Eu já estava achando esquisito, 21 anos de idade e nenhum assalto no “currículo”. Mas isso acabou em 28/11/08 e, às cerca de 14h, entrei para as superlotadas estatísticas de pessoas roubadas. Quem escreve aqui é alguém que, embora não desejasse, estranhava não ter ainda tomado tal “banho de realidade”. Diferente de outras pessoas, não me calo diante de um “banho” desse. Deixo aqui um texto na esperança de que tenha algum impacto positivo no futuro, embora eu seja realista o suficiente para não crer que só um artigo vai derrotar magicamente a criminalidade das ruas brasileiras.

 

Foi na tosca da nova Avenida Conde da Boa Vista. Uma combinação de eventos infelizes – um dia sem aula no Senac sobre o qual ninguém me avisou mais um ônibus da Cidade Universitária que não deixou eu subir apesar de minha carreira para chegar logo na parada – resultaram num acaso infeliz que me levou a perder um valioso celular smartphone. Um marginal de cabelo preto pixaim, dentes irregulares, camisa branca, bermuda preta e pele morena se aproximou e me pediu dinheiro. Depois de eu dizer que não tinha, seu tom aumentou até mandar eu entregar a carteira e o celular, simulando ter uma faca. Por muita sorte ele não levou a carteira, mas o celular com que eu me divertia tirando fotos de denúncia e ouvindo música já era. O pior de tudo foi que a ocorrência aconteceu a menos de trinta metros de um posto policial! Creio eu que apenas para dar uma tranqüilizada, o calmo policial disse que já havia uma viatura rondando na Avenida Guararapes, para onde o meliante estava correndo.

 

O mais tosco de tudo foi que duas pessoas, incluindo  o delegado da Polícia Civil com quem registrei o BO, indiretamente puseram parte da culpa EM MIM: “com essa altura e esse físico, foi perder o celular pra um sujeito desse! Tu perdeu esse celular de graça”. Não são todos que já sabem lidar com bandidos que podem não estar armados, mas essa idéia – a de que ainda existem adultos não-turistas “invictos” de assalto em Recife – nem existe mais pela cabeça dessa gente acostumada com uma cidade perigosa como essa. Se você não mora no Brasil, imagine o quanto é escroto a pessoa ser ameaçada e ter algo que lhe era um instrumento de trabalho voluntário – o qual já continha algumas fotos que pensava em publicar em novas denúncias nos próximos dias – tomado e no final ainda levar parte da culpa por ter sido atacado pela violência urbana.

 

Felizmente minha serenidade e a carteira, contendo identidade, carteira de estudante, cartão da poupança, cartão do plano de saúde e um passe eletrônico com 62 reais de crédito recém-carregado, foram preservadas. E o lado compensatório disso é que: a) possivelmente esse fato vai me ser um marco para alguma reação mais forte para tomar alguma atitude de importância pessoal vital, talvez de começar logo a trabalhar remuneradamente para conseguir, por exemplo, repor o celular com câmera perdido em roubo, algo que no entanto eu já desejava antes – talvez sem vigor bastante; b) minha atitude em relação à violência urbana em Recife e no Brasil não será mais tão tolerante e distanciada – já que agora tenho em mim um sentimento vívido de dar de alguma forma, com a determinação de alguém que já foi vítima, um basta a essa situação de privação do direito à paz civil.

 

Mas minha versão de basta, diferentemente daquele vazio, vago e fraco que a maioria da população dá perante os parentes e os vizinhos até esquecer tudo e viver como se nada tivesse acontecido e tudo estivesse muito bem nessa sociedade, será prolongada ao máximo possível. Está eternizada neste artigo que permanecerá na internet – e talvez neste papel em que o imprimi, se você estiver lendo isso num papel – e talvez em outros que eu poderei escrever nos próximos tempos.

 

Lembro que Luciano Huck, no ano passado, escreveu uma carta de desabafo, assim como esta minha, mas mais emocionada. Ao contrário dele, não quero perguntar agora onde está a polícia – esteve rondando em viaturas por ali depois que aparentemente se ligou na sua grotesca falha em levar segurança à Avenida Conde da Boa Vista, eu os vi depois que saí da loja TIM onde pedi o bloqueio do telefone – ou expressar pura revolta, mas sim apontar uma das raízes do problema. Além daqueles tão comentados nas rodas de conversa, como a polícia despreparada e mal-organizada, a falta de políticas sociais convincentes e a ausência do compromisso político honesto em combater a criminalidade, existe um elemento igualmente culpado por tudo.

 

O povo!

 

Um alguém que se cala perante toda a desgraça em que vive, que se conforma com tudo. Os adultos que dizem depois de sofrer crimes “agora é deixar pra lá”, os jovens que preferem conversar sobre vídeos pornôs a discutir temas sérios. Toda uma população que prefere se alienar da realidade – se bem que nunca consegue fazê-lo totalmente por causa do medo que sente das ruas –, que abraça o conformismo como um amigo, que despreza seu papel na edificação de uma sociedade justa e pacífica, que quase nunca reivindica seus direitos civis com afinco e determinação. Covarde e cúmplice são as palavras mais bem-encaixadas à maioria das pessoas que habitam essa e milhares de outras cidades brasileiras. Covarde não por evitar reagir a assaltos, deixar de revidar contra quem o ameaça naquele momento, mas por não combater seu inimigo maior, a criminalidade – nem querer fazê-lo com sinceridade –; por preferir continuar apanhando indefesamente de uma minoria violenta, contabilizando nas estatísticas policiais cada porrada que leva; por negar sua própria cidadania, voz coletiva e papel político sabendo que todos, incluindo camadas sociais muito frágeis, seriam beneficiadas caso tais atitudes fossem adotadas. E cúmplice por se calar, exceto diante do delegado, perante uma ameaça que diariamente abate outras pessoas. Quem está se omitindo perante a falta de garantia do direito à segurança e o crescimento da bandidagem não é só a classe política, mas também nós, o povo, que nos calamos perante os abusos contra os quais nos negamos a protestar exceto em algumas ridiculamente inúteis “caminhadas pela paz”, cujos efeitos nada de nada são além da exacerbação emocional de fracos, vagos e não persistidos desejos de paz de algumas centenas de pessoas. Dependendo da nossa fraqueza cidadã, ninguém mais tem o direito de nunca na vida ser molestado por um assaltante, de permanecer “invicto” em paz civil.

 

Para ilustrar a alienação de nossa população, trago uma passagem budista, que caiu no meu colo quase que literalmente graças a um grande livro do idem Carl Sagan depois do ocorrido:

 

O Senhor [Buda] respondeu ao venerável Sariputra:

“Numa vila, cidade, empório, distrito, província, reino ou capital vivia um chefe de família, velho, de idade avançada, decrépito, de saúde e forças debilitadas, mas rico, abastado e próspero. A sua casa era grande, tanto em extensão como em altura, e era antiga, construída havia muito tempo. Era habitada por muitos seres vivos, uns duzentos, trezentos, quatrocentos ou quinhentos. Tinha uma única porta. Era coberta de palha, os terraços tinham desmoronado, os alicerces estavam podres, as paredes, as telas entrelaçadas e o reboco estavam num estado adiantado de decomposição. De repente irrompeu uma grande labareda, e a casa começou a queimar por todos os lados. E aquele homem tinha muitos filhos jovens, cinco, dez ou vinte, e foi ele quem conseguiu sair da casa.

Quando viu a sua casa toda em chamas com aquela grande quantidade de labaredas, o homem sentiu medo e tremeu, sua mente ficou agitada, e ele pensou consigo mesmo: ‘Eu, é verdade, fui bastante competente para correr porta afora e fugir da casa incendiada, com rapidez e segurança, sem ser molestado, nem chamuscado pelas grandes labaredas. Mas e meus filhos, meus rapazes, meus meninos? Ali, nessa casa em fogo, eles brincam, praticam esportes e se divertem com toda espécie de jogos. Não sabem que a moradia está em chamas, não compreendem, não percebem, não dão atenção às chamas, e por isso não sentem nenhuma perturbação. Embora ameaçados por esse grande [incêndio], embora em íntimo contato com tanto mal, eles não prestam atenção ao perigo, nem se esforçam para sair’.”

Citação de “The Saddharmapundarika”, da obra “Buddhist scriptures”, obtida no livro “O mundo assombrado pelos demônios”, de Carl Sagan

 

Concluo este artigo dizendo que esta passagem budista pode muito bem metaforizar o povo recifense, pernambucano, brasileiro. A casa é o Brasil, Pernambuco, Recife ou seu bairro. O idoso é todo aquele que acorda dessa Matrix da alienação e vê seus companheiros de vida cegos ao perigo circundante. O incêndio é todo aquele problema que fustiga o lugar onde habitamos: da violência urbana até a nossa péssima relação para com os animais. E os filhos do idoso que brincam dentro da casa em chamas, cercados pelo perigo da morte, são o povo brasileiro, incluindo o recifense. Não quero me gabar como sendo equivalente a esse senhor, tampouco desejo estar no lugar dele sendo o único a se salvar da catástrofe e crendo que a casa está perdida, mas me ponho no dever de fazer o que ele não fez nesse trecho de conto, que é alertar a toda a população: saiam de dentro do fogo e unam-se para combater essas chamas antes que tudo desabe sobre nossas vidas!