RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL SOB A ÓTICA DO POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE

 Raphaela de Sousa França Pereira[1]

Rubens Bonacorso Casal de Rey[2]

 

Sumário: Introdução; 1. Postulado da proporcionalidade; 2. Coisa julgada 3. Relativização da coisa julgada; Conclusão; Referências.

RESUMO

Analisa-se a coisa julgada e sua importância para a existência e manutenção da segurança jurídica. Estuda-se o postulado da proporcionalidade à luz da teoria de Robert Alexy acerca da resolução de conflitos entre direitos fundamentais. Examina-se o papel do postulado da proporcionalidade na defesa da tese da relativização da coisa julgada. Evidencia-se o conflito entre segurança jurídica e acesso à justiça existente nos bastidores do debate acerca da flexibilização da coisa julgada material.

 

PALAVRAS-CHAVE

Relativização da coisa julgada. Postulado da proporcionalidade. Segurança jurídica.

Introdução

A relativização da coisa julgada material é um dos temas que mais recebe atenção nas discussões entre doutrinadores da ciência processual. Ao longo das últimas décadas essa tese foi ganhando cada vez mais força, sendo possível afirmarmos que, hodiernamente, a doutrina majoritária é favorável à sua adoção. Contudo, a cultura jurídica ainda não assimilou a ideia da relativização da coisa julgada por conta do que podemos chamar de “dogmatização da coisa julgada”: o instituto, em vez de solidificado (reforçado), foi engessado (preso e tornado imutável).

Com a relativização da coisa julgada busca-se, não o enfraquecimento, mas a dinamização da norma, fato que explicitaremos. Isso porque, havendo outros valores em jogo, manter-se a coisa julgada imóvel e intocável gera injustiças, uma vez que o indivíduo se vê impossibilitado de acionar o judiciário para resolver um conflito que não recebeu a solução correta.

Diversos são os argumentos a favor da flexibilização da coisa julgada material, mas enxergamos superior relevância no argumento que se estriba no postulado da proporcionalidade, aquele moldado na teoria ponderativa de Robert Alexy, razão pela qual utilizamos o autor como guia. Como veremos a seguir, toda discussão reduz-se a um conflito entre princípios, direitos e garantias.

1        Postulado da proporcionalidade

 

Erigido à condição de princípio constitucional internacional, o postulado da proporcionalidade consiste, na verdade, numa técnica de apaziguamento de conflitos principiológicos, ou mesmo normativos. Quem assim concluiu foi Robert Alexy, que, com sua teoria da ponderação, defendeu que o princípio da proporcionalidade não se trata de um princípio, mas sim de uma regra de aplicação e interpretação dos mesmos.

A máxima da proporcionalidade subdivide-se em três segmentos: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. A primeira diz respeito à satisfação da política correta de intervenção Estatal, ou seja, da constatação de que não há maneira menos gravosa ou drástica para se combater determinado problema, de que inexistem quaisquer outros meios (mais brandos) para atingir-se uma solução. Já a adequação relaciona-se com a equação lógica de meios e fins: trata do simples exercício de apuração do melhor caminho para se chegar a determinado objetivo, isto é, averiguar se a via escolhida para implementar a solução é a mais adequada.

Por último, a proporcionalidade em sentido estrito tange à lei da ponderação mesma, aquela proposta por Alexy e que, nas palavras do autor alemão, determina que “quanto maior é o grau de não satisfação ou não afetação de um princípio, tão maior tem que ser a importância da satisfação do outro”. [3]

Assim sendo percebe-se porque Robert Alexy criticava a classificação do postulado da proporcionalidade como “princípio”, pois resta nítido que se trata na verdade de um “regulador de princípios”, que deve ser utilizado como técnica para balancear e compor os embates entre direitos ou garantias fundamentais. Em um Estado Democrático de Direito, por ser vasta a sedimentação de direitos e garantias fundamentais, amiúde constata-se o conflito entre princípios, embates estes que requerem uma decisão acerca do grau de preponderância dos direitos conflitantes.

Com a máxima da proporcionalidade estabelece-se, pois, qual princípio ou direito deve receber primazia em cada oportunidade fática. Obviamente, a prevalência de um princípio é paralela à mitigação de outro, e o que vai atestar a legitimidade de tal operação é a regra da proporcionalidade, com a observância dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação ou balanceamento).

2        Coisa julgada

Diz-se coisa julgada quando a sentença proferida se torna irrecorrível.  Segundo os ensinamentos de Cândido Dinamarco “a decisão judiciária só se torna imune a qualquer questionamento futuro quando já não se comportar recurso (CPC, art. 467), embora em alguma medida a lei a libere para produzir seus efeitos, ou alguns deles”[4]. Além de estar regulamentada pelo Código de Processo Civil a coisa julgada é um direito constitucional, pois a Carta Magna consignou no artigo 5º, inciso XXXVI que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"[5].

Dependendo do conteúdo da sentença judicial pode-se imutabilizar através da coisa julgada material ou da coisa julgada formal. Na primeira, a imutabilidade é total, ou seja, não é permitida a rediscussão da sua parte dispositiva no mesmo processo ou em outra relação jurídico-processual. Neste caso, não se admite que qualquer das partes proponha nova demanda marcada pelos mesmos elementos que integraram a ação transitada em julgado. Ou seja, a coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença de mérito. Já a coisa julgada formal trata da impossibilidade de reformar a sentença por vias recursais, seja porque a última instância proferiu sua decisão, ou seja, por haver transcorrido o prazo para interpor recurso, ou porque se desistiu do recurso ou a ele se renunciou. Ela incide sobre sentenças de qualquer natureza, seja de mérito ou terminativa, porque não diz respeito aos efeitos substanciais, mas à própria sentença como ato do processo.

Dinamarco explana: “a segurança nas situações jurídicas, proporcionada tanto pela coisa julgada material quanto pela formal, é importantíssimo fator de pacificação e tranquilidade.”[6] Tércio Sampaio Ferraz Jr corrobora com essa afirmação:

Um dos valores buscados pela ordem jurídico-processual é o da segurança nas relações jurídicas, que constitui poderoso fator de paz na sociedade e felicidade pessoal de cada um. A tomada de uma decisão, com vitória de um dos litigantes e derrota do outro, é para ambos o fim e a negação das expectativas e incertezas que os envolviam e os mantinham em desconfortável estado de angústia. As decisões judiciárias, uma vez tomadas, isolam‑se dos motivos e do grau de participação dos interessados e imunizam‑se contra novas razões ou resistências que se pensasse em opor-lhes chegando a um ponto de firmeza que se qualifica como estabilidade e que varia de grau conforme o caso[7].

 3        Relativização da coisa julgada

Por trás da coisa julgada, como foi exposto, repousa a integridade da segurança jurídica. O constituinte, ao dispor sobre a coisa julgada, quis conferir estabilidade e conforto às relações jurídicas entre os indivíduos. Desta forma, não há dúvidas acerca da importância e nobreza de tal instituto. Como reforça Dinamarco,

Com essa função e esse efeito, a coisa julgada material não é instituto confinado ao direito processual. Ela tem acima de tudo o significado político-institucional de assegurar a firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. Uma vez consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídico-material das partes, relativa ao objeto do julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar ou pretender alguma outra situação. Toda possível dúvida está definitivamente dissipada, quanto ao modo como aqueles sujeitos se relacionam juridicamente na vida comum, ou quanto à pertinência de bens a um deles.[8]

 Contudo, a coisa julgada, além de acobertar a segurança jurídica, vez ou outra dá guarida a injustiças. Isso é uma inevitabilidade que obviamente foi prevista pelo constituinte (prova disso é a existência da ação rescisória), mas que não constituiu óbice grande o suficiente para impedir sua consagração na Carta Magna. Exporemos o raciocínio feito não só pelo constituinte, mas por todos que até hoje defendem a rigidez da coisa julgada.

Eis a justificativa: com o instituto da coisa julgada, confere-se segurança, estabilidade e conforto às relações jurídicas. Todavia, de vez em quando, acontecerão “incidentes jurídicos” que poderão ser perpetuados pela coisa julgada, mas estes serão um “preço justo e necessário” que teremos que pagar para não sucumbirmos à mercê da insegurança e incerteza eterna. Em outras palavras, para que todos possam gozar da segurança jurídica, alguns de nós, lastimavelmente, por descuido do acaso, teremos que suportar o peso dos efeitos de uma sentença injusta. Todavia, cada vez mais vozes foram surgindo em contrário, tal como a do respeitadíssimo processualista Cândido Rangel Dinamarco, que aduz: “não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas”[9].

Misael Montenegro Filho, na esteira de Dinamarco, assevera:

 [...] em casos excepcionais podemos nos desapegar da imutabilidade dos efeitos da sentença de mérito, permitindo a impugnação do pronunciamento final mesmo depois de fluído o prazo da ação rescisória [...] Validar uma sentença abusiva e mesmo inexistente como pronunciamento judicial seria medida odiosa, que não pode ficar presa ao fato de o prazo para a propositura da ação rescisória ter transcorrido.[10]

Outro argumento invocado pela doutrina para defender a relativização da coisa julgada é o de que a mesma está de acordo com o princípio da instrumentalidade das formas, um dos princípios informadores do processo. Ora, usar o manto da coisa julgada material para justificar uma ilegalidade, ou um atentado grave e manifesto a um direito fundamental, consiste em clara inversão dos ditames previstos pelo princípio da instrumentalidade das formas, pois se sustenta um direito substancial ilegítimo por conta de um aspecto puramente formal (a constatação de preclusão da ação rescisória).

O exemplo mais apontado pela doutrina acerca da relativização da coisa julgada é o das ações de investigação de paternidade. Com o avanço tecnológico do estudo do DNA humano, surgiu a possibilidade de analisar-se objetivamente, com a ajuda de métodos científicos e laboratoriais, se um sujeito guarda ou não parentesco com outrem. Com esse advento, diversas ações surgiram a fim de impugnar os efeitos de ações de alimentos, ou de legitimar a propositura das mesmas. Contudo, muitas dessas ações já haviam recebido o manto da coisa julgada material, subsistindo assim relações jurídicas abomináveis, como indivíduos pagando pensão alimentícia a filhos adulterinos. Segue abaixo interessante julgado a respeito do tema:

Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia a notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento da ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. Nos termos da orientação da Turma, ‘sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA E DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza’ na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos de hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca, sobretudo, da realização do processo justo, ‘a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a justiça tem de estar acima da segurança, porque sem justiça não há liberdade’. Este tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum” (REsp 226436 ­– PR, 4ª Turma do STJ, rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, j. 28.6.2001, DJ 4.2.2002) [11]

 Conclusão

Como se percebe, há um evidente conflito entre o princípio da segurança dos atos jurisdicionais e o princípio do acesso à justiça. E aqui entra em cena o postulado da proporcionalidade, técnica através da qual se deve ponderar sobre qual dos dois deve obter o privilégio em detrimento do outro em cada caso concreto. Dessa forma não pode a coisa julgada ser agasalhada independentemente dos valores que venha a afrontar, pois, “se é certo que o respeito à coisa julgada é primado constitucional, não menos certo é que o direito, enquanto ciência, preocupa-se com o verdadeiro, com a justiça na pacificação dos conflitos de interesse”[12].

 Apesar de serem vastas as manifestações doutrinárias favoráveis à adoção da tese da relativização da coisa julgada, e de já até haver jurisprudências consoantes, a mentalidade jurídica ainda precisa percorrer considerável terreno para “mexer com a coisa julgada”. Pois, como disse Dinamarco,

 a tese da relativização da coisa julgada ainda é muito nova e tem diante de si uma barreira construída ao longo de dois mil anos em torno da coisa julgada como um dogma que deve prevalecer a todo custo, não importa a magnitude do direito transgredido.[13]

 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988.

DINAMARCO. Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. III. São Paulo: Malheiros, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material In Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 55/56. Disponível em <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/Revista%20PGE%2055-56.pdf> Acesso em: 03de novembro de 2010.

MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. I. São Paulo: Atlas, 2010.



[1] Aluna do 5º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[2] Aluno do 5º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[3] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 161

[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. III. São Paulo: Editora Malheiros, 2009. P. 300

[5] Constituição Federal de 1988

[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material In Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 55/56. P. 28

[7] FERRAZ JR. Apud DINAMARCO In Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 55/56. P. 28

[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material In Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 55/56. P. 29

[9] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. III. São Paulo: Editora Malheiros, 2009. P. 315

[10] MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. I. São Paulo: Atlas, 2010. P. 539

[11] MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. I. São Paulo: Atlas, 2010. P. 540

[12] MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. I. São Paulo: Atlas, 2010. P. 539

[13] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6ª edição, v. III. São Paulo: Editora Malheiros, 2009. P. 316