RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL

Daniel Elias Pereira de Paula

Outubro de 2008

A proteção à garantia das decisões do Poder Judiciário – princípio da segurança dos atos jurisdicionais - encontra-se positivada no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal de 1988, in verbis:

XXXVI – " a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

Assim sendo, sob a óptica positivista, a coisa julgada material é parte sublime de um ordenamento jurídico fechado, independentemente da matéria discutida, ainda que a decisão do magistrado não promova o fim a que se propõe, a saber: a eficácia de sua função social, a aplicação da justiça. Tal contradição - que possivelmente na visão de Saulo Rodrigues (1) configuraria a "esquizofrenia legislativa" – tem gerado discussões entre positivistas como  Luiz Guilherme Marinoni (2), e jus naturalistas. Na visão positivista de Marinoni:  

" a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada."(3 )

 

Faz menção de Redbruch referente ao pensamento Socrático:

 "crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?"(4)

A razão do discurso de Marinoni advém da necessidade de proteção aos interesses da Fazenda Pública que, pela aplicação da teoria da relativização da coisa julgada material, tem sido condenada a pagar indenizações de alto valor a partir do uso de provas periciais de natureza duvidosa:

"Nesse campo é necessário grande cuidado, pois o oportunismo daqueles que já tiveram seus direitos rejeitados pode servir de estímulo a pretensões que desejem reavivar a discussão de fatos já analisados, ou mesmo de provas já produzidas e valoradas. E isso, lamentavelmente, não tem sido incomum, pois têm surgido, na prática, casos em que, por exemplo, a Fazenda Pública é condenada a pagar quantia que julga exorbitante, mas que é resultado de laudo pericial que foi devidamente discutido em contraditório. Se a Fazenda Pública supõe, diante de certo caso concreto, que o valor a que foi condenada a pagar é indevido ou excessivo, não é por isso que poderá pretender rever o laudo pericial que, discutido plenamente em contraditório, chegou a tal valor. O problema do funcionamento indevido dos corpos jurídicos não pode ser resolvido mediante a simples tentativa de rediscussão de sentença acobertada pela coisa julgada material."

Desta forma, o autor destaca a aplicação da Ação Rescisória prevista no artigo 485, inciso VI do CPC para a sentença de mérito que se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória, como mecanismo legal a fim de coibir o abuso supra.

RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL NAS AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE

 Em se tratando de relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade, Marinoni – que agora se faz flexível -  defende a alteração do artigo 485 do CPC, tornando mais transparente a aplicação da ação rescisória, bem como no que  respeita ao seu prazo de 2 (dois) anos – artigo 495 do CPC -.,dado os avanços tecnológicos na área da medicina que em época pretérita encontrava-se limitada para a comprovação da paternidade e conseqüente garantia dos alimentos ao titular do direito:

"Como essa ação possui relação com a evolução da tecnologia, ou melhor, com uma forma de produção de prova impensável na época em que o artigo 485 do CPC passou a reger a ação rescisória, é imprescindível que esse artigo seja alterado para deixar clara a possibilidade do uso da ação rescisória com base em laudo de DNA, bem como o seu prazo".

*A relativização da coisa julgada é de natureza jurisprudencial, como se verá a seguir.

Considerando-se a prescrição da pretensão da ação rescisória em dois anos, torna-se inviável a interpretação literal da lei nas ações de investigação de paternidade pelo fato de que:

1 – sendo impossível a confirmação da paternidade ao tempo da demanda, o prazo deverá ser contado a partir da disponibilidade deste recurso técnico que agora configura documento novo – inciso VII do art. 485 do CPC;

Sobre a relativização da coisa julgada em face de documento novo – exame de DNA – e sua excepcionalidade em função do lapso temporal, afirma Marinoni:

"A coisa julgada sempre pôde ser relativizada nos casos expressos em lei, como, por exemplo, na hipótese de documento novo de que a parte não pôde fazer uso, mas que seja capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável (art. 485, VII do CPC). Trata-se de hipóteses em que se admite a relativização da coisa julgada em virtude de certas circunstâncias, que não são relativas apenas a um direito em especial, mas sim a situações que podem marcar qualquer direito. Ou melhor, os casos de ação rescisória não abrem margem para a desconstituição da coisa julgada em razão da especial natureza de determinado direito, mas sim em virtude de motivos excepcionais capazes de macular a própria razão de ser da jurisdição. Isso quer dizer que não é um direito em específico, mas sim uma dada situação excepcional, que pode exigir que se dê maior atenção ao tema da coisa julgada"

2 - dada a natureza da matéria tratada no caput do artigo 5º da Constituição Federal – diretos indisponíveis -, que classifica os direitos e garantias fundamentais, os quais, de acordo com a Desembargadora Maria Berenice Dias, em voto proferido ao Recurso de Agravo nº ° 70004042958 no TJ/RS, não devem ser restringidos em favor da coisa julgada (5):

"Ora, tratando de direito indisponível, que diz com o estado de filiação, os preceitos da Constituição Federal, bem como a legislação de proteção aos menores, devem se sobrepor ao instituto da coisa julgada, sob pena de estar-se negando à criança a busca da sua origem, do seu vínculo biológico."

 

Abaixo, decisões anteriores proferidas no TJ/RS tendo como relatora a referida Desembargadora:

 

A - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.

Descabe um juízo de improcedência, a cristalizar, como coisa julgada, a inexistência do estado de filiação, quando não convincentes as provas carreadas nos autos.

À unanimidade, rejeitar a preliminar do Ministério Público e, por maioria, extinguir a ação, nos termos do art. 267, IV, do CPC.

(APELAÇÃO CÍVEL nº 70001349968; TJRS; julgado em 27 de setembro de 2000; Desa. Relatora Maria Berenice Dias).

B - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.

Tratando-se de ação, que diz com estado de pessoa, admite-se a sua renovação, uma vez que na demanda anteriormente ajuizada não houve formação de juízo de convicção a ser selado pelo manto da imutabilidade da coisa julgada.

Apelo provido.

(APELAÇÃO CÍVEL n° 70002430106; TJRS; julgado em 26 de setembro de 2001; Desa. relatora Maria Berenice Dias).

 

 Para Berenice Dias, "a relativização da coisa julgada em sede de investigação de paternidade é talvez a mais recente amostra da supremacia da jurisprudência inclusive sobre princípio de ordem constitucional".(4).

A decisão da 7ª Câmara Cível do TJ/RS, à qual presidiu, baseou-se em  jurisprudência do STJ in verbis:

PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO.

I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.

II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA E DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.

III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem justiça não há liberdade".

IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.

(Recurso Especial nº 226.436 – PR (1999/0071498-9); Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça; Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira; data do julgamento: 28 de junho de 2001).

 

                                                       CONCLUSÃO

A relativização da coisa julgada, de natureza exclusivamente jurisprudencial torna, de forma excepcional, o ordenamento jurídico aberto – zetético -, uma vez que concede ao juiz, em grau de recurso, o poder de relativizar a sentença que estabeleceu a coisa julgada material - constitucionalmente assegurada no inciso XXXVI artigo 5º-, trazendo à rediscussão a decisão já transitada em julgado visando coibir a possível injustiça para com o titular dos direitos assegurados no caput do artigo 5º da CF/88, os quais se sobrepõe à sua rigidez sendo elevados ao mesmo nível da Constituição Federal.

A interpretação rígida do inciso XXXVI deve ser contrabalançada com o inciso VII do artigo 485 do CPC para permitir a utilização de documento novo como é o caso do exame de DNA, indisponível à época da demanda bem como o prazo prescricional de 2 (dois) anos da ação rescisória – artigo 495 do CPC -  aplicado ao tempo em que este recurso tecnológico se tornou disponível.

O direito do descendente em conhecer seu ascendente direto pelo exame de DNA, bem como de ser reconhecido como filho, o que lhe assegura usufruir dos alimentos dos quais é o titular, não podem ser sufocados pela interpretação rígida, fechada, fruto do pensamento positivista de Kelsen e Hobbes, o que tende a interromper a eficácia da função social do direito.

    Notas

1-      Rodrigues, Saulo professor na UNIRONDON.

2-     Marinoni, Luiz Guilherme. Pós Doutorado em Processo Civil.

3-     Marinoni, Luiz Guilherme. Relativização da Coisa Julgada Material. Artigo publicado no site www.jusnavigandi.com.br acesso em 20.10.08

4-     Sócrates. Op. Cit.

5-     R.A nº 70004042958 TJ/RS.

6-     Dias, Maria Berenice. Artigo publicado no site da autora. Acesso em 18.10.08

7-    Rec. Esp.l nº 226.436 – PR (1999/0071498-9); 4ª Turma do STJ;

          Rel: Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira;  28/06/01. acesso em 21.10.08