REFUGIADOS E O DIREITO À HOSPITALIDADE, À SOLIDARIEDADE E TOLERÂNCIA

Anna Raquel Gomes e Pereira

 

 

O homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade.”

Hannah Arendt in Origens do Totalitarismo

 

“Não há maior pena do que a perda de sua terra.”

Eurípedes, 431 a.C.

 

“O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”.

Jean-Jacques Rousseau

 

 

RESUMO

 

A proteção dos refugiados é anterior ao final da segunda guerra mundial, no entanto, a comunidade internacional demonstrou real preocupação quando a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1951, e com a universalização dos direitos e garantias ali dispostos, com o Protocolo de 1967. A atual crise em Alepo reacendeu o interesse e atenção do internacional acerca da complexa situação dos refugiados no mundo e demonstrou a necessidade premente em se pensar soluções.

 

Palavras chave: Refugiados; Universalização dos Direitos; Direito à Hospitalidade, Solidariedade; Tolerância.

 

INTRODUÇÃO

 

Desde o surgimento dos primeiros seres humanos, movimentos populacionais têm sido natural. Por milênios, as pessoas têm viajado grandes distâncias por todos os tipos de razões: - a partir de perseguição até mesmo guerras; - por meio de terremotos; - inundações; - fome, ou simplesmente por curiosidade sobre outras pessoas e outros lugares.

Escusado será dizer que, no passado, os movimentos eram lentos e tinham grandes perigos. No entanto, os seres humanos continuaram em movimento. Mesmo em um momento em que é possível viajar ao redor do mundo rapidamente, de forma confortável e acessível, o movimento ainda pode ser extremamente difícil para aqueles que fogem de conflitos, perseguições e dificuldades.

Uma das maiores causas da migração forçada são as guerras civis provocadas por uma combinação de crença religiosa fanática, poderio bélico e governo totalitário, sem qualquer traço de Estado constitucional.

Nos últimos anos, um número sem precedentes de pessoas ao redor do mundo foi obrigado a fugir de seus países, deixando suas casas e, muitas vezes, seus familiares. Somado a este fato, existe a realidade impiedosa de muitos países que ao invés de fornecer proteção e acolhimento, estão fechando suas fronteiras, negando o direito de hospitalidade, solidariedade e boa vontade.

Os países mais ricos estão deixando que os mais pobres lidem praticamente sozinhos com quase toda a população mundial de refugiados (63,5 milhões de pessoas deslocadas por guerras e conflitos até o final de 2015[1]), enquanto os políticos e uma parte da população mundial chamam aqueles que fogem para salvar a própria vida ou de seus familiares, de "ilegais" ou "invasores" sem rosto, considerando-os "uma ameaça à segurança", o que de certa forma promove até mesmo o discurso de ódio em face dos refugiados, corroborando para a desconstrução dos institutos de proteção já conquistados e burocratização do reconhecimento e da concessão de asilo e refúgio.

Esses países, ao desumanizar aqueles que necessitam de uma proteção internacional, estão se omitindo diante da sua responsabilidade em proteger as pessoas que fogem da violência, perseguição, conflito e morte, bem como não assumem sua parcela de obrigação decorrente do princípio de solidariedade e do direito à hospitalidade, que serão tratados em tópico específico, muitas vezes permitindo que o fundamentalismo se perpetue e se espalhe, e que nações permaneçam sob o julgo de governos totalitários, sem qualquer possibilidade de evoluir para um Estado constitucional.

Podemos nos questionar acerca da necessidade de novas leis para proteger os direitos dos refugiados, mas a resposta mais evidente é de que não precisamos! O direito internacional dos direitos humanos e dos refugiados oferece um sistema avançado e equilibrado que permite proteção num país terceiro, para aqueles que têm que fugir da guerra e da perseguição. Isso se deu, porque os direitos dos refugiados são decorrentes de um longo processo de reconhecimento e afirmação de diversos valores, principalmente o da dignidade da pessoa humana.

É importante destacar que a proteção aos refugiados é bem anterior ao final da segunda guerra mundial, no entanto, a comunidade internacional demonstrou real preocupação quando a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 1951, e com a universalização dos direitos e garantias ali dispostos, com o advento do Protocolo de 1967.

Os vários desafios advindos dos deslocamentos forçados foram respondidos com a ampliação do conceito de refugiado a partir da Convenção da Unidade Africana, de 1969, e da Declaração de Cartagena, de 1984. No Brasil, todo esse patrimônio legal e conceitual foi compilado e implementado pela Lei nº 9.474, de 1997, que igualmente trouxe elementos inovadores e originais.

É certo que tal temática é antiga, no entanto, a crescente individualização da humanidade e o acirramento da guerra na Síria, agravaram a crise migratória e reacenderam o interesse e atenção mundiais acerca da complexa situação dos refugiados, demonstrando a necessidade premente em se pensar soluções humanitárias urgentes.

 

1. REFÚGIO E ASILO

 

O direito de asilo está previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, aprovada pela Assembleia Geral da ONU. Tal documento assegura o direito de qualquer pessoa perseguida em seu Estado a solicitar proteção a outro Estado, mas não estabelece o dever de um Estado de conceder asilo.

Veremos que ele serviu e ainda serve de base jurídica para as diversas modalidades modernas de proteção às pessoas perseguidas por um Estado, tanto por meio do asilo propriamente dito quanto do refúgio.

No entanto, embora existam autores que acreditam que asilo e refúgio sejam o mesmo instituto, o Brasil diferencia os dois, de forma que, em linha gerais, o primeiro seria o instituto pelo qual um Estado fornece imunidade a um indivíduo em face de perseguição sofrida por esse em outro Estado, e o segundo seria o instituto regulado por um estatuto (atualmente em nível internacional a Convenção de 51 revisada pelo Protocolo de 67), o qual assegura a algumas pessoas em função de determinadas circunstâncias o status de refugiados.

Com a Convenção de 1951 e com o Protocolo de 1967, o status de refugiado é reconhecido a qualquer pessoa que sofra perseguição em seu Estado de origem e/ou residência habitual, por força de sua raça, nacionalidade, religião, opinião política ou pertencimento a determinado grupo social, enquanto o asilo tem sua prática limitada à perseguição política, dividindo-se em asilo político e diplomático.

Tanto o instituto do refúgio quanto o do asilo visam à proteção da pessoa humana, em face da sua falta no território de origem ou de residência do solicitante, a fim de assegurar e garantir os requisitos mínimos de vida e de dignidade, residindo em tal fato a sua principal semelhança, traduzida por meio do caráter humanitário de ambos.

 

2. REFUGIADO: CONCEITO

 

Muito embora seja certo considerar que todo estrangeiro que ingressa no país pode ser considerado migrante, sem diferenciá-lo dos solicitantes de asilo e de refúgio, é de suma importância esclarecer que no caso dos refugiados ocorre a migração forçada com vistas a resguardar a vida, a segurança ou a liberdade ante uma situação de perseguição, de conflito armado e de violações massivas de direitos humanos.

A conceituação de refugiado se mostrou um avanço para o reconhecimento de tal condição. Além de chamar a atenção da comunidade internacional acerca da necessidade de se garantir uma efetiva proteção dos indivíduos nestas condições, a conceituação permitiu que fossem criados mecanismos de proteção jurídica, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados que foi adotada em 28 de julho de 1951, entrando em vigor em 22 de abril de 1954. Consta assim disposto em seu artigo 1º:

“(...) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.”

Mais do que conferir um status legal ao refugiado, a Convenção consolidou prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados, fornecendo a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nível internacional. Ela estabeleceu padrões básicos para o tratamento de refugiados sem, no entanto, impor limites para que os Estados pudessem desenvolver esse tratamento.

O Brasil, por exemplo, editou no dia 22 de julho de 1997, a Lei nº 9.474, que definiu a implementação do Estatuto dos Refugiados no país. No seu artigo 1º resta estabelecido que será reconhecido como refugiado o indivíduo que:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL, 1997)

Importante salientar que a Convenção deve ser aplicada sem qualquer discriminação por raça, religião, sexo e país de origem. Ademais, ela estabelece cláusulas essenciais às quais nenhuma objeção deve ser feita, como por exemplo o chamado princípio de non-refoulement (“não-devolução”), o qual define que nenhum país deve expulsar ou “devolver” (refouler) um refugiado, contra a vontade do mesmo, em quaisquer ocasiões, para um território onde ele ou ela sofra perseguição. Ainda, estabelece providências para a disponibilização de documentos, incluindo documentos de viagem específicos para refugiados na forma de um “passaporte”.

Há que se destacar também, que a Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados contribuiu não apenas para conferir status legal aos refugiados, mas também a internacionalização do termo e, consequentemente, da condição de refugiado, seus direitos e garantias, bem como a responsabilidade de outros países em receber os indivíduos que tenham sido forçados a migrarem, não os devolvendo às suas nações de origem e nem os expulsando.

 

3 A CONVENÇÃO DA ONU SOBRE O ESTATUTO DOS REFUGIADOS: CONTRIBUIÇÃO PARA INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS DOS REFUGIADOS

 

A Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados embora tenha sido elaborado para abranger eventos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, ao definir o termo “refugiado”, o fez de forma a abarcar um grande número de pessoas, de forma que, embora antigos instrumentos legais internacionais somente eram aplicados a certos grupos, a Convenção procurou ampliar a proteção aos sujeitos jurídicos tutelados.

Com o tempo e a emergência de novas situações geradoras de conflitos e perseguições, tornou-se crescente a necessidade de providências que colocasse os novos fluxos de refugiados sob a proteção das provisões da Convenção. A intensificação dos conflitos étnicos após o final da Guerra Fria, a perseguição às minorias religiosas, os riscos representados pela manipulação do patrimônio genético, a convivência pacífica entre povos pertencentes a culturas diferentes e as ameaças acarretadas pelo terrorismo foram alguns dos principais desafios.

Diante desta realidade crescente, um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados foi preparado e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966. Na Resolução 2198 (XXI) de 16 de dezembro de 1966, a Assembleia tomou nota do Protocolo e solicitou ao Secretário-Geral que submetesse o texto aos Estados para que o ratificassem. O Protocolo foi assinado pelo Presidente da Assembleia Geral e o Secretário-Geral no dia 31 de janeiro de 1967 e transmitido aos governos. Entrou em vigor em 4 de outubro de 1967.

Com a ratificação do Protocolo, os países foram levados a aplicar as provisões da Convenção de 1951 para todos os refugiados enquadrados na definição da carta, mas sem limite de datas e de espaço geográfico. Embora relacionado com a Convenção, o Protocolo é um instrumento independente cuja ratificação não é restrita aos Estados signatários da Convenção de 1951.

A Convenção e o Protocolo são os principais instrumentos internacionais estabelecidos para a proteção dos refugiados e seu conteúdo é altamente reconhecido internacionalmente. A Assembleia Geral convoca os Estados a ratificar esses instrumentos e incorporá-los à sua legislação interna. A ratificação também tem sido recomendada por várias organizações, tal como o Conselho da União Europeia, a União Africana e a Organização dos Estados Americanos.

Há também a Declaração de Cartagena, de 1984, sobre os Refugiados, foi o marco, como se sabe, da proteção dos refugiados no universo conceitual dos direitos humanos. A Declaração de Cartagena estabeleceu um vínculo claríssimo entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional de Refugiados. Uma década mais tarde, a Declaração de São José, de 1994, sobre os Refugiados e Pessoas deslocadas, aprofundou essas relações, dando ênfase a questões atuais de proteção, como o deslocamento forçado e o direito de asilo, em sua dimensão mais ampla.

A Conferência Internacional sobre Refugiados Centroamericanos (CIREFCA) elaborou, por sua vez, em 1989, um documento intitulado “Princípios e critérios para a proteção e a assistência dos Refugiados, Repatriados e Deslocados Centroamericanos na América Latina” reproduzindo, de forma clara, os conceitos de complementaridade das distintas vertentes do Direito Internacional para a proteção da pessoa humana. As graves violações de direitos humanos provocam movimentos de refugiados, algumas vezes, em massa e dificultam a conquista de soluções duradouras para essas pessoas. Finalmente, realça que os princípios e práticas relativas aos direitos humanos oferecem normas aos Estados e aos organismos internacionais para o tratamento de refugiados, repatriados e pessoas deslocadas.

No entanto, não se pode deixar de reconhecer que é na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais especificamente em seu artigo 14, que encontramos o primeiro apoio normativo à instituição do asilo, conceito disposto na Convenção de Genebra, de 1951, sobre o Estatuto dos refugiados e em seu Protocolo de 1967. Esta ideia de que, em caso de perseguição, toda pessoa tem direito de buscar asilo e de usufruir dele em qualquer país, também foi colhido em instrumentos posteriores de direitos humanos. Entre eles cabe mencionar, por sua relevância, no contexto americano, a Declaração Americana de Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo 27 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, em seu artigo 22, aludindo, expressamente, ao direito de buscar e de receber asilo em caso de perseguição.

Há que se mencionar também a chamada Carta Internacional de Direitos Humanos, que se trata do conjunto composto pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos (1966) – tanto o de direitos civis e políticos quanto o de direitos econômicos, sociais e culturais, contêm direitos que não podem ser violados em qualquer hipótese, direitos, portanto, inderrogáveis, entre os quais se encontram o direito a não ser submetido à tortura, o direito a não ser submetido à escravidão, a liberdade de pensamento, de consciência e de religião e a garantia de não sofrer prisão arbitrária; sempre que houver violação a esses direitos existe perseguição, de forma que o indivíduo quando submetido a qualquer destas violações pode ter a condição de refugiado reconhecida.

É certo que a internacionalização dos direitos humanos provocou mudanças profundas na organização e estrutura das normas jurídicas internacionais. Previram-se deveres negativos e positivos que exigem tanto a tolerância do Estado a respeito de certos comportamentos individuais quanto a elaboração de políticas públicas para assegurar o exercício dos direitos econômicos e sociais. Os direitos humanos, que tradicionalmente pertenciam ao âmbito interno dos Estados, ganharam relevância internacional. Prova disso é que o domínio nacional exclusivo passou a ser fixado, na prática, pela atividade das organizações internacionais. Surgiu um novo critério de legitimidade fundado no respeito aos direitos humanos por parte do Estado. Os Governos que fracassam nessa tarefa perdem legitimidade no nível interno e internacional.

Desta feita, percebe-se que de certa forma a complexa realidade dos refugiados contribuiu não apenas para positivação de direitos e garantias para a proteção destes indivíduos, mas contribuiu para a internacionalização dos direitos humanos, uma vez que é na violação destes direitos que as pessoas se veem obrigadas a abandonar seu país de origem e a solicitar asilo em um país terceiro, ou seja, uma proteção internacional. O respeito e vigência dos direitos humanos nos países originários é a melhor maneira de prevenir os deslocamentos forçados de pessoas. No mesmo sentido, o respeito aos direitos humanos é crucial para garantir a admissão e a proteção eficaz dos refugiados nos países de asilo.

Cumpre salientar que além das normas específicas sobre asilo, todos os instrumentos gerais de direitos humanos e de direito humanitário são aplicáveis para a proteção dos refugiados e solicitantes de asilo, seguindo o conceito da complementaridade destas distintas vertentes. Estes instrumentos garantem os direitos humanos básicos a todos os seres humanos, sem distinção alguma entre nacionais e estrangeiros.

Esses avanços tem sido de grande importância para o Direito Internacional dos Refugiados e o Direito Internacional Humanitário. Cumpre ressaltar que a Corte Europeia de Direitos Humanos emitiu decisões importantes contra países que violaram o Direito Internacional dos Refugiados (principalmente em casos de devolução forçada e detenção arbitrária). Igualmente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos adotou decisões e opiniões consultivas sobre casos de violação do Direito Internacional dos Refugiados.

Assim, os direitos fundamentais consagrados nos diversos instrumentos internacionais de direitos humanos, tanto universais quanto regionais, além dos contemplados, especificamente, na Convenção de 1951 e em seu Protocolo de 1967, correspondem, aos solicitantes de asilo e refugiados, não sendo necessária a criação de novas leis para solucionar a crise migratória, mas tão somente o cumprimento das obrigações contraídas pelos Estados nos instrumentos internacionais de Direitos Humanos.

 

4. DIREITO À HOSPITALIDADE, À SOLIDARIEDADE E À TOLERÂNCIA

 

Muito embora diante do aumento de movimentos migratórios irregulares como se verifica na Europa, os Estados tenham incorporado, gradualmente, diferentes tipos de barreiras migratórias e outras medidas de controle mais restritas, tendentes a dissuadir ou obstruir a possibilidade de pedido de asilo, tais como dificultar a requisição de visto, sanções às companhias aéreas, detenção administrativa, interceptação em alto mar, etc., cumpre lembrar que os países devem se ater não somente aos mecanismos de proteção internacional aos refugiados, bem como ao princípio da não devolução, mas devem se atentar também ao direito de hospitalidade.

A hospitalidade deve vir orientada pela ideia que o humano que chega é diferente do outro que o recebe em sua terra. É estranho, estrangeiro, mas mesmo assim humano, em situação de vulnerabilidade, embasada em princípios de Direitos Humanos e Humanitários, que espera a hospitalidade incondicional e se depara com a hospitalidade muitas vezes condicionada, obturada pelo performativo jurídico do direito humanitário, do direito internacional, seus conceitos e instrumentos jurídicos e burocráticos dos Estados.

Podemos dizer que o direito à hospitalidade decorra do chamado direito cosmopolita idealizado por Kant. Extrai-se dos ensinamentos desse filósofo a noção de um dever de cuidado, pelo qual todo homem tem o direito de ser tratado como amigo em qualquer parte do globo, pois deveria prevalecer o direito à hospitalidade, essencial para o alcance da paz perpétua.[2]

Para Kant a hospitalidade é um direito de todos, bem como um dever , razão pela qual ele propôs a república mundial (Weltrepublik) ou o Estado dos povos (Völkerstaat) fundada no direito da cidadania mundial (Weltbürgerrecht). Esta teria como primeira característica a “hospitalidade geral” (algemeine Hospitalität:),porque todos os seres humanos estão sobre o planeta Terra e todos, sem exceção, têm o direito de estar nele e visitar seus lugares e os povos que o habitam, de forma que “a Terra pertence comunitariamente a todos”.[3]

Fabio Konder Comparato fala sobre solidariedade como um caminho viável, por colocar a todos na real condição dos homens: a de condôminos do mundo.

“A solidariedade prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social. É a transposição, no plano da sociedade política, da obligatio in solidum do direito privado romano. O fundamento ético deste princípio encontra-se na idéia de justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana”.[4]

Cumpre lembrar que a solidariedade foi reconhecida e elevada à categoria de princípio do Direito Internacional, tamanha sua relevância para os direitos humanos e para a humanidade e sua responsabilidade com todos os habitantes do mundo. Nesta esteira, pode-se afirmar que a solidariedade é um dos fundamentos do refúgio, posto que a proteção do ser humano é de responsabilidade de todos.

Hannah Arendt[5] asseverou que os displaced people, se viram expulsos dos da chamada trindade Povo-Estado-Território e destituídos dos direitos mais básicos, mediante a falta de vínculo efetivo com qualquer ordem jurídica nacional.

No que tange à tolerância, o seu conceito apresenta sentidos múltiplos, em função do fato da palavra apresentar vários significados, entre os quais pode-se destacar:

“qualidade de tolerante; ato ou efeito de tolerar; atitude de admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adotada por si mesmo; ato de não exigir ou interditar, mesmo podendo fazê-lo; permissão; paciência; condescendência; indulgência”.[6]

Paul Ricœur, que funda seu conceito de tolerância na evolução histórica deste princípio, a tolerância pode ser entendida negativamente quando vem a expressar a “abstenção de interditar ou de exigir”, ou positivamente no sentido de reconhecer, efetivamente, as diferenças[7]:

“A proteção contra a obstrução não basta; a correção das desigualdades devidas à diferença de peso social é exigida pela regra da justiça. A tolerância assume então um sentido positivo: à abstenção acrescenta-se o reconhecimento do direito de existência das diferenças e do direito às condições materiais de exercício de sua livre expressão. Desse modo a justiça não se separa de certa proteção dos interesses dos grupos mais fracos, na medida em que a justiça é inseparável de uma ação corretiva com relação aos abusos resultantes da pretensão do mais forte de se sobrepor à esfera de exercício da liberdade do outro. Do princípio da abstenção, começamos a nos deslocar para o princípio da admissão”

De acordo com Alberto do Amaral Júnior, a tolerância, além do escopo geral supramencionado, apresenta três faces, às quais correspondem três vantagens: (1) ao ser encarada como prudência política, na medida em que a convivência entre facções opostas traz benefícios, (2) pode ser vista como método, uma vez que se funda na “crença da razoabilidade humana e na superioridade da persuasão sobre a força”, e (3) entendida como “princípio moral absoluto, o qual se baseia no reconhecimento da dignidade da pessoa alheia”.[8]

Entendendo também a tolerância como algo positivo e benéfico, mas ampliando a sua importância, Michael Walzer a considera como necessária em um mundo multicultural: “A tolerância torna a diferença possível, a diferença torna a tolerância necessária”[9]. Além de ser necessária para a diferença, a tolerância é tida como um requisito da coexistência pacífica, a qual é “sem dúvida um princípio moral importante e substantivo”, o que fortalece a crença do autor na relevância do conceito.

Michael Walzer analisa a tolerância, precipuamente, do ponto de vista interno dos Estados e das associações, mas estende sua pesquisa para a sociedade internacional, que interessa sobremaneira ao presente estudo, uma vez que a temática dos refugiados é, em essência, internacional. Ao analisar a sociedade internacional, Michael Walzer a entende como a mais tolerante das organizações de grupos e demonstra como a tolerância é tanto possível em seu contexto quanto parte indispensável de sua manutenção:

“A sociedade internacional é aqui uma anomalia porque obviamente não é um regime doméstico. Há quem diga que não é sequer um regime, mas antes uma condição anárquica e sem leis. Se isso fosse verdade, essa seria uma condição de absoluta tolerância: vale tudo, nada é proibido, pois ninguém está autorizado a proibir (ou permitir), mesmo que muitos participantes anseiem por fazê-lo. De fato, a sociedade internacional não é anárquica; é um regime muito fraco, mas como regime é tolerante, apesar da intolerância da alguns Estados que a compõem. Todos os grupos que alcançam a condição de Estado e todas as práticas que eles permitem (dentro de limites que logo mencionarei) são tolerados pela sociedade de Estados. A tolerância é uma característica essencial da soberania e uma causa importante de sua atração”.[10]

Em sendo parte do cotidiano da sociedade internacional, devido ao caráter multicultural desta, e sendo indispensável para a convivência pacífica entre as diferenças, a tolerância se configura em um princípio importante da proteção dos direitos humanos e, consequentemente, do Direito Internacional dos Refugiados.

Impende mencionar que Häberle[11] quando delimitou as características dos movimentos fundamentalistas, destacou que do Estado constitucional deve achar meios e vias para, por um lado, organizar pragmaticamente a convivência dos muitos fundamentalismos de nosso tempo; quiçá até integrá-los em parte, por exemplo, mediante a proibição da violência e o monopólio estatal da violência, a proteção da dignidade humana de todos também no âmbito social; por outro lado, precisamente também, em virtude dessa missão, deve, mediante seus próprios princípios que o fundamentam, traçar e impor limites no âmbito interno e na convivência dos povos.

Seria assim, mesmo que em outras palavras, a tolerância com objetivo educativo que possibilitaria que o Estado constitucional recuperasse conscientemente a “história da conciliação e diálogo” entre as maiores religiões do mundo e até, em alguns lugares pode até, graças aos “diagnósticos” dos fundamentalistas, encontrar soluções para as próprias crises mediante a reforma de si mesmo, sem abandonar a dignidade humana, a democracia, o pluralismo, a proteção da privacidade, neutralidade e justiça social.

Desse modo, verifica-se que, quer por questões religiosas, quer por questões morais, ou, ainda, por questões humanistas, a proteção do ser humano e o dever dos Estados de garanti-la para seus nacionais ou para estrangeiros sob sua jurisdição sempre é justificada, e sendo os refugiados uma categoria de ser humano que depende dessa proteção, conta o refúgio com proteção positivada, bem como com ampla fundamentação filosófica.

 

CONCLUSÃO

 

A problemática dos refugiados requer uma análise adaptada a um mundo em constante mudança. Ademais, deve ser observada considerando o contexto de um mundo globalizado, conforme já manifestou ACNUR.

Devido ao aumento de conflitos internos nos países, o número de refugiados tem aumentado a cada dia. Conforme analisado, tal instituto visa a proteção dos direitos humanos dos indivíduos perseguidos por motivos religiosos, políticos, econômicos e até ambientais.

Desse modo, a fim de garantir que esse indivíduo reconhecido com refugiado seja estabelecido no país que o acolheu, foi reconhecido o princípio da não - devolução, non-refoulement,que não obriga o refugiado a voltar ao seu país pátrio e garante a sua permanência no país que o recebeu. Também aos refugiados se aplicam as garantias da pessoa humana previstas nos instrumentos de proteção internacional de direitos humanos e princípios como o da solidariedade, da cooperação entre os povos, da hospitalidade, o dever de cuidado e a tolerância.

É essencial que os Estados, no exercício de seu direito soberano, contem com muitas ferramentas para tratar os complexos fluxos de migrantes, de forma que possam acolher os indivíduos em situação de vulnerabilidade em decorrência da migração forçada, bem como façam frente ao fundamentalismo por meio de um Estado Constitucional.

O próprio ACNUR recomenda fortalecer os mecanismos nacionais de proteção, por meio da efetiva aplicação da Convenção de 1951 e do uso dos demais instrumentos existentes, para dar proteção a quem a requerer, por meio de uma aplicação, coerente e consistente, da definição de refugiado, para quem foge de situações de violência generalizada, de conflito armado ou de violação massiva dos direitos humanos. É recomendável também que haja adoção de procedimentos justos e eficientes de determinação, que minimizem os efeitos negativos dos controles migratórios, cada vez mais restritivos.

Respeitar a dignidade humana que está dentro de um rol de direitos garantidos a luz do direito internacional é uma condição indispensável para a prevenção e resolução simultâneas dos problemas das multidões de refugiados, que aplicação desses mecanismos específicos frente a esses grupos deve ser esclarecida para todos os governos e pessoas como uma forma de seu compromisso com a proteção dos Direitos Humanos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ACNUR. Compilación de Instrumentos Jurídicos Internacionales: Principios y Criterios Relativos a Refugiados y Derechos Humanos. Genebra, 1992.

_______. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (publicação sem periodicidade definida). Disponível em: http://www.acnur.org/

_______. Manual de Procedimentos e Critérios a Aplicar para Determinar o Estatuto de Refugiado – de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. Genebra, 1992.

_______. Tendências Globais sobre refugiados e outras populações de interesse do ACNUR. . Disponível em www.unhcr.ch. Último acesso 18 de jan. de 2017.

AMARAL Jr., A. A paz em tempos sombrios, O Estado de S. Paulo, 21 de setembro de 2001.

COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2001.

Dicionário Universal de Língua Portuguesa no documento eletrônico: www.priberam.pt/DLPO

HÄBERLE, Peter. El fundamentalismo como desafio del estado constitucional: consideraciones desde La ciencia del derecho y de La cultura. In: CARBONELL, Miguel. Teoría constitucional y derechos fundamentales. México: Comisión Nacional de los Derechos Humanos.

KANT. I. A Paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70.

RICOEUR, P. Em torno ao político. Coleção Leituras 1. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1995. p. 177

WALZER, M. Da tolerância. trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Constitucionalismo. Derechos y libertades, n. 29, jun. 2013

Blibioteca Digital, disponível em http://www.unhcr.ch/ (ACNUR), acessado em 20 de dezembro de 2016.

Blibioteca Digital, acessado em www.un.org, acessado em 10 de janeiro de 2017.

 

 

[1] Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/. Acesso em: 09 de jan. de 2017.

[2] KANT. I. A Paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70. p. 119-171.

[3] KANT. I. A Paz perpétua e outros opúsculos. Ob. cit., p. 139.

[4] COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 62.

[5] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das letras, 1989.

[6] Definição obtida no Dicionário Universal de Língua Portuguesa no documento eletrônico: .

[7] RICŒUR, P. Em torno ao político. Coleção Leituras 1. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1995. p. 177

[8] AMARAL Jr., A. A paz em tempos sombrios, O Estado de S. Paulo, 21 de setembro de 2001

[9] WALZER, M. Da tolerância. trad. Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. XII

[10] Ob. cit., p. 28.

[11] HÄBERLE, Peter. El fundamentalismo como desafio del estado constitucional: consideraciones desde La ciencia del derecho y de La cultura. Ob. cit., p. 370.