: a prática da Capoeira.”

 

Comportamento Fraterno e saudosista

 

“Início da Roda de Capoeira”

 

 

19h:30min

“Participação da comunidade local: aglomeração de espectadores entusiasmados e sentimento de confraternização geral.”

 

Comportamento de Confraternização Ritualística

 

“Momento da Capoeira Angola”

 

 

19h:45min (aproximadamente)

 

“Maior momento lúdico, onde os espectadores captavam, ao meu ver, a intensidade histórica e teatral daqueles movimentos maliciosos.”

 

Comportamento disciplinado e em obediência concisa aos ritos daquele tipo de Jogo de Capoeira.

 

“Momento da Regional (São Bento Grande)”

 

21h:50min (aproximadamente)

 

“Maior momento de tensão, onde os espectadores e os próprios capoeiristas afloraram sentidos e animosidades.”

Comportamento feroz; psicologicamente animado pela intensidade do ritmo e da música. Produzia animosidades quase inconscientes, mas constantes.

 

“Término do Evento”

 

22:00h (aproximadamente)

.

”Todos se cumprimentando novamente.”

Retomada do comportamento fraterno e do sentimento de paz no seio do evento.

Fonte: Elaboração pessoal.

A Capoeira, enquanto fenômeno sócio urbano no local, promove e integra a comunidade. A respectiva roda de capoeiragem conclama todos nas proximidades. É aceita e legitimada por sua grande maioria, pelo menos quando na sua contemplação lúdica. Tal singularidade pode ser comprovada pela constante necessidade de renovação deste encontro que, na atualidade, é demasiado aguardado por todos ali, capoeiristas e simpatizantes da arte.

Bibliografia

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