UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO - DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO

DIREITO MUNICIPAL E URBANÍSTICO

TEMA: REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

AUTOR: PAULO DE TARSO FIÚZA DE PINHO JÚNIOR

 

 

O presente trabalho disporá acerca do instituto da regularização fundiária. Antes de adentrar ao tema, necessário se faz a sua conceituação. A doutrinadora Betânia Alfonsin leciona define-a da seguinte maneira:

É um processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária.1



Diante do exposto, depreende-se que regularização fundiária é um procedimento realizado pelo poder público, mediante a sistematização de mecanismos jurídicos, políticos e sociais, visando à legalização da permanência de pessoas que estão em situação de irregularidade, no que pertine à habitação, e a melhorias nas respectivas propriedades assentadas, a assegurar a eficácia plena da função social da propriedade e da cidade.

O instituto em tela foi introduzido no ordenamento jurídico pela Lei Federal n.º 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Seu art. 2º, XIV dispõe acerca das diretrizes a serem observadas pelo poder público com o escopo abaixo transcrito:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

[...]

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.

Desta forma, verifica-se que a regularização fundiária é uma das diretrizes a serem observadas pelo gestor público no momento da implementação das políticas urbanas, cuja função é ordenar o pleno desenvolvimento da função social da cidade e da propriedade,

A Lei Federal n.º 11.977/2009, a qual regulamenta o Programa Minha Casa, Minha Vida, trouxe o marco legal da Política de Regularização Fundiária, com alterações introduzidas pela Lei Federal n.º 12.424/2011. No cenário local, a regularização fundiária restou consagrada mediante a aprovação do Plano Diretor Participativo de Fortaleza, aprovado no ano de 2009, restando previsto como um dos objetivos a serem alcançados pelo administrador público “promover a urbanização e a regularização fundiária das áreas irregulares ocupadas por população de baixa renda” (Art. 4º, inc. IX).

O ordenamento pátrio prevê, no art. 4º do Estatuto das Cidades, a título de exemplo de instrumentos a serem utilizados pelo gestor público com o escopo de concretizar as diretrizes e os objetivos supracitados, a usucapião especial urbana, a demarcação urbanística, a legitimação da posse e o direito de superfície. Tais instrumentos são reproduzidos pelo Plano Diretor Participativo de Fortaleza em seu art. 256.

A usucapião é espécie de aquisição originária da propriedade. Decorre da posse de fato prolongada por certo intervalo de tempo. Antes de adentrarmos no instituto da usucapião especial urbana, essencial a análise da usucapião ordinária ou comum, vez que seus preceitos norteiam as demais espécies.

A usucapião ordinária ou comum encontra-se prevista no art. 1.242 do Código Civil de 2002, apresentado in verbis [nestes termos]:

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

 

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

 

 

Assim sendo, será assegurada a propriedade a quem, após o prazo de 10 (dez) anos, detiver a posse de um imóvel com animus domini [intenção de dono], de forma mansa (sem manifestação em contrário), contínua (sem interrupção) e justa (sem vícios objetivos – violência, clandestinidade ou precariedade). Além destes requisitos, imprescindível se faz que a posse seja de boa-fé e com justo título.

Vale registrar que o parágrafo único do texto acima exposto faz menção à usucapião ordinária por posse-trabalho. Nesta situação, o prazo temporal exigido cai para 05 (cinco) anos quando o imóvel for adquirido onerosamente, com base em registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, e nele os possuidores tiverem estabelecido sua moradia ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Saliente-se que para fins de contabilizar o lapso temporal da posse do bem, é facultado ao possuidor a utilização do instrumento da accessio possessionis [soma dos lapsos temporais dos sucessores], ou seja, acrescentar o período no qual o imóvel se encontrava na posse mansa, pacífica e contínua de um antecessor.

Por fim, vale registrar que é cediço no Superior Tribunal de Justiça que em relação à transferência de posse decorrente de mútuos contratuais, como a locação e o comodato, inadmissível a contagem do período de tempo na qual a ela foi exercida durante a vigência do instrumento firmado, consoante julgado a seguir:



PROCESSO CIVIL. USUCAPIÃO. POSSE. ANIMUS DOMINI NÃO CONFIGURADO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA.

[...]

  1. Para efeitos da usucapião, mesmo a especial urbana, a posse exercida com animus domini ultrapassa a mera vontade de possuir, devendo resultar do título pelo qual é detida, de forma que posse decorrente de relações contratuais que afetem o proprietário do imóvel prescinde do animus domini.

  2. Recurso especial desprovido.

    (RECURSO ESPECIAL Nº 1.221.243 - PR (2010⁄0208665-8); Rel. Min. João Otávio de Noronha; 3ª Turma – STJ; DJe: 10/03/2014)



A Constituição Federal de 1988 cuida de duas modalidades especiais de usucapião: a constitucional rural (art. 191, caput) e a constitucional urbana (art. 183, caput). Suas regras foram reproduzida ipsi litteris [literalmente], respectivamente, nos artigos 1.239 e 1.240 do Código Civil.

No que pertine à regularização fundiária, a modalidade de usucapião a ser utilizada é a especial urbana, também conhecida como usucapião pro misero [pelo miserável]. Exige-se que o imóvel esteja localizado em área urbana, com área limitada em 250 (duzentos e cinquenta metros quadrados), e que seja utilizado como moradia pela pessoa ou família pretendente.

O legislador, por intermédio deste instrumento, visa atribuir máxima eficácia ao direito de moradia para a população de baixa renda, assentadas em imóveis urbanos informais, de propriedade privada. A sentença de usucapião deve ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis para declarar a propriedade do imóvel ao morador. Registre-se que os imóveis públicos não serão objeto de ações de usucapião, devendo-se utilizar de outros instrumentos de regularização fundiária a estes casos, tais como a concessão de uso especial para fins de moradia ou a concessão de direito real de uso.

Importante citar, outrossim, a existência da usucapião especial urbana coletiva, prevista no art. 10 do Estatuto da Cidade. É o instrumento a ser utilizado por famílias de baixa renda que ocupem um mesmo imóvel situado à área urbana, cujo limite mínimo seja 250 (duzentos e cinquenta metros quadrados), sendo impossível a identificação da área de cada possuidor. A sentença do juiz, nesta hipótese, atribuirá fração igual do terreno a cada possuidor, independente da dimensão que cada um ocupe, salvo acordo escrito entre os condôminos.

Ressalte-se que nestas duas situações de usucapião especial urbana, o lapso temporal de posse é de 05 (cinco) anos e o pretendente a usucapir o bem não pode possuir outro imóvel, seja urbano ou rural.

Outro instrumento previsto para fins de concretizar a regularização fundiária de interesse social, expressa no art. 47 da Lei nº 11.977/2009, a demarcação urbanística consiste em um procedimento administrativo realizado pela Administração Pública no intuito de demarcar o imóvel (público ou privado), definindo sua localização e os limites de sua área, com o escopo de identificar os seus ocupantes e a natureza de suas posses.

Conforme art. 56, §1º da lei supramencionada, o Auto de demarcação urbanística deverá conter: a planta e memorial descritivo da área a ser regularizada (MP 514/2010); a planta de sobreposição do imóvel demarcado com a situação da área constante no Registro de Imóveis; a certidão de matrícula ou transcrição da área a ser regularizada emitida pelo Registro de Imóveis, ou diante de sua inexistência, das circunscrição imobiliárias anteriormente competentes.

Em relação à legitimação da posse, prevista no art. 47, IV da Lei nº 19.977/2009, esta consubstancia-se no ato do Poder Público conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação urbanística, com a identificação do ocupante e do tempo e natureza da posse. Quando devidamente registrada, a legitimação constitui direito em favor do possuidor direto, desde que, tendo em vista que é requisito essencial para a usucapião especial urbana, a destinação dada ao imóvel seja para fins de moradia (art. 59, caput).

Vale mencionar que a legitimação da posse não será concedida a concessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural e nem a beneficiários de legitimação de posse anteriormente concedidas (art. Art. 59, § 1º).

O direito de superfície consiste , nos dizeres do Professor Ricardo Pereira Lira, “ o direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob o solo alheio; é a propriedade - separada do solo – dessa construção ou plantação, bem como é a propriedade decorrente da aquisição feita ao dono do solo de construção ou plantação nele já existente”.2

Conforme art. 237 do Plano Diretor Participativo, o direito de superfície será gratuito para a população de baixa renda. No entanto, consoante parágrafo único do art. 257 do Plano Diretor Participativo, o direito de superfície não será utilizado para fins de regularização fundiária de interesse social,

No cenário local, vislumbrou-se a aplicação dos instrumentos de regularização fundiária de interesse social, mediante a utilização da usucapião especial urbana coletiva, na ação promovida para tais fins pela população que residia às margens da Lagoa do Opaia, localizada no bairro Vila União.

Diversas famíliasresidiam no entorno da respectiva localidade há mais de 15 (quinze) anos, inclusive a maior parte em palafitas, constituindo-se em uma das maiores áreas de risco de Fortaleza.

Em 2005, cerca de 504 famílias que ocupavam o trecho mais próximo da lagoa, cuja construções representavam maiores riscos, foram transferidas para o Conjunto Habitacional Planalto Universo, também localizado no bairro Vila União.

Já no ano de 2007, os habitantes que permaneceram residindo na localidade, cerca de 232 (duzentos e trinta e duas) famílias, divididos em 02 (dois) grupos e auxiliados pela Fundação de Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) ajuizaram duas ações de usucapião especial urbana coletiva, a fim de adquirirem a propriedade do imóvel.

 

ALFONSIN, B. de M. “Regularização fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade”. In: FERNANDES, E. (org.). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001

2 In Elementos de Direito Urbanístico, Editora Renovar, 1997, pg.116