RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA EM FACE DE SENTENÇA INCONSTITUCIONAL: UM CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA JUSTIÇA DAS DECISÕES.

José Enéas Barreto de Vilhena Frazão.

Sumário: Introdução; 1 Breve análise conceitual; 1.1 Coisa julgada e coisa julgada inconstitucional; 1.2 Análise principiológica: Segurança jurídica e justiça nas decisões; 2 A relativização da coisa julgada em face de sentença inconstitucional: Do confronto entre os princípios da justiça nas decisões judiciais e da segurança jurídica; Conclusão; Referencial Bibliográfico.

Resumo
O presente desenvolvimento almeja constituir uma análise acerca da relativização da coisa julgada material, que vem despertado discussões doutrinárias sem que se tenha atingido ainda entendimento pacífico sobre o tema, e sobre a questão principiológica envolvendo ambos os princípios da justiça nas decisões judiciais e da segurança jurídica, que aparentemente se encontra lesada nos casos de relativização ou desconsideração de sentença judicial. Tentar-se-á por em questão o que viria a constituir agressão maior ao princípio da segurança jurídica, a formulação de uma sentença agressiva aos princípios e normas constitucionais, ou a desconsideração desta sentença, já que deveria ter caráter definitivo, imutável. A desconsideração ou relativização da coisa julgada diante de sentença proferida em desacordo com a carta magna seria de fato agressiva ao princípio da segurança jurídica? Ou consistiria em verdade em medida de tutela do referido princípio? Busca-se por meio deste trabalho encontrar as respostas para estas questões que já tem provocado dissenso na doutrina.

Palavras ? chave
Coisa julgada inconstitucional; Relativização da coisa julgada; Segurança jurídica; Justiça nas decisões judiciais.

Introdução.

Tem-se verificado crescente debate acerca da "flexibilização" da coisa julgada, que representa o mesmo que "relativização" de sentença judicial. O âmago da questão diz respeito à possibilidade de desconstituição de sentença judicial transitada em julgado, mesmo após o transcurso do prazo decadencial para propositura de ação rescisória, em razão de ofensa a valores de maior relevância dentro do sistema jurídico.
Para fins de viabilização de um perfeito entendimento desta abordagem, tem-se por ação rescisória a forma de impugnar uma ação judicial transitada em julgado, para descontinuar então a coisa julgada material, pleiteando assim uma reapreciação do mérito. Tem fundamento legal no artigo 485 e seguintes do Código de Processo Civil Brasileiro, e o mencionado dispositivo legal enumera os fundamentos que podem ensejar a ação rescisória.
Modernamente também tem tido grande relevância a discussão acerca da "coisa julgada inconstitucional", a saber, sentença que pressupõe, gera, ou mesmo veicula uma afronta à constituição. O Código de Processo Civil da mesma forma trata do assunto no artigo 475 ? L, §1° , versando acerca da inexigibilidade de decisão judicial inconstitucional, como será exposto em momento oportuno.
Com este trabalho visa-se então estabelecer uma análise acerca da flexibilização ou relativização da coisa julgada por motivo de incompatibilidade com normas ou princípios constitucionais, e se esta flexibilização promove agressão real ao princípio da segurança jurídica, em prol do princípio da justiça das decisões, ou se em verdade vem a gerar benefícios à própria segurança nas relações jurídicas.

1 Breve análise conceitual.

Objetivando um enriquecimento teórico da discussão, procede-se a uma rápida análise de pontos cujo entendimento de faz absolutamente necessário.

1.1 Coisa julgada e coisa julgada inconstitucional.

Coisa julgada, Res iudicata ou caso julgado é decisão judicial que tornou-se definitiva, para a qual não há mais possibilidade de recurso, e se encontra prevista no artigo 467 do Código de Processo Civil. Sobre o tema, relevante comentários encontramos na doutrina de Costa Machado:
O dispositivo sob apreciação teve claramente o intuito de conceituar a coisa julgada material, mas não logrou alcançar seu intento com eficácia [...]. Em primeiro lugar, coisa julgada material não é eficácia, mas sim um atributo ou qualidade da eficácia: a sua imutabilidade. Em segundo, porque, ao falar de "eficácia que torna imutável", o texto legal acabou conceituando coisa julgada formal: a imutabilidade da sentença pelo esgotamento ou inaproveitamento da via recursal.

Por sua vez, coisa julgada inconstitucional, como já foi colocado, representa sentença que gera afronta à constituição, como por exemplo, a sentença amparada em norma inconstitucional, ou em esforço hermenêutico incompatível com a constituição, ou ainda a sentença que provoque situação incompatível com a ordem constitucional. De outra forma, também será inconstitucional a coisa julgada amparada em indevida afirmação de inconstitucionalidade de uma norma. Acerca da inconstitucionalidade, interessante remeter às palavras de Gilmar Ferreira Mendes, quando coloca que:
[...] constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação, isto é, a relação que se estabelece entre uma coisa ? a Constituição ? e outra coisa ? um comportamento ? que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido.

1.2 Análise principiológica: Segurança jurídica e justiça das decisões.

Primeiramente, lançando mão dos ensinamentos de Ney de Barros Bello Filho, tem-se que os princípios se diferenciam das normas jurídicas na medida em que, em relação a estas, apresentam falta de precisão e tem por características a generalização e a abstração lógica , e, segundo a doutrina do prof. José Náufel, "são os princípios que informam a cultura jurídica dos povos em geral" .
Pode-se afirmar também, com base na doutrina de Kildare Gonçalves Carvalho, que os princípios se fazem indispensáveis no seio da constituição, pois possuem função ordenadora, "não só porque harmonizam e unificam o sistema constitucional, como também porque revelam a nova idéia de direito, por expressarem o conjunto de valores que inspirou o constituinte na elaboração da constituição" .
É incontestável que a segurança jurídica é um dos pilares do estado democrático de direitos. Ao envolverem-se em um conflito de interesses, as partes levam o caso para que seja apreciado perante o poder judiciário (já que o estado possui o monopólio da prestação jurisdicional ), e, quando findo o processo, os envolvidos necessitam deparar-se com a coisa julgada, ou seja, decisão definitiva e indiscutível. Neste ponto, abre-se parêntese para fazer alusão ao princípio do acesso à justiça, que garante àqueles que necessitam de prestação jurisdicional estatal o direito de contar com esta prestação, que deve se dar cercada de garantias e de forma justa, senão consultemos a doutrina de Ada Pellegrini Grinover:
O tema do acesso à justiça, dos mais caros aos olhos do processualista contemporâneo, não indica apenas o direito de aceder aos tribunais, mas também o de alcançar, por meio de um processo cercado das garantias do devido processo legal, a tutela efetiva dos direitos violados ou ameaçados.

Por fim, deve-se colocar que coisa julgada é instrumento pensado para que fosse possível atingir um estado de segurança jurídica, propiciando aos envolvidos em uma lide a certeza de que o conflito foi solucionado de maneira definitiva, e ainda, como bem coloca Barbosa Moreira, o instituto da coisa julgada "é condição essencial para que possam os jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência do funcionamento da máquina judicial" . Por fim, tem-se que o princípio da segurança jurídica, de bases constitucionais, é aquele que visa garantir a obrigatoriedade do direito, e a preservação de direitos.
No entanto, o princípio da segurança jurídica também se encontra atrelado à noção de justo e injusto em cada sociedade, e também poderia ser agredido em caso de proferimento de sentença "injusta", ou mesmo inconstitucional, na medida em que venha a agredir princípios ou normas constitucionais, ou pior, que venha a lesar direitos e garantias fundamentais constitucionalmente tutelados.
Por isso deve-se considerar que o valor "justiça", de índole constitucional, por vezes deva prevalecer sobre a segurança jurídica, do que brota o direito à decisão justa a ser proferida pelo poder judiciário. O princípio da justiça nas decisões encontra-se visível inclusive no artigo 485 do Código de Processo Civil, que coloca que a decisão judicial poderá ser rescindida em casos como se verificada a corrupção do juiz ou o seu impedimento, ou ainda a violação literal de disposição legal, ou se tiver sido fundada em falsa prova. Qualquer um destes casos mencionados representa clara violação à justiça que deve se fazer presente em decisão judicial, já que uma decisão proferida por juiz corrompido ou fundada em prova falsa jamais poderia ser tida como justa.

2 A relativização da sentença inconstitucional: Do confronto entre os princípios da justiça das decisões judiciais e da segurança jurídica.


Como já foi dito anteriormente, a coisa julgada é em verdade uma manifestação normativa do princípio da segurança jurídica, já que visa promover a estabilidade das relações sociais na medida que torna indiscutível a decisão judicial, sem possibilidade de recurso. Boa doutrina se manifesta no sentido de que a coisa julgada em verdade não constitui um "efeito" da decisão, mas sim uma "qualidade" atribuída a esta decisão e aos seus efeitos, de modo que não venham a ser alterados em uma nova discussão da demanda.
No entanto, como já foi dito, tem crescido o volume de discussões acerca da relativização da coisa julgada. Prefere-se afirmar que a coisa julgada não é de fato absoluta, já que o Código de Processo Civil brasileiro prevê possibilidades de desconstrução da coisa julgada por meio de ação rescisória.
Como bem coloca Nelson Neri Jr., não há que se falar em relativização da coisa julgada material, mas sim, em sua "desconsideração" . Diante de sentença inconstitucional, ou seja, sentença que represente uma afronta à constituição seja porque amparou-se em norma inconstitucional ou em interpretação distorcida, não há que se adotar outra postura senão aquela favorável à desconsideração da mesma, pois tão grave quanto é o nascimento de lei inconstitucional no seio do sistema jurídico é o trânsito em julgado de sentença agressiva aos princípios e normas constitucionais, que dentro deste sistema têm superioridade hierárquica, representando verdadeiramente seus pilares fundamentais, como bem coloca José Afonso da Silva em seu curso de Direito Constitucional Positivo:
A rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como principal conseqüência, o princípio da supremacia da constituição [...]. Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade [...].

Porém, existirão aqueles que levantarão a questão da desconsideração de sentença judicial enquanto medida lesiva ao princípio da segurança jurídica, que exige que garanta-se às partes envolvidas em um conflito de interesses uma solução definitiva para a lide. De certo, uma decisão judicial deverá ser definitiva, mas, acima disso, deverá ser justa, jamais havendo-se de atribuir caráter definitivo àquela decisão eivada de vício de inconstitucionalidade, que pode vir a representar a mais grave das injustiças, já que na constituição de um estado encontram-se abarcados os valores de maior relevância para a sociedade, como a própria justiça, a igualdade, dentre outros não menos importantes.
Desta forma, acredita-se não constituir uma afronta à segurança jurídica a desconsideração de sentença inconstitucional, visto que o seu proferimento em si mesmo considerado já representa uma enorme agressão a este princípio. Como poder-se-ia falar em segurança jurídica no seio de um estado onde a constituição se encontraria sob constantes agressões, não havendo logrado observância plena de suas disposições? A coisa julgada inconstitucional não deve ser considerada nada além de uma aberração no interior de um sistema jurídico, devendo ser plenamente passível de desconsideração, como bem reconheceu o legislador no Código de Processo Civil, ao dispor no artigo 475 ? L, §1° que "considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal", e boa doutrina neste sentido, como é o caso de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que lembra que "o ato inconstitucional [...] é nulo e írrito. Dessa forma, ele não obriga, não sendo de se aplicar" . Somente desta forma se poderá falar em justiça plena nas decisões judiciais.

Conclusão.

O instituto jurídico da coisa julgada é de fato fundamental para que haja segurança jurídica real e credibilidade do judiciário para com os jurisdicionados. No entanto, a segurança jurídica jamais poderá ser pensada de forma separada em relação à justiça nas decisões.
A relativização ou desconsideração de coisa julgada inconstitucional é medida realmente necessária para a preservação não somente da justiça nas decisões judiciais como também da própria segurança jurídica, pois são inadmissíveis quaisquer tentativas de violação de normas constitucionais ou de princípios abarcados pela constituição do estado. Evitando-se a inobservância aos princípios e disposições constitucionais, evita-se também as mais variadas formas de injustiça, além de promover-se a preservação da segurança jurídica, que, antes de tudo, representa um dos pilares do estado democrático de direito, como já dito, e é princípio presente na Constituição Federal e por ela tutelado.

Referencial Bibliográfico.

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