Autores: Ítalo Reis Brown e Bianca Moreira Serra Serejo


1. INTRODUÇÃO
Com certa freqüência, batem à porta do Judiciário, pessoas que, em face da morte de seu companheiro homossexual, vêem-se desprotegidas pela lei e ameaçadas de perder para a família do de cujus, herdeiros ex lege do falecido, todo um patrimônio para cuja construção tenha contribuído. Logo, batalhas causticantes, financeiramente dispendiosas, e moralmente degradantes, se estabelecem entre o companheiro sobrevivente e a família do falecido.
Sabe-se que a justiça só é justa quando os seus juízes, sem medos e preconceitos, adquirem a consciência de que sua missão é proteger a todos a quem a sociedade vira o rosto e a lei insiste em não ver (DIAS, 2006).
As questões jurídicas advindas das relações homossexuais carregam em si uma carga intensa de sensibilidade e demandam coragem para enfrentar um tema jurídico pouco prestigiado em nossa legislação, sendo necessário manter em nossas mentes que a busca da felicidade é pessoal e não um modelo único arraigado em preconceitos.

2. AS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS ÀS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS: breves comentários.
A falta de dispositivo legal sobre a matéria tem tornado cada vez mais importante a atuação do operador do direito a fim de solucionar, com eqüidade, o tema aqui em vogas, logo torna-se vital o entendimento do "fenômeno social jurídico" em epígrafe.
A fria exegese da lei não deve ser confundida pelo jurista como aplicação do Direito, pois este deve ser, primeiramente, entendido como fato social produto da atuação dos atores sociais em seu meio. Pontes de Miranda escreve sobre o tema:
"Diante das convicções da ciência, que tanto nos mostram e comprovam explicação extrínseca dos fatos (isto é, dos fatos sociais por fatos sociais, objetivamente), o que se não pode pretender é reduzir o direito a simples produto do Estado. O direito é produto dos círculos sociais, é fórmula da coexistência dentro deles. Qualquer círculo, e não só os políticos, no sentido estrito, tem o direito que lhe corresponde." (Miranda, 1955 p.170)

Logo, resta claro que os fatores externos ao judiciário, ou seja, a sociedade como um todo, representam forte influência para o operador do direito no momento em que se depara com situações indagadoras como a união homoafetiva. Assim sendo, partindo-se da idéia que tais relações são evidenciadas e, até certo ponto, aceitas por boa parte da sociedade, possuindo representantes em todos setores, entende-se que uma interpretação principiológica seria importantíssima para alcançarmos à defesa dos interesse dessas pessoas.
Lembra-se que o princípio da dignidade da pessoa humana sintetiza todos os demais direitos e princípios fundamentais. É qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano, é irrenunciável e inalienável, deve ser respeitada, promovida e protegida por parte do Estado e da comunidade. Já o princípio da igualdade substancial preconiza que todos são iguais perante a lei. Todavia, o que se busca é uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida, devendo-se respeitar as diferenças.
A Constituição da República assegura igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, não admitindo o texto constitucional qualquer tipo de preconceito ou discriminação na decisão judicial quando afirma que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política", e que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, garantem "promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

3. A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SUCESSORIOS NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS: uma análise jurisprudencial.

A Jurisprudência já reconhece a união homossexual a partir da inteligência do dispositivo constitucional, senão vejamos:
EMENTA: Homossexuais. União Estável. Possibilidade Jurídica do Pedido.
"È possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na Cosntituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora , quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida.(Ap. Cívil nº 598362655, Oitava Câmara Civil, Tribunal de Justiça RS,Relator:Des. José Ataíde Siqueira Trindade.,Julgado em 01.03.00)
Sob o afeto e a confiança, determinavam, porém, o direito e poder sucessórios. A desembargadora do TJ-RS, Maria Berenice Dias sustenta que:
Pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, merecem ser reconhecidas como entidades familiares. Assim, a prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. (Dias; 2001. p. 102)

Como se faz notório, o conceito de família sofreu uma clara e evidente mudança, se alargou e se pluralizou, a intenção de nossa Carta Magna é proteger não só a celular familiar como um todo, mas a também proteção individual das pessoas que a constituem.
Como exemplo dessa mudança temos a consagração pela CF/88 das famílias monoparentais, aquelas famílias formadas por um dos pais e filhos. Destarte, se o rol constitucional das entidades familiares que constituem família monoparental não é um rol numerus clausus, é meramente exemplificativo, as uniões homossexuais também são núcleos familiares que reclamam, portanto, igual tratamento. (LOPES, 2009).
No tema aqui debatido, faz-se necessário a aplicação da Súmula 380 editada pelo Supremo Tribunal Federal, que dispõe: "Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum".
As relações homoafetivas são uma sociedade e como tal são amparadas pelo CC em seu art. 981 e segs. Desta forma as pessoas do mesmo sexo podem iniciar o reconhecimento da sociedade de fato homoafetiva com contrato que contenha cláusula que especifique o patrimônio de cada companheiro e o esforço comum para os próximos investimentos, onde os bens a serem adquiridos serão inscritos em qualquer dos nomes ou de ambos e partilhados em igualdade pela dissolução ou herdados pela morte de um deles.
Do ponto de vista doutrinário, para configurar a sociedade de fato é necessário:
1) comunhão de interesses que una os concubinos na busca de um mesmo fims; 2)formação de patrimônio durante a permanência do concubinato; 3)o esforço comum de ambos para formar o patrimônio. (BRITO, 2000)
Tais requisitos podem ser facilmente verificados, deve-se levar em conta uma análise concreta dos fatos, à título de exemplo de uma interpretação por analogia da Lei 9.278/96 temos a jurisprudência:

"EMENTA: Apelação Civil. Ação de Reconhecimento de Dissolução de Sociedade de Fato cumulada com partilha . Demanda julgada procedente. Recurso improvido."
"Aplicando-se analogicamente a Lei 9278/96, a recorrente e sua companheira tem direito assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que dissolvida a união estável. O Judiciário não deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de preconceitos só porque desprovidas de norma legal. A relação homossexual deve ter a mesma atenção dispensada ás outras ações.Comprovado o esforço comum para a ampliação ao patrimônio das conviventes, os bens devem ser partilhados. Recurso Improvido." (Tribunal de Justiça da Bahia.Ap.Civil nº 16313/99.Terceira Câmara Civil.Relator:Des.Mário Albiani.Julgado em 04.04.2001).


O voto do Desembargador José Trindade continua:

"Ainda, também o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o direito á partilha de bens entre homossexuais, em inovador julgamento, merecendo a transcrever a ementa do precedente".
"SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DE BEM COMUM. O parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida à existência de sociedade de fato com os requisitos do art. 1.363 do C.Civil"
(Resumo)(Rep.nº148.897/MG,Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 10.02.1988)

Tal reconhecimento e a conseqüente partilha de bens já foram objeto outros de julgamentos como se depreende do julgado:

"Recurso especial. Relacionamento mantido entre homossexuais. Sociedade de fato. Dissolução da sociedade. Partilha de bens. Prova. Esforço comum. - Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pessoas do mesmo sexo configura sociedade de fato, cuja partilha de bens exige a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado" (REsp 648.763/RS, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 4ª Turma, julgado em 07.12.2006, DJ de 16.04.2007, p. 204).


A corrente jurisprudencial majoritária segue na direção de que a no caso da partilha de bens é cabível entrar com o pedido de dissolução da sociedade de fato. Compartilha-se em parte dessa idéia, não sob a égide de negar a união homoafetiva como entidade familiar, mas em face às regras legais previstas do direito civil.

CONCLUSÃO:

Como se pode ver o direito é uma ciência que evolui mediante os hábitos da sociedade, portanto, não podemos mais fechar os olhos para esta realidade.
Diante da atual realidade, se faz necessário aplicar à união homoafetiva o regime jurídico sólido para partilha de bens o da dissolução da sociedade de fato, perante o reconhecimento da união estável, bem como conferir direitos sucessórios à parceira(o) sobrevivente, já que a Constituição Federal com base nos princípios da igualdade (art. 5°, caput), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X) visa proteger os interesses das uniões homoafetivas, pois interpretação diversa seria inconstitucional.
Entende-se pela possibilidade jurídica de conferir direitos sucessórios a parceira sobrevivente, uma vez que alguns direitos advindos de relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo já estão sendo reconhecidos, tais como, concessão de benefício previdenciário de pensão por morte ao companheiro do segurado falecido, inclusão do companheiro homossexual como dependente em plano de saúde, a adoção por homossexuais, entre outros. Assim sendo a relação homoafetiva também deveria ser reconhecida na seara do Direito Civil.

REFERÊNCIAS:

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002.

BRITO, Fernanda de Almeida. União afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos. São Paulo: LTr, 2000.

DIAS, Maria Berenice, União homossexual: o preconceito e a justiça. 3. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006.

DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Livraria do Advogado Editora. 2006, 1ªedição.

LOPES, Rénan Kfuri. Ave, Ó Berenice Dias. Disponível em: http://64.233.169.104/search?q=cache:xpQbcIIjdXMJ:www.nagib.net/variedades_artigos_texto.asp%3Ftipo%3D14%26area%3D3%26id%3D452+modelo+dissolu%C3%A7%C3%A3o+de+sociedade+de+fato+post+mortem&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=21&gl=br. Disponível em: 11 maio 2009.