Sempre houve um fosso entre a atividade prática e a teórica. Isto desde que pudemos constatar que essas duas vertentes da ação humana não seguem estritamente um mesmo caminho, pois se o contrário fosse verdade não estaríamos ainda tentando implantar no contexto prático do ensino as elucubrações feitas pelos teóricos. De modo geral, podemos constatar este fato quando nos vemos diante de uma grande quantidade de teorias que versam sobre o mesmo assunto no campo das ciências humanas, o que parece indicar que a questão da verdade, como orientadora da ação humana, não é definitiva e fechada, mas sim aberta e não conclusiva. As ciências linguísticas, em suas amplas ramificações, tratam justamente desse fator de relatividade em suas concepções em relação aos acontecimentos da língua. A verdade, em sua obviedade obscurecedora, não pode ser levada em conta quando pensamos sobre a língua, porque sua característica mais marcante é a sua propensão às nuances, a não literalidade, o que definitivamente expurga a possibilidade de se entender os seus fenômenos complexos pela superficialidade de abordagens incompletas e mal formuladas.
Ao tratarmos nas linhas iniciais desses problemas tão gerais quanto nos parece a questão da verdade ou mesmo a relação entre teoria e prática, pretendemos com isso buscar as raízes profundas da problemática do ensino de uma segunda língua (doravante L2). Intentaremos aqui pensar sobre as perspectivas do ensino de L2 na relação teoria/prática, o que merece ser dito por meio da viabilização de um pensamento focado no próprio ensino e em suas questões metodológicas.
O ensino de uma L2, entendido como o processo no qual o aluno tem a oportunidade de entrar em contato com outra realidade linguística que não a sua, está diretamente ligado aos discursos sobre a verdade e aos efeitos da díade teoria/prática. Não há como negar que os discursos da verdade influenciem o ensino em todas as suas esferas, tanto é que em todas as escolas públicas os documentos oficiais do estado que versam sobre educação são tomados como parâmetros para a ação de educar. Neste caso, os documentos oficiais não são só seguidos e suas concepções postas em funcionamento, mas também são lidos como verdades absolutas e incontestáveis, algo que provoca a desvalorização de abordagens novas, mesmo aquelas que podem dar os resultados tão almejados pelo ensino.
Por outro lado, a relação teoria/prática afeta igualmente o ensino em suas dimensões pragmáticas. Se a verdade no ensino está carregada de fundamentações proferidas pela ordem das instituições governamentais, as teorias como base de sustentação das verdades também partem dessa instancia superior para tentar controlar a atividade prática do ensino, o que, no entanto, não pode ser avaliado como algo definitivo, tendo em vista que há uma grande disparidade entre a real possibilidade de sustentar a ação educativa por meio de teorias e a efetiva consecução dessa ação educativa em nossas escolas.
O que aqui dizemos é que o modus operandi do ensino em nossas escolas não é aquele pregado nos diversos documentos de parametrização disponibilizados pelas autoridades legisladoras. A realidade que encontramos é adversa a regra que circunscreve o raio de atuação das escolas, dos professores, ao que está ratificado na ordem politico-educacional, ao que parece mais viável diante da conjuntura educativa de nosso país. A par desta informação cumpre pensarmos sobre esta realidade configurada no processo educativo de uma L2.
Para começarmos a esmiuçar a problemática de nossa discussão, propomos considerar o substrato do pensamento de ambos, professor e teórico ou, neste caso, professor do professor. A este respeito Leffa (2008) afirma

Criam-se, assim, dois tipos de pensamento, que podemos definir como pensamento teórico, aquele construído dentro dos muros da academia, e o pensamento prático, construído no embate com a realidade do dia-a-dia. Esses dois tipos de pensamento estão relacionados a dois tipos de professores: os professores e os professores dos professores. O professor está mergulhado no contexto imediato; não tem uma idéia clara da história e de como as coisas evoluem, mas conhece a realidade de perto pelo que vivencia através dos cinco sentidos: pelo que vê, ouve, cheira, apalpa e prova. É o domínio do pensamento sensível ou prático. O professor dos professores, ao contrário, olha a realidade de longe, abstraída de seu contexto imediato. O que vê é uma representação da realidade, geralmente relatada por terceiros, incluindo orientandos e outros professores. É o domínio do pensamento teórico. Não vê o detalhe, mas tem uma visão panorâmica que mostra o contexto maior, incluindo o entorno espacial e a história, com seus avanços e recuos.


Segundo o que pudemos perceber, a atividade de um e outro não se converge num espaço comum, ora uma está fechada em si mesma e descontextualizada, ora a outra não está amparada por uma visão sistematizada e atualizada do ensino. Seja como for, não há como negar a não complementaridade das duas, o que significa a segmentação de espaços de atuação que se tornam cada vez mais atrofiados em suas ações. As visões do que possa ser a aprendizagem ficam, para cada uma das duas porções da docência, limitadas ao contexto imediato de sua produção, o que definitivamente gera um claustro de adoração própria ou a acomodação em níveis incipientes de problematização do ensino. De maneira geral, o entrosamento entre o professor e o professor do professor não acontece, o que um e outro fazem é reduzir-se a si mesmos sem considerar a presença auxiliar de um elemento estranho: o outro.
As duvidas de que possa haver um trabalho conjunto entre o teórico e o prático já foram extintas há muito tempo, sendo notável a interface criada na interação destes dois agentes. Porém, como já vimos afirmando, esta interface ainda não está implantada, o que significa que precisamos construir esta relação, tentando primeiro entendê-la para depois erigi-la. Neste viés Ponzoni (2009) considera que


A relação entre teoria e prática tem sido bastante discutida em processos de ensino e aprendizagem de línguas. Muitas vezes, verifica-se que uma aparece dissociada da outra, e a reflexão crítica sobre o processo pedagógico como um todo nem sempre encontra espaço para ocorrer. Assim, o professor torna-se um mero transmissor de conhecimentos, repetidor de certezas testadas no passado, sem desenvolver a criticidade necessária para a sua formação.



Assim, a construção do conhecimento junto com os alunos parece ser, atentando para o que a autora explicita, uma mera repetição automática de conteúdos, experiência cristalizada que não dá chance a ação reflexiva do docente. Para os alunos, do mesmo modo, os processos de aprendizagem se tornam insignificantes e improdutivos, restando apenas uma triste constatação de que o conhecimento é algo difícil, impenetrável e a privilégio de poucos.
A oportunidade de criarmos uma relação de afinidade entre a atividade teórica e a atividade prática talvez seja na graduação, e diremos o porquê. É no espaço da graduação que os futuros professores têm o contato com essas duas vertentes de atuação, e ele mesmo se torna de certa maneira um teórico e um prático durante a sua formação. A teoria se configura como uma das peças fundamentais de qualquer curso de graduação, e na graduação em Letras os futuros professores entram em contato com ela, a construírem suas próprias problematizações de diversos assuntos ligados ao ensino, o que obviamente os torna teóricos do ensino de línguas. Por outro lado, quando falamos de um curso de Licenciatura em Letras não há como não pensarmos sobre o contato dos graduandos com a atividade prática, principalmente nas disciplinas de Estágio. Nestas disciplinas o futuro professor começará a vivenciar a realidade de uma sala de aula, e a partir daí passará a exercer a função de um agente prático da educação, ou seja, alguém que atua na situação pragmática de dar aulas.
Então, a viabilidade da relação teoria/prática pode e deve ser construída durante a formação dos professores, pois é justamente no momento da graduação que são disponibilizadas múltiplas visões acerca do ensino, de como se pode tentar entendê-lo, vivencia-lo, etc.; o conhecimento teórico oferecido durante o período da graduação juntamente com os primeiros contatos com a prática deveriam convergir, deveria um ser a base sustentadora do outro, sem esquecer que só é possível a construção de um crescimento qualitativo de nossa educação por meio dos dois.
Muito se poderia dizer sobre as dificuldades encontradas no contexto prático de ensino para justificar a falibilidade de uma ação conjunta entre teoria e prática, no entanto, deve-se compreender que a sala de aula comporta inúmeros fatores que podem levar ao sucesso ou insucesso das aulas. Deste modo, no ensino de uma L2 devemos entender que


A aprendizagem de uma língua é, portanto, um fenômeno duplamente complexo. É complexo internamente, nas relações que precisa estabelecer entre os elementos do sistema lingüístico (a fonologia com a morfologia, a sintaxe com a semântica, a fonologia com o discurso ? a prosódia, por exemplo, pode estar intimamente relacionada com a posição do sujeito na interação com o outro ? e assim por diante); e é também complexo externamente, nas relações que estabelece com outros sistemas. (LEFFA, 2006)



Negar a complexidade das relações entre os diversos fatores que estão implicados no processo de ensino/aprendizagem de uma L2 seria desconsiderar o próprio ensino, pois a complexidade, entendida como um intrincamento de vários elementos que se auto regulam e se sobredeterminam e que não devem ser considerados separadamente, é própria de toda e qualquer ação humana.
A compreensão da complexidade da ação educativa deveria ser um dos dispositivos amplamente utilizados na formação de professores, tendo em vista que o contato com a teoria é uma atividade fundamental na graduação. O entendimento das relações que se estabelecem entre vários sistemas complexos é de extrema importância para a ação do professor, sua forma de trabalhar suas aulas e a resposta e desempenho dos alunos estarão intimamente ligados a este entendimento. Se não houver o esforço no sentido de prestar atenção a todos os aspectos que estão envolvidos processo educativo o ensino, e o ensino de uma L2, estará fadado ao fracasso. Dessa maneira, e no caso especifico do ensino de uma L2, a coexistência e influencia exercida entre um sistema complexo e outro são elementos que influenciam diretamente no resultado das aulas. A apreensão, por parte dos alunos, dos conteúdos passados em sala de aula será factível a medida que eles estiverem cônscios das relações inextricáveis estabelecidas entre os diversos sistemas complexos presentes na realidade linguística da língua-alvo. Assim, além dos conhecimentos estruturais da língua-alvo o aluno também precisa adquirir conhecimentos culturais das sociedades que falam esta língua, condição pela qual a prática pedagógica se tornaria mais eficiente.
A insistência em falarmos da importância da relação entre teoria e prática não diz respeito ao fato de acreditarmos que a teoria sirva unicamente para melhorar as condições do trabalho automatizado dos professores, trabalho que preza a concepção de um ensino de língua voltado a mecanicidade de formulas pedagógicas ultrapassadas, descontextualizadas e ineficientes, pelo contrário, acreditamos justamente na força de um trabalho conjunto que propicie novos paradigmas de ensino. Desse modo, teoria e prática seriam complementares, uma se colocando a serviço da outra, a teoria disponibilizando novos ideais metodológicos e a prática respaldando o pensamento teórico com a experiência pragmática da sala de aula. Nesta nova conjuntura, o trabalho de professores e professores dos professores estaria


Considerando o papel fundamental que a escola exerce na sociedade, podendo contribuir para a manutenção ou para a mudança das relações de poder dessa sociedade, uma compreensão mais apurada do que acontece na comunidade escolar e do papel da linguagem na construção da identidade dessa comunidade pode mostrar caminhos quanto a decisões a serem tomadas e ações a serem propostas no que tange à educação lingüística. (SCHLATTER & GARCEZ, 2002)



Parece-nos ser por meio de uma educação politizada, na qual o trabalho com o ensino seja a ferramenta de transformação de nossa realidade, o modo mais acertado de construir a interface teoria/prática. Por isso, a realidade do aluno também deve ser pensada e considerada em ambas as atividades, tanto no tratamento que o teórico dá a esta questão quanto na forma como o professor trata esse aspecto em seu trabalho em sala.
Ante todas as questões que apresentamos fica evidente que a relação entre teoria e prática é algo possível, e mais ainda algo necessário. Tentamos deixar claro também que a preocupação maior no ensino de uma L2 é formar um ambiente contextualizado de ensino, o que se evidencia a partir da disponibilização de metodologias educativas que propiciem considerar todos os elementos envolvidos na prática de ensino. Ao fim de tudo o que podemos considerar é que uma educação que leve em conta esses aspectos poderá satisfazer nossas necessidades de formar falantes em uma L2.






REFERÊNCIAS

LEFFA, Vilson j. Malhação na sala de aula: o uso do exercício no ensino de línguas. Rev. Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 8, n. 1, 2008.

___________. Transdisciplinaridade no ensino de línguas: a perspectiva das Teorias da Complexidade. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 6, n. 1, p. 27-49, 2006.

PONZONI, R. M. A construção do professor crítico-reflexivo de língua inglesa durante o curso de Letras. parte da Dissertação de mestrado. Universidade de Taubaté, 2009.

SCHLATTER, M. & GARCEZ, P. M. Treinamento ou educação no ensino de língua: escolha metodológica ou política? In: PAIVA, V. M., DUTRA, D & MELLO H. (Org.), Anais do VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada: a linguagem como prática social. Belo Horizonte: ALAB/FALE/UFMG, p. 1-15, 2002.