RELAÇÃO DE TRABALHO VERSUS RELAÇÃO DE CONSUMO: A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Luana de Sousa Martins Curso de Pós Graduação em Advocacia Trabalhista EAD Polo de Mineiros, GO RESUMO O presente trabalho tem por objetivo delimitar qual relação está sob a égide de proteção da Justiça do Trabalho. Isto porque a Emenda Constitucional nº 45/2004 ampliou o seu âmbito de atuação, vez que, antes da referida emenda, o artigo 114 da Constituição Federal dispunha sobre relação de emprego e, após sua edição, passou a tratar sobre relação de trabalho. Além disso, importante diferenciar relação de trabalho e relação de consumo, posto que o Código de Defesa do Consumidor possibilita que a relação de consumo tenha por objeto a prestação de serviços. Assim, através de pesquisa embasada na Constituição Federal, em leis infraconstitucionais, em doutrinas e artigos, este trabalho visa abordar sobre relação de trabalho, relação de emprego e relação de consumo, verificando o alcance ou não da competência trabalhista para dirimir litígios relacionados a tais institutos. Palavras-chave: Competência, relação de trabalho, relação de consumo INTRODUÇÃO Desde que o homem passou a conviver em grupo, o trabalho passou a ser uma característica marcante na sociedade. Em âmbito internacional, os primeiros organismos especializados em dirimir conflitos trabalhistas surgiram em 1806, na França. Já em âmbito nacional, tem sua origem em 1823, com o Conselho Nacional do Trabalho, sendo que, em 1934 a Justiça do Trabalho foi criada e, em 1943, editada a Consolidação das Leis Trabalhistas. Com a Carta Magna de 1988, os direitos trabalhistas foram incluídos no rol dos “Direitos Sociais”. Antes de 2004, a Justiça do Trabalho era competente para solucionar litígios referentes à relação de emprego, o que deixava sem proteção muitos trabalhadores. Em 17.12.2004, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, implementando mudanças na organização da Justiça do Trabalho, e, dentre elas, ampliou a sua competência para dirimir conflitos que versem sobre relação de trabalho. Ocorre que tal Emenda Constitucional causou grande celeuma na doutrina e jurisprudência no que tange a competência desta Especializada para resolver problemas relacionados à relação de consumo, vez que o Código de Defesa do Consumidor possibilita que a relação consumerista tenha por objeto a prestação de serviços. Assim, a importância deste trabalho se reflete em diferenciar relação de trabalho, relação de emprego e relação de consumo, verificando o alcance ou não da competência trabalhista para dirimir litígios relacionados a tais institutos. A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica, embasada na Constituição Federal, em leis infraconstitucionais, em doutrinas e artigos. Tal trabalho está organizado em três capítulos, sendo que no Capítulo 1, será exposto sobre a evolução histórica da Justiça do Trabalho até o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004. Já no segundo capítulo, será feito uma abordagem sobre a relação de trabalho, emprego e consumo, destacando suas principais características e diferenciando estes três institutos. Por derradeiro, no Capítulo 3, será delimitado quais destas relações estão dentro ou fora da égide do judiciário trabalhista. Seguirá, por fim, as considerações finais e as referências bibliográficas. 1 ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA DO TRABALHO 1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA Desde que o homem passou a conviver em grupo, o trabalho passou a ser uma característica marcante na sociedade. Em âmbito internacional, segundo Ives Gandra Martins Filho (2013, p. 278): “Os primeiros organismos especializados na solução de conflitos entre patrões e empregados a respeito do contrato de trabalho surgiram na França, em 1806, sendo denominados Conseils de Prud’ hommes.” Tais organismos se destacavam pela representação paritária das categorias profissional e econômica e visavam primordialmente a conciliação. Já no Brasil, “a Justiça do Trabalho tem sua origem no Conselho Nacional do Trabalho, órgão criado em 1923 no âmbito do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, com funções consultivas e judicantes em matéria trabalhista e previdenciária.” (MARTINS FILHO, 2013, p. 278). Posteriormente, com Getúlio Vargas no poder, é instituído o Ministério do Trabalho e, em 1932, as Juntas de Conciliação e Julgamento como órgãos de composição dos conflitos individuais de trabalho. (MARTINS FILHO, 2013, p. 278). A seguir, “a Constituição de 1934 previu a Justiça do Trabalho com caráter administrativo, sendo estruturada com as juntas de conciliação e julgamento, conselhos regionais do trabalho e o Conselho Nacional do Trabalho como órgão de cúpula do sistema.” (MARTINS FILHO, 2013, p. 278). Apesar de prevista pela Constituição de 1934, “somente em 1939 a Justiça do Trabalho foi criada, por meio do Decreto-Lei nº 1.237, sendo instituída em 1941.” (RIBEIRO, 2013, p.el.). Em 1943, as leis trabalhistas esparsas forma reunidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Todavia, apenas em 1946, a Justiça do Trabalho passou a ter caráter jurisdicional, integrando o Poder Judiciário e transformando os Conselhos em Tribunais. Antes, a Justiça do Trabalho detinha tão somente caráter administrativo. Prosseguindo na linha do tempo, a Justiça Laboral, tal como criada desde a Carta Magna de 1934, com representação classista e poder normativo, manteve-se também nas Constituições de 1967 e 1988. Com a edição da emenda constitucional nº 24/99, foi extinta a representação classista, mantendo-se, entretanto, o mandato dos juízes classistas já nomeados. Com esta alteração, as Juntas de Conciliação e Julgamento se transformaram em Varas do Trabalho, cada uma com um juiz titular e outro substituto. (MARTINS FILHO, 2013, p. 278). Por derradeiro, importante dispor sobre a atual Constituição da República Federativa do Brasil (1988), Constituição que incluiu os direitos trabalhistas no capítulo “Dos Direitos Sociais”. Antes de editada a Emenda Constitucional nº 45/04, conforme o que dispunha o artigo 114 da Carta Maior, a Justiça do Trabalho era competente para conciliar e julgar os dissídios entre trabalhadores e empregadores e para executar as suas próprias sentenças. (CARVALHO FILHO, 2012, p. 1221). Como ensina Renato Sabino Carvalho Filho: “a doutrina interpretava que, em razão da menção expressa aos empregadores, a competência seria restrita às relações de emprego.” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 1221). Ocorre que com as alterações na economia que ocorreram no Brasil, o desemprego e a informalidade atingiram números elevados, deixando muitos trabalhadores, não empregados, fora da proteção da Justiça especializada no labor humano, vez que as relações de emprego regidas pela CLT não eram mais preponderantes. (RIBEIRO, 2013, p. el.). Assim, levando-se em conta o princípio da proteção ao trabalhador, foi criada a Emenda Constitucional nº 45/2004, implementando importantes mudanças na organização da Justiça do Trabalho, que serão examinadas no próximo tópico. 1.2 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04 No dia 17.12.2004 (dezessete de novembro do ano de dois mil e quatro), após 13 (treze) anos de tramitação, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, denominada de Reforma do Poder Judiciário. A Emenda Constitucional em análise trouxe diversas modificações e, dentre elas, alterou a competência da Justiça Laboral, a partir de uma total remodelação do artigo 114, da Constituição Federal de 1988. Nesse rumo, segundo Renato Saraiva: “O tema competência trabalhista ganhou grande importância em função da alteração introduzida pela EC 45/2004, a qual, ao modificar a redação do art. 114 da CF/1988, elasteceu, consideravelmente, a competência material da Justiça do Trabalho.” (SARAIVA, 2007, p. 66-67). Dessa forma, o atual texto do art. 114, I, da CF/1988, abrange não apenas as ações oriundas das relações de emprego, como também as oriundas das relações de trabalho, inclusive eventuais ou de prestação de serviços. (CARVALHO FILHO, 2013, p. 1221). Acontece que tal situação gerou uma grande celeuma na doutrina e jurisprudência, onde se questiona “se toda e qualquer relação de labor humano, isto é, aquelas com um gasto de energia humana para a obtenção de um determinado resultado em favor de outrem, estaria protegida pelo manto da Justiça Trabalhista.” (MAGALHÃES, 2011, p. el.). Para um melhor entendimento sobre o tema, importante diferenciar relação de trabalho, relação de emprego e relação de consumo, conceituando os devidos polos constitutivos destas relações jurídicas, a fim de se delimitar quais delas estão dentro ou fora da égide do judiciário trabalhista. 2 AS RELAÇÕES DE TRABALHO, EMPREGO E CONSUMO 2.1 DIFERENÇA ENTRE RELAÇÃO DE TRABALHO E RELAÇÃO DE EMPREGO “Relação de Trabalho é toda a relação jurídica na qual alguém se obriga a trabalhar para ter um resultado esperado, ou para a entrega da própria força do trabalho.” (CASSEPP, 2013, p. el.). Nos ensinamentos do professor Renato Saraiva, “a relação de trabalho corresponde a qualquer vínculo jurídico por meio do qual uma pessoa natural executa obra ou serviços para outrem, mediante o pagamento de uma contraprestação.” (SARAIVA, 2007, p. 68). Como bem ensina Alexandre Azambuja Cassepp (2013, p.el.), dentro do gênero relação de trabalho estão todas as espécies de trabalho, quais sejam: autônomo, a locação de serviços, a empreitada, a parceria e a relação de emprego. Também abrange a prestação de serviços dos funcionários públicos, do avulso, do eventual e do empresário. Nota-se, portanto, que relação de trabalho é gênero que possui como uma de suas espécies a relação de emprego. Sobre a relação de emprego, Camino apud Cassepp (2013) estabelece que: Relação de emprego é a relação de trabalho de natureza contratual, realizada no âmbito de uma atividade econômica ou a ela equiparada, em que o empregado se obriga a prestar trabalho pessoal, essencial à consecução dos fins da empresa e subordinado, cabendo ao empregador suportar os riscos do empreendimento econômico, comandar a prestação pessoal do trabalho e contraprestá-lo através do salário. (CAMINO apud CASSEPP, 2013, p. el.). Convém diferenciar os elementos componentes da relação de trabalho e da relação de emprego, destacando que a relação de trabalho ocorre quando o indivíduo gastar sua força de trabalho em favor de um tomador, podendo ser personalíssima ou não, onerosa ou não, habitual ou não, subordinado ou não. Por sua vez, a relação de emprego é a relação de trabalho do ser humano em que estão presentes a pessoalidade, a onerosidade, a habitualidade e a subordinação, conforme requisitos constantes nos artigos 2º e 3º da CLT. (CARVALHO FILHO, 2013, p. 1145). Para bem compreender tal diferença, a seguir, será feita uma breve análise sobre os requisitos da relação de emprego e verificado se estes se aplicam ou não à relação de trabalho. 2.1.1 Pessoa natural Na relação de emprego, o empregado é sempre pessoa física, sendo que “o Direito do Trabalho estabelece normas em proteção da pessoa humana do trabalhador, garantindo o preceito maior de dignidade nas relações de trabalho.” (GARCIA, 2013, p. 143). Segundo o ínclito Maurício Godinho Delgado (2013): A prestação de serviços que o Direito do Trabalho toma em consideração é aquela pactuada por uma pessoa física (ou natural). Os bens jurídicos (e mesmos éticos) tutelados pelo Direito do Trabalho (vida, saúde, integridade moral, bem-estar, lazer, etc.) importam à pessoa física, não podendo ser usufruídos por pessoas jurídicas. [...] (DELGADO, 2013, p. 282). Assim, só há relação de emprego quando o prestador de serviços for pessoa física. Igualmente ocorre na relação de trabalho, em que o trabalhador também deve ser pessoa natural. 2.1.2 Pessoalidade O contrato de trabalho é intuitu personae, realizado com certa e determinada pessoa. Significa dizer que não pode o empregado ser substituído por outra pessoa; não pode mandar outra pessoa para trabalhar em seu lugar. Consoante ensinamentos de Cassepp (2013): “a pessoalidade decorre da infungibilidade da prestação laboral. É o próprio trabalhador o veículo da energia que se expressa no ato de trabalhar direcionado pelo comando do empregador: ninguém pode entregar a força de trabalho que outro se obrigou.” (CASSEPP, 2013, p. el.). Por outro lado, na relação de trabalho, “não existe necessariamente o intuito personae, mas isso pode ser pactuado.” (CARVALHO FILHO, 2013, p. 1145). 2.1.3 Onerosidade A relação de emprego deve ter intuito oneroso, ou seja, haver uma contraprestação (salário) pela prestação de serviços. Nesse ínterim, Garcia (2013) ensina que: A onerosidade significa que os serviços prestados tem como contraprestação o recebimento da remuneração, não se tratando, assim, de trabalho gratuito. O empregado trabalha com o fim de receber salário, sendo este o seu objetivo ao firmar o pacto laboral. (GARCIA, 2013, p. 146). Por outro lado, na relação de trabalho este requisito não é essencial, citando como exemplo o trabalho voluntário e beneficente, onde não há o objetivo de receber pagamento. 2.1.4 Habitualidade ou Não eventualidade A habitualidade consiste na prestação de serviços ligados às atividades normais do empregador, isto é, realizando serviços permanentemente necessários à atividade do empregador ou ao seu empreendimento. (GARCIA, 2013, p. 146). Para Carvalho Filho (2013, p.1145), importante observar se a prestação de serviços tem repetibilidade e previsão de repetibilidade futura, com o intuito de verificar se a pessoa está inserida na atividade normal da empresa e se ela tem fixação jurídica. Já a relação de trabalho não precisa ser de forma habitual, podendo ser eventual, habitual ou contínua. 2.1.5 Subordinação Subordinação significa dependência, podendo ser econômica, técnica, moral, social, hierárquica ou jurídica. Todavia, a subordinação que interessa ao vínculo empregatício é a jurídica. Como bem leciona César Reinaldo Offa Basile (2012, p.35), o trabalhador cumpre as ordens que lhe são dirigidas pelo empregador em respeito ao contrato de trabalho celebrado e para que possa reivindicar a contraprestação convencionada, bem como todos os direitos trabalhistas que o instrumento normativo e a lei lhe conferem, pois, afinal, nem sempre possui condição econômica inferior ou busca aperfeiçoar sua técnica. Por sua vez, na relação de trabalho, não se exige a subordinação. É o caso do trabalhador autônomo, onde “o prestador mantém o pleno poder de direção do trabalho, podendo escolher clientela, definir estratégias e preços, fixar seus próprios horários e prazos ou mesmo recusar serviço quando assim lhe for conveniente.” (BASILE, 2012, p. 35). 2.1.6 Alteridade A alteridade significa trabalhar por conta alheia. O empregador é quem corre os riscos da atividade exercida. (GARCIA, 2013, p. 144). A esse propósito, Cassepp preconiza que “[...] o empregador trabalha por conta própria, O empreendimento é por ele bancado e os resultados são exclusivamente seus; assim como os eventuais prejuízos, apenas por ele suportados. [...]” (CASSEPP, 2013, p. el.). “É tida pela doutrina como uma consequência da subordinação jurídica, pois, a partir do momento em que o empregado deve obedecer às ordens dos empregadores, ele não pode se responsabilizar pelos prejuízos advindos do negócio.” (CARVALHO FILHO, 2013, p. 1146). Quanto à exigência deste requisito na relação de trabalho, a doutrina é divergente. 2.2 DIFERENÇA ENTRE RELAÇÃO DE CONSUMO E RELAÇÃO DE TRABALHO Conforme lições do professor André Borges de Carvalho Borges, relação de consumo: é “aquela estabelecida entre consumidores e fornecedores com o objetivo de fornecer produtos e prestar serviços.” (BARROS, 2012, p. 7). O artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (1990) conceitua consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” Assim, dentre as características do consumidor estão: a) pessoa física ou jurídica; b) adquire ou utiliza produto ou serviço; e, c) destinatário final. Sobre a característica de ser o consumidor o destinatário final, vale ressaltar que, atualmente, prevalece na jurisprudência dos Tribunais a Teoria Finalista que: “Interpreta de forma restritiva o termo destinatário final, considerando consumidor toda pessoa física ou jurídica que se apresente como destinatário fático e econômico do produto ou serviço, isto é, além de retirá-lo do mercado (da cadeia produtiva), sua aquisição ou utilização deve ser voltada para uso próprio e não profissional.” (GOMES, 2013, p. 725). Por sua vez, o artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor (1990) traz o conceito de fornecedor: Toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. (CDC, art. 3º). Dentre suas características, destaca-se que é todo aquele que a) de forma direta ou indireta oferece produtos e serviços no mercado de consumo; b) a lei utiliza a expressão “desenvolve” que compreende a habitualidade no desenvolvimento da atividade; c) o rol das atividades enumeradas no art. 3º é exemplificativo. (GOMES, 2013, p. 726). Com relação a diferença entre relação de consumo e relação de trabalho, há que se analisar dois critérios de diferenciação: a) distinguir se o tomador do trabalho contrata o prestador de serviço para viabilizar sua empresa e oferecer seu produto/serviço ao consumidor (relação de trabalho); ou contrata exclusivamente para usufruir do serviço como destinatário final (relação de consumo - art. 2º, CDC); b) identificar se o contratado é um fornecedor de serviço ao público em geral (relação de consumo) ou de caráter personalíssimo com dependência econômica para com o seu contratante (relação de trabalho). (PILLON, 2009, p. el.). Nota-se, portanto, que relação de consumo e relação de trabalho possuem características próprias e não se confundem. 3 O ALCANCE DA COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO Sobre a competência para julgar questões que versem sobre relação de trabalho e relação de emprego, não pairam dúvidas que a Justiça do Trabalho é competente. Todavia, é divergente na doutrina e jurisprudência se o judiciário trabalhista tem competência para dirimir litígios oriundos da relação contratual de consumo, reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor. (SARAIVA, 2007, p. 72). Isto por que: “O Código de Defesa do Consumidor possibilita que a relação de consumo também tenha por objeto a prestação pessoal de serviços (art. 3º, § 2º, da Lei 8.078/90).” (SARAIVA, 2007, p. 72-73). Para tentar resolver esta questão, posicionamentos diferentes foram formados, conforme será demonstrado a seguir. Renato Saraiva assevera que: [...] Pois bem, nessa hipótese, a relação jurídica formada entre prestador do serviço (fornecedor) e o destinatário do mesmo serviço (consumidor) apresenta-se sob dois ângulos distintos. Caso o litígio entre o fornecedor e o consumidor envolva relação de consumo, ou seja, a discussão gire em torno da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, entendemos que a Justiça do Trabalho não terá competência para processar e julgar a demanda, uma vez que a pretensão deduzida em juízo não está afeta à relação de trabalho. Todavia, se o litígio entre o prestador de serviços e o consumidor abranger a relação de trabalho existente entre ambos, como no caso do não recebimento pelo fornecedor pessoa física do numerário contratado para a prestação dos respectivos serviços, não há dúvida que a Justiça do Trabalho será competente para processar e julgar a demanda.” (SARAIVA, 2007, p. 72-73). Ponto de vista semelhante é defendido pelo Ministro do TST, João Oreste Dalazen: Cuida-se, a meu juízo, de uma relação jurídica de natureza bifronte: do ângulo do consumidor/destinatário do serviço, relação de consumo, regida e protegida pelo CDC; do ângulo do prestador do serviço (fornecedor), regulada pelas normas gerais de Direito Civil. [...] Entendo que a lide propriamente da relação de consumo, entre o consumidor, nesta condição, e o respectivo prestador do serviço, visando à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, escapa à competência da Justiça do Trabalho, pois aí não aflora disputa emanada de relação do trabalho. É lide cujo objeto é a defesa de direitos do cidadão na condição de consumidor de um serviço e, não, como prestador de um serviço”. [...] Entretanto, sob o enfoque do prestador de serviço (fornecedor), é forçoso convir que firma ele uma relação jurídica de trabalho com o consumidor/destinatário do serviço: um se obriga a desenvolver determinada atividade ou serviço em proveito do outro mediante o pagamento de determinada retribuição, ou preço. (DALAZEN apud SARAIVA, 2007, p. 73). Entretanto, entendimento contrário é defendido pelo brilhante Juiz do Trabalho e Professor Otávio Calvet (2005): Por outro lado, ao se falar em relação de trabalho, tem-se em foco o fato de uma pessoa natural ou jurídica, ou mesmo um ente despersonalizado figurar como tomador do serviço, auferindo a energia de trabalho da pessoa natural que se coloca na posição de trabalhador com a finalidade de, utilizando essa energia como incremento de sua produção ou melhoria de suas atividades, agregar valor para exploração de seus próprios produtos ou serviços junto ao usuário final. Percebe-se, assim, que entre o trabalhador e o usuário final existe uma outra pessoa, o tomador dos serviços, que usa da energia do trabalhador para impulsionar sua atividade empresarial, buscando no usuário final o pagamento pelo fornecimento do produto ou da prestação do serviço. Numa relação de trabalho, portanto, nunca pode aparecer como tomador do serviço o usuário final, este mero cliente consumidor, mas sempre alguém que, utilizando do labor adquirido pela relação de trabalho, realiza sua função social perante os usuários finais. (CALVET, 2005, p. el.). Calvet cita ainda um exemplo de suma importância para o tema em análise: Cita-se, como exemplo, o paciente que utiliza dos serviços de um dentista dentro de uma clínica especializada. Em relação ao paciente, há verdadeira relação de consumo com a clínica, que o realiza mediante um dos seus trabalhadores (o dentista). Já entre o dentista e a clínica sim, podemos fixar a existência de relação de trabalho, ainda que mencionado profissional seja autônomo ou eventual. Observe-se que o dentista, no exemplo supra, despende sua energia de trabalho em prol da clínica, que, recebendo pagamento do paciente, repassa parte para o dentista e retém parte como lucro. Assim, restam evidenciadas duas relações: a de consumo entre paciente-clínica e a de trabalho, entre dentista-clínica. A primeira foge à competência da Justiça do Trabalho. A segunda insere-se na nova competência material desse ramo do judiciário. Indagar-se-á se, no exemplo supra, ao invés do paciente buscar uma clínica para tratamento, fosse ele buscar diretamente um dentista, profissional liberal autônomo, para execução do serviço dentário. Um exame açodado poderia levar à conclusão de que o paciente “tomou” os serviços do dentista, configurando-se uma relação de trabalho entre ambos, figurando o dentista como trabalhador e o paciente como tomador do serviço. Ocorre que conforme conceito acima explicitado, a relação de trabalho não ocorre entre o trabalhador e o usuário final do serviço. No caso em análise, existirá verdadeira relação de consumo, figurando o paciente como consumidor e o dentista como prestador de serviços. A presente conclusão assegura o tratamento correto às relações de trabalho e consumo, cada uma com princípios diversos ou, pelo menos, com foco em polos diversos dessas relações. [...] Assim, resta fixada a segunda premissa para caracterização das relações de trabalho da competência da Justiça do Trabalho: o tomador dos serviços não pode ser o usuário final, mas mero utilizador da energia de trabalho para consecução da sua finalidade social (ainda que seja o tomador de serviços pessoa natural ou ente despersonalizado). (CALVET, 2007, p. el.). Seguindo a mesma linha de raciocínio, Carla Teresa Martins Romar prescreve que: Outra hipótese a ser discutida é a do profissional liberal que, embora pessoa física, presta serviços a usuários finais (clientes). Neste caso, o profissional liberal não mantém com os mesmos uma relação de trabalho, mas sim uma relação de prestação de serviços de caráter consumerista, ou seja, o cliente é consumidor final dos serviços que são prestados na forma definida no parágrafo 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, o que afasta a competência da Justiça do Trabalho. Assim, resta evidenciado que, para a caracterização de relação de trabalho, e portanto, para ser definida a competência da Justiça do Trabalho, o tomador de serviços não pode ser usuário final, mas mero utilizador da energia de trabalho para a consecução de uma finalidade específica (ainda que seja tomador pessoa física ou ente despersonalizado). (ROMAR apud FREITAS, 2008, p. el.). Semelhante é o entendimento de Carlos Henrique Bezerra Leite: [...] a nosso ver, não são da competência da Justiça do Trabalho as ações oriundas da relação de consumo. Vale dizer, quando o trabalhador autônomo se apresentar como fornecedor de serviços e, como tal, pretender receber honorários do seu cliente, a competência para a demanda será da Justiça Comum e não da Justiça do Trabalho, pois a matéria diz respeito à relação de consumo e não à de trabalho. Do mesmo modo, se o tomador de serviço se apresentar como consumidor e pretender devolução do valor pago pelo serviço prestado, a competência também será da Justiça Comum. Isso porque relação de trabalho e relação de consumo são inconfundíveis. (LEITE apud FREITAS, 2008, p. el.). Assim, conclui-se que, conforme a primeira teoria é possível que a Justiça do Trabalho julgue litígios que versem sobre uma relação de consumo. Todavia, embasando na segunda teoria, a Justiça Laboral é incompetente para solucionar tais ações consumeristas. Por fim, impende-se destacar que ainda não é pacífico o entendimento sobre o alcance da competência material da Justiça do Trabalho, não prevalecendo na doutrina e jurisprudência nenhuma das duas correntes. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todo o exposto, conclui-se que a Emenda Constitucional nº 45/2004 trouxe importantes mudanças, e, dentre elas, aumentou a competência material da Justiça do Trabalho, que, passou a abranger as ações oriundas das relações de trabalho. Todavia, esta alteração causou certa divergência no que tange a competência trabalhista para dirimir conflitos relacionados à relação de consumo que tenha por objeto a prestação de serviços. Para resolver esta celeuma, primeiramente se faz necessário distinguir relação de trabalho, relação de emprego e relação de consumo. Relação de trabalho é toda relação jurídica na qual alguém executa obra ou serviços para outrem, mediante o pagamento de uma contraprestação. Relação de emprego, por sua vez, é uma das espécies de relação de trabalho, tendo como principais características a pessoalidade, onerosidade, habitualidade, subordinação e alteridade. Por outro lado, a relação de consumo é uma relação onde um fornecedor fornece produtos ou presta serviços a um consumidor. Aqui, o consumidor é o destinatário final, ou seja, o produto ou serviço é voltado para uso próprio. Sobre a competência para julgar questões que versem sobre relação de trabalho e relação de emprego, não pairam dúvidas que a Justiça do Trabalho é competente. Entretanto, há controvérsias sobre a competência desta Especializada para dirimir conflitos sobre relações de consumo, principalmente quando o objeto da relação é a prestação de serviços. Uma parte da doutrina entende que, caso a relação tenha como ponto principal a relação de consumo, a competência é da Justiça Comum, Todavia, se a lide entre prestador de serviço e consumidor abranger a relação de trabalho entre estes, a Justiça do Trabalho será competente. Ou seja, conforme esta teoria é possível que a Justiça do Trabalho julgue litígios que versem sobre uma relação de consumo. Noutro giro, outros doutrinadores sustentam que, numa relação de trabalho, entre o trabalhador e o usuário final, existe o tomador de serviços. Este último nunca será o destinatário final. Aqui, o cliente consumidor é o destinatário final. Ou seja, para a definição da competência da Justiça Laboral, o tomador de serviços não pode ser o usuário final. Assim, embasando nesta segunda teoria, a Justiça Laboral é incompetente para solucionar ações consumeristas. Por derradeiro, importante ressaltar que nenhuma destas duas posições prevalece, devendo ser analisado cada caso em concreto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2013. BRANQUINHO, Polianny Marques Freitas. Relação de trabalho x relação de consumo em face da emenda constitucional n. 45/2004. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 92, set 2011. Disponível em . CALVET, Otávio Amaral. 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