1. INTRODUÇÃO

Todo discurso está sujeito ao dialogismo, em palavras mais simples, toda manifestação da linguagem pode ser permeada pelo discurso de outrem. Não sendo exclusivo do texto escrito, mas também, verbal, gestual, pictórico, etc. As obras literárias não fogem à regra, muitas dialogam com outras, podendo esse fenômeno ser intencional ou não. É, pois, a direção provável de qualquer discurso vivo.
Na concepção bakhtiniana de linguagem, todo discurso, por meio de várias direções ou em seu caminho até o objeto, encontra-se com outros discursos e participa com eles de uma interação viva e intensa. É, pois um fenômeno inerente a qualquer e todo discurso. (BAKHTIN, 1988, p.88)
Tomando esse conceito, percebemos que um discurso está sempre permeado por outros discursos anteriores a ele, ou seja, há uma influência constante dos discursos alheios dentro de um discurso próprio.
José Luiz Fiorin em seu Introdução ao pensamento de Bakhtin expõe o assunto com maestria no segundo capítulo sobre o dialogismo. O autor aponta duas formas de manifestação do dialogismo, o constitutivo que não se mostra no fio do discurso, é uma incorporação das vozes de um discurso dentro de outro, essa incorporação não é visível, mistura-se; e o dialogismo composicional, que apresenta maneiras de demonstrar o uso do discurso de outrem através de maneiras externas e visíveis. (FIORIN, 2006, p.32).
O que vai interessar nessa pesquisa é a forma de dialogismo composicional, ou até mesmo a intertextualidade, que apresenta mecanismos externos e visíveis para demonstrar essa influência nítida do discurso de outrem no discurso próprio, é o chamado discurso alheio não demarcado, em que "o discurso é bivocal, internamente dialogizado, em que não há separação muito nítida do enunciado citante do citado" (FIORIN, 2006, p. 33).
Entrando mais profundamente na ceara da intertextualidade, este termo não faz parte da obra de Bakhtin, ele foi utilizado primeiramente pela semioticista e filósofa búlgaro-francesa, Julia Kristeva, sendo posteriormente difundido por Roland Barthes, que considerava a intertextualidade um sinônimo de dialogismo. Porém, há contradições doutrinárias acerca dessa aferição à intertextualidade.
José Luiz Fiorin explica que para Bakhtin qualquer discurso pode ser dialogizado, podendo ele ser escrito ou verbal, ou seja, qualquer forma de expressão discursiva, como dito anteriormente. Já a intertextualidade materializa-se apenas em textos escritos, objeto desta pesquisa.
Ainda segundo Fiorin, no seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin, ele alega que dialogismo e intertextualidade não são sinônimos, emitindo que a intertextualidade poderia ser a denominação de um tipo de dialogismo composicional. Para esclarecer mais detalhadamente o assunto, faço uso das palavras do próprio autor ao explicar a razão de considerar a intertextualidade um tipo de dialogismo composicional e como isso ocorre:

"Intertextualidade deveria ser a denominação de um tipo composicional de dialogismo: aquele em que há no interior do texto o encontro de duas materialidades lingüísticas, de dois textos. Para que isso ocorra, é preciso que um texto tenha existência independente do texto que com ele dialoga." (FIORIN, 2006, p. 52-53)

Portanto, para que a intertextualidade ocorra, tem que existir um texto prévio para que outro texto se construa, é algo completamente novo surgindo a partir de um texto anterior.
Segundo Julia Kristeva, "todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto". (KRISTEVA, 1974, p.64). Todo texto tem origem a partir de uma "colagem" de textos anteriores a ele. Ou seja, o texto transforma-se e absorve ideias antes exploradas, construindo um verdadeiro mosaico ou até mesmo uma "colcha de retalhos" de ideias e pensamentos de criações textuais alheias. Portanto a intertextualidade nada mais é do que a incorporação de um texto em outro texto, possuindo a finalidade de reproduzir o sentido ou modificá-lo usando mecanismos diversos. (FIORIN, 2003, p. 30).
Muitos teóricos costumam classificar tipos de intertextualidade, entre os diversos citados por Koch e Travaglia, em seu livro Texto e Coerência, será focado o tipo de intertextualidade que se liga diretamente ao conteúdo. Podendo ter um caráter explícito, como a citação, e implícito como a paródia e a paráfrase. (KOCH & TRAVAGLIA, 1989, p. 88-89).
Neste trabalho, o objetivo será utilizar o mecanismo de manifestação da intertextualidade explícito, a paródia, que nada mais é do que uma imitação de uma obra literária com a finalidade de ridicularizar, fazendo o uso da ironia, possuindo muitas vezes um sentido diverso e até mesmo contrário ao da obra original. A paródia é, pois, uma distorção do texto-base, com diversas finalidades, entre elas a crítica. (KOCH & TRAVAGLIA, 1989, p. 88-89)
O objeto de análise, portanto, serão dois grandes poemas da literatura brasileira, Canção do Exílio de Gonçalves Dias e Canto de Regresso à Pátria de Oswald de Andrade. Vale ressaltar ainda que a análise em questão liga-se ao conteúdo dos poemas, suas diferenças e semelhanças. O texto-base é o de Gonçalves Dias, ou seja, ele é a matriz que originou o de Oswald de Andrade, este, é o intertexto, que, por sua vez, de acordo com o dicionário Aurélio de língua portuguesa, significa "Conjunto de referências ou influências de outro(s) texto(s) num texto."


Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar ?sozinho, à noite?
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
(Gonçalves Dias)
Canto de regresso à pátria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

(Oswald de Andrade)










2. ANÁLISE DOS POEMAS
2.1. "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias
O poema "Canção do Exílio" foi escrito pelo poeta Gonçalves Dias em 1843, quando o poeta se encontrava em Portugal na cidade de Coimbra, o referido poema encontra-se no livro Primeiros Cantos. Tal poema é considerado por muitos teóricos como sendo a obra-prima do autor, que era pertencente à primeira geração romântica da literatura brasileira, sendo considerado um dos poemas mais famosos da língua portuguesa. (FARACO & MOURA, 1998, p. 100).
No poema em análise, há de se perceber características marcantes da primeira geração do romantismo: o saudosismo, o nacionalismo, a exaltação à natureza e a idealização da pátria. O poeta maranhense estava estudando direito em Portugal quando escreveu o poema, refletindo assim o sentimento de saudade e patriotismo. Como forma de exaltação da natureza, Gonçalves dias usa termos que exprimem a grandiosidade e beleza do Brasil, ele utiliza o termo "palmeiras", uma árvore imponente e também símbolo de riqueza; e "sabiá", um pássaro que possui um canto belo. A terra natal é vista com um olhar exagerado, ufanista, pois o poema é estruturado em contrastar a paisagem do Brasil com a do exílio (Portugal). (MARQUES, 2003, p. 79-93).

2.2. "Canto de regresso à pátria" de Oswald de Andrade

O poema "Canto de regresso à pátria" foi escrito pelo poeta, dramaturgo e ensaísta brasileiro Oswald de Andrade em 1924, primeiramente publicado na revista "Pau-Brasil". O poeta era pertencente à primeira geração modernista da literatura brasileira, foi um expoente e produtor da semana de arte moderna de São Paulo em 1922, ele era considerado o mais rebelde escritor daquela época. Como outros poetas do modernismo, Oswald de Andrade procurava escrever com a espontaneidade da linguagem, e vocabulário simplificado, rompendo de vez e fazendo duras críticas à linguagem rebuscada da escola parnasiana. (FARACO & MOURA, 1998, p. 253-263).
Característica marcante do modernismo eram as críticas ao tradicionalismo, as obras literárias deste período eram irreverentes, polêmicas, e possuíam tons humorísticos. No modernismo havia também, a incorporação do presente, do progresso, da máquina, do novo ritmo da vida moderna em muitas criações literárias daquela época. A poesia modernista era ainda nacionalista, porém, fugindo do imaginário romântico. O recurso da paródia era utilizado para criticar visões tradicionalistas da literatura, como por exemplo, a poesia parnasiana e a poesia romântica. (FARACO & MOURA, 1998, p. 262-263).
Isto posto, o poema de Gonçalves Dias foi a base para o surgimento do poema de Oswald de Andrade, em que o escritor o transformou em uma "paródia forte e extremamente crítica contra a alienação social, no Brasil" (CINTRÃO, 2003). Oswald de Andrade acrescentou na releitura do poema romântico o humor, não saindo da temática nacionalista, porém, com uma nova perspectiva, a crítica. Vale salientar que essa crítica não se refere ao elemento nacional em si, mas sim à forma ufanista e idealizada, típica do romantismo. Outro ponto do poema modernista é o fato de Oswald ainda se referir com os mesmos advérbios "daqui" e "lá", porém o poeta não se refere ao Brasil, como no poema gonçalvino, e sim à cidade de São Paulo, mais precisamente à Rua 15 e ao progresso da cidade. (CINTRÃO, 2003).

2.3. "Canção do exílio" X "Canto de regresso à pátria"

O poema de Oswald de Andrade na primeira estrofe há uma quebra com os elementos que estão presentes no poema gonçalvino. Ao se referir a "palmares" no lugar de "palmeiras", fazendo uma alusão a Zumbi dos Palmares, escravo fugido, símbolo da abolição, construindo assim uma referência crítica à escravidão no Brasil, uma mancha na história nacional. Quando o poeta refere-se a "passarinhos" substituindo o termo "aves" do poema gonçalvino, ele está rompendo com a norma estética do romantismo, uma forma de aproximar a linguagem da forma mais livre e simples possível, característica marcante da primeira geração modernista da literatura brasileira. A segunda estrofe é estruturada a partir das virtudes da "terra", mostrando uma semelhança com o poema romântico, porém no segundo verso "é de um realismo desconcertante, conseguido pelo ?quase? que antecede o advérbio ?mais?". (CINTRÃO, 2003)
A terceira estrofe do poema modernista confirma a ideia de Gonçalves dias "a súplica a Deus para que não o deixe morrer sem voltar a sua terra" (CINTRÃO, 2003).
Evidenciado na última estrofe, onde reside uma grande diferença entre os dois poemas, o referencial espacial, o poema romântico refere-se ao Brasil, o de Oswald de Andrade refere-se à São Paulo, símbolo do progresso do país.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto ao longo desta pesquisa, provou-se que textos estão suscetíveis à influência de textos anteriores, mantendo relações interiores e exteriores com eles. Os textos dialogam entre si pelas mais variadas formas e finalidades.
Utilizando-se da análise do conteúdo de dois poemas importantíssimos da literatura brasileira, "Canção do exílio" de Gonçalves Dias e "Canto de regresso à pátria" de Oswald de Andrade, pertencentes a escolas literárias diferentes e ambientados em contextos sócio-culturais diferentes, o segundo dialoga ativamente com o primeiro, por meio do recurso da paródia. Ambos apresentam o nacionalismo como tema, porém em diferentes visões, o poema de Gonçalves Dias apresenta uma visão romântica, exagerada e ufanista, uma pátria perfeita, já o intertexto apresenta uma visão mais próxima do leitor, utilizando termos simples, mostra não só as virtudes mais também as imperfeições da nação, como a alusão à escravidão e pelo fato da "terra" ter "quase mais amores", demonstrando uma visão realista do poeta em relação à pátria.
Desta forma, confirma-se que um texto não possui uma autonomia completa, ele não surge "do nada", ele sempre mantém uma relação intertextual com outros textos. Para isso, autores utilizam as mais variadas formas de manifestação da intertextualidade.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Hucitec, 1988.

CINTRÃO, Sylvia. Canções de exílio e evasão. Nossos Bosques têm mais vida, 2003. Disponível em:
<http://www.germinaliteratura.com.br/sabiaseexilios/nossosbosquestemmaisvida.htm>Acesso em 20 de junho de 2010.

FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Literatura Brasileira. 15 ed. rev. ampl. São Paulo: Ática, 1998.

FIORIN, José Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana Luz.
Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade. 2.ed. São Paulo: Edusp, 2003.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e Coerência. São Paulo: Cortez, 1989.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise.São Paulo: Perspectiva, 1974.

MARQUES, Wilton José. O Poema e a Metáfora. Revista Letras, Curitiba, n. 60, p. 79-93, jul./dez. 2003.