REFLEXÕES SOBRE O USO DO MITO COMO POSSIBILIDADE DE FORMAÇÃO DO SUJEITO

Claudia Flores Rodrigues
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Considerações iniciais

O mundo passa hoje por uma crise cultural e ética de dimensões universais. Tornou-se muito claro que a sobrevivência humana não poderá ser assegurada se não se respeitar, por um lado, os ritmos da natureza, como proclama a ecologia, e, por outro, a convivência e o reconhecimento do outro. Mas será que nós, humanos, conseguiremos sozinhos, independente do sentimento de pertença às nossas raízes históricas, enfrentar esse desafio à sobrevivência comum?
Talvez a resposta seja não. A crítica que se faz à modernidade é justamente ter confiado à razão, à ciência e à tecnologia, os destinos da humanidade, quando ciência e tecnologia podem ser entendidas como instrumentos para a realização do humano, como humano, a serviço do humano. Há de se pensar sobre a plena realização do ser humano, pelo caminho da razão, da vontade de poder, como diria Nietzsche, na busca de uma ética racional, fundamento indispensável da liberdade, da autonomia enquanto sujeitos.
A história da humanidade nos ajuda ver, desde as origens, a ética e religião profundamente entrosadas. A organização social compreende, ao mesmo tempo, o culto e a submissão, o político é religioso e o religioso, político. A afirmação da soberania se identifica com a soberania dos deuses.
Houve na Grécia um momento de luz, em que se tentou a distinção entre a obra e a razão, a filosofia, por conseguinte também a ética, e a religião. Mas foi um momento que até hoje continua sendo relembrado, principalmente pelo movimento da luta pela humanização por intermédio das luzes, em oposição às trevas da religião.
A aventura do iluminismo moderno, a que não se pode renunciar sob pena de realmente cair nas trevas, se manifesta hoje limitado, pelo fato da concepção abstrata do que é a natureza humana, não contar com a integração dos dados históricos, que por serem culturais e espessos não são menos humanos, nem menos valiosos para a indispensável reformulação constante da vida .
Por que haveria o ser humano de buscar no relacionamento com o outro a plena realização de si mesmo? Não seria mais fácil não depender do outro para alcançar sua essência? A necessidade de inter-relação é sinal de que o ser humano é limitado como agente, que está voltado a algo que transcende. Não encontrando em si mesmo o caminho, o ser humano se volta ao outro; o desejo de completude é um dos aspectos inerentes à necessidade humana.
Mas não é tudo. O relacionamento com o outro, não é, evidentemente, um relacionamento de troca mecânica, puramente material, econômica, em que se intercambiam coisas ou serviços. O relacionamento que busca completar-se no outro, passa por um jogo de valores que não podem ser medidos por nenhuma realidade palpável, nem quantificável. São por isto, valores transcendentes, como amor, justiça, verdade. Eles fundamentam a qualificação ética da ação e alimentam a liberdade.
Em face disso, preocupação que permeia nossa pesquisa, é o desejo de desvelar a possibilidade da utilização dos mitos nas práticas dos professores, como e em que medida fazem uso do mito nas suas práticas escolares e quais resultados obtém. Em que proporção uma abordagem assim, interfere na formação de valores e na consciência de cidadania? Essa compreensão está colocada como pressuposto básico no desenvolvimento do trabalho acerca dos mitos, especialmente os gregos.
Para tal propósito, tomamos como referência idéias do titânico, sua importância a aspectos da natureza humana, a psicologia dos arquétipos como forma de fazer relações e associações num processo de reflexão. Diante do exposto, finalmente, nos propomos a discutir a amplitude do uso do mito, fazendo uso da metodologia da História Oral, na modalidade História Oral Temática e refletir sobre a possibilidade de inserção do mito no universo escolar de crianças de séries finais do ensino fundamental de escolas públicas e particulares, como tentativa de resgatar a arte de pensar e fazer associações para um saber humanizado e científico.

E por que o mito?

O estudo do mito tem a intenção de entender o ser humano no seu íntimo, relacionando a teoria e a prática educacional cotidiana.É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o mito, que o mesmo não tenha aqui a conotação de fábula, lenda, invenção, ficção, mas a acepção que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as denominadas culturas primitivas, onde mito é relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Em outros termos, mito é o relato de uma história ocorrida nos tempos dos princípios, quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente um fragmento, o comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser.
De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida de gerações em gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a palavra, o dito.E, desse modo, se o mito pode exprimir ao nível da linguagem , ele é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado. Mito é palavra, imagem, gesto. É uma narrativa que se fixa através do homem sensível. Ele expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através dos tempos. E, na medida em que pretende explicar e discutir o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, abre-se uma janela para o não real, o ilógico, o irracional, nas palavras de Brandão (1991).

Fontes orais e testemunhos sobre práticas pedagógicas na formação do sujeito: o uso ou não da mitologia nas práticas dos professores

Apresentar e discutir os processos de produção do trabalho dos professores sobre o uso da mitologia ou não, em sala de aula, afirma a importância da metodologia da História Oral e das narrativas como instrumento de fundamental eficácia para o estudo de processos históricos imersos no tempo.
Ao me propor discutir questões relativas às práticas dos professores relacionadas ao uso da História Oral, buscamos salientar aspectos que preocupam aqueles que se sentem responsáveis em contribuir para o debate crítico e reflexivo da Filosofia, da Ciência e da Sociologia e propõem a inserção de uma discussão consciente para a compreensão da realidade e para a compreensão da realidade da complexidade. E para isso, as fontes orais enquanto narrativa daquilo que foi e é vivenciado, permite estabelecer uma relação entre o imaginário e o real, entre deidades e homens , entre eventos do passado e o real, apresentando a sociedade tal como ela é; e de maneira singular, privilegiar a dimensão do vivido, na intenção de mostrar aquilo que é dado a conhecer.

Memória e identidade na transmissão Oral

A memória não é um patrimônio inerte, é a recriação contínua, flexível daquilo que é acreditado, é o reflexo da imagem que foi criada dentro do contexto de uma época ou do lugar. E, neste momento, é importante ressaltar que lutamos contra um tempo em que a ênfase aos conhecimentos científicos e tecnológicos parece desejar - e talvez até consigam - colocar em desuso a riqueza de um passado que se tornou importuno. Cabe aqui interrogar-nos sobre a relação que a mídia e a própria educação criaram para reforçar (ou não) nossa relação com a História Universal e com a Memória.
Estas considerações abrem um espaço de inquietação sobre a responsabilidade atual do educador nesse contexto ambíguo, de profundas implicações no campo da memória e das responsabilidades sociais. É possível ainda, discutir e reconhecer na apresentação das análises sobre a modernidade e o passado, as evidências em relação aos contextos sociais e históricos, na construção de uma biografia pessoal (referimo-nos aos professores), através de uma retomada ao passado, ao seu passado, sem descartar o presente. Para João Carlos Tedesco (2004), a memória, perante a história e a cultura, tem profundas implicações das responsabilidades sociais, pois um indivíduo que perde o sentido da relação com o próprio passado, perde também um elemento fundamental da sua própria identidade. Melhor dizendo: perde a capacidade de perceber sua própria continuidade, de se reconhecer no tempo.



Nas entrevistas, a expressão da memória

A História Oral dá voz aos sujeitos, traz à tona questões e problemas, reconstrói a trajetória passada e dá voz àquilo que ainda não havia sido dito e que não havia sido registrado, e, que muitas vezes, deixa de mostrar toda a sua magnitude e se perde em armários internos, fechados, velados.
Para Thompson, a evidência oral pode conseguir algo fundamental para a história. Para este autor, a evidência oral transforma "objetos" de estudo em sujeitos e contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira.
E é nesta perspectiva, que muitas questões serão investigadas e discutidas sobre práticas pedagógicas e formadoras. Consequentemente, que se torna essencial o uso da evidência oral através do relato dos professores. E, no exercício da ética, o entrevistador, que partilha das experiências dos outros, precisa conferir discrição e seriedade, pois quando uma pessoa se permite conhecer em uma comunicação, nem sempre expressa em palavras. O ir e o voltar nos depoimentos, na história de vida, implicam uma significação ampla, que reconheça as evidências e as referências que situam o entrevistado no quadro mais amplo dos episódios sociais, econômicos e políticos. Sendo identificado o encadeamento desses episódios em relação às suas práticas, elabora-se um contexto de leitura para se chegar à compreensão da intenção da pesquisa e a quê os depoimentos querem se referir. E isso é, no mínimo, fascinante, é fazer e ser parte da descoberta do relato, da palavra, da memória, para comunicar aquilo que se pretende ou se entende necessário.
Finalmente, sem essa percepção, não pode existir sem comprometimento.O sujeito, sua história, sua memória, não podem ser resumidos a um tempo presente, apenas. Concordamos aqui com João Carlos Tedesco (2003), que preconiza que a memória histórica e a memória política fazem reconstruir responsabilidades. Enquanto mundo, enquanto seres complexos, não podemos apontar como problema a enfrentar o declínio da memória coletiva e a pouca consciência do nosso passado, mas a distorção e menos importância que talvez se dê aos testemunhos históricos e a invenção de um passado mítico construído para dar significação e mostrar o humano , o real ou imaginário, o sagrado e o profano. Sob este prisma, talvez seja possível correlatar um cenário cujo fio tênue entre passado e presente, indicam maneiras de abordar e buscar subsídios para tematizar e teorizar sobre os mitos e as práticas dos professores no presente estudo.



Reflexões sobre ciência e humanidades


Para descobrir ou compreender o significado do que é científico,podemos discutir e reformular nosso conhecimento, quanto aos conceitos que emergem a partir de uma visão de ciência permeada de dogmatismos ferozes, excludentes de toda e qualquer possibilidade da construção de um conhecimento legítimo para o indivíduo e necessário para a negociação de significados com o conhecimento socialmente organizado e construído, como afirma Neves (2001).
A aplicabilidade do método científico nas ciências naturais e sociais é uma "leitura" que exige um conhecimento real, verdadeiro, transparente. Saber-se filósofo, aquele que busca o conhecimento, compreende organizar, de maneira crítica, várias posições de diversos estudiosos, esclarecer em nosso pensamento quais as suas posições, até chegarmos à nossa própria compreensão sobre a postura da ciência frente à discussões sobre o mundo, sobre o sujeito. Esse olhar -e- ver, requer muita interpretação e a exploração de detalhes, compreender nas entrelinhas de cada conceito já existente.
Boaventura de Sousa Santos ( 2001 ), sugere perguntas simples, elementares, baseadas nas teorias de Eisten e Rosseau. Afinal, há relação entre ciência e virtude humana, há uma razão para substituir ou repensar o pensamento vulgar da natureza e da vida em detrimento do conhecimento científico produzido e admitido como privilégio de poucos-questões ainda discutidas e discutíveis-. E na tentativa de construir uma linha do tempo, o mesmo autor, pretende deixar claro um tempo onde a ciência, pelas mãos de Copérnico, Galileu e Newton, deixa de lado os cálculos esotéricos e começa seus planos como fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes; uma fase de transição e não transitória, visto que é daí que nasce uma nova ordem científica.











Século vinte e um em xeque: a confiabilidade epistemológica, a ambigüidade da complexidade e da urgência do simples, do intiligível

A partir de uma maneira de reinterpretar temas metafísicos, num retorno à origem helênica de discussões do sobre o ser e o pensar, Heidegger, citado por Neves ( 2002), posiciona-se contra a vertente aristotélica da metafísica que, para ele, faz com que o homem perca sua humanidade ao ser considerado apenas um entre os demais. Na sua metafísica, Heidegger procura mostrar que as relações das coisas existentes é provisória e atrelada ao tempo em que elas ocorrem; sua metafísica supõe haver um significado autêntico e único do ser, a saber, aquele cuja essência se encontra na temporalidade própria.Qualquer outra forma do reconhecimento do ser, baseada numa técnica de pesquisa científica provaria o esquecimento e a ocultação da verdade do ser. O pensamento radical não reduz às exigências de uma exatidão artificial dos sistemas teóricos. Para este estudioso, só quando o pensamento sai do seu elemento próprio é, que, por perder o poder de guardar sua essência, a técnica passa a ser valorizada como atividade cultural e a filosofia se transforma em uma técnica de explicação pelas coisas últimas, numa crítica à metafísica aristotélica, que buscava as causas últimas das coisas.
O princípio da incerteza coloca em questão as contribuições científicas do século vinte; isso gera um movimento de desdogmatização. Entretanto, a irreversibilidade da crise da ciência, na revolução iniciada por Einsten, não tem data para acabar. E nesse ponto, Boaventura ( 2001 ), destaca na discussão da teoria da relatividade, o surgimento da condição teórica da crise do paradigma dominante. A incompletude ou não complemento e os teoremas sobre a impossibilidade, mostram que, mesmo se seguindo à risca as regras da lógica matemática, é possível formular proposições indecifráveis.
As facetas de ordem sociológica surgem como predominância primeira, uma reflexão dos próprios cientistas, que por fim passam a adquirir interesses filosóficos e, a posteriori, surge uma faceta que abrange questões que anteriormente eram esclusivas dos sociólogos e passam a não mais participar de modo estanque, fragmentado, diviso; mas podem sim, adquirir um papel importante no fazer e no pensar epistemológico.


Escola. História.Memória


Para Guilherme Corrêa ( 2004 ),a escola tem agido e influído diretamente na população e se utilizado dos velhos discursos de verdades superadas para satisfazer-se nas suas práticas.
O espírito de seriedade preconizado por Sastre e bem lembrado por Guilherme Corrêa, destaca o comportamento em que o homem sério é aquele que recusa sua liberdade para viver o conformismo e ganhar a respeitabilidade da ordem estabelecida pela tradição. A banalidade ou naturalidade da presença da escola em nossas vidas merece ser pensada, discutida, teorizada.
Haverá sempre a inesgotabilidade da busca para o desenvolvimento de novas e modernas técnicas pedagógicas, práticas dos professores, estratégias de ensino diferenciadas. Mas Guilherme Corrêa afirma que, embora haja diferentes tipos de escola, com as mais variadas e antagônicas finalidades, há entre todas elas um laço muito forte que as escolariza. A obediência a uma lei de alcance nacional, regula, desde a freqüência presencial à seleção dos conteúdos, o que no pensar do mesmo autor, forma um exército docente, responsável pela manutenção das características do ensino que interessam basicamente ao governo.
Pensar a escola, este espaço fechado, que se utiliza ainda de técnicas mnemônicas é o grande desafio desta pesquisa. Encontrar brechas através dos processos sutis e violentos que vão desde sanções comportamentais a organização dos conteúdos, será um exercício de obediência. Uma grande e inesgotável obediência aos princópios do humano enquanto sujeito, enquanto integrado-integrante-integrador dessa grande e complexa tribo chamada sociedade.



A prática diária do professor inspirada no mito, especialmente o grego:Como a mitologia chegou até nós e de que forma podemos nos aproximar dela.

Nos escritos de Junito Brandão (1991), foram a poesia, a arte figurativa e a literatura erudita, as responsáveis por documentos de cunho profano - tomado aqui no sentido lato -, uma vez que o mito era como suporte nas três artes já mencionadas. Os poetas gregos não obedeciam tão somente critérios religiosos, mas também a ditames estéticos como exigência intrínseca para a realização de seu trabalho. A tríade ação, tempo e lugar estavam presentes na tragédia clássica. O mito deslocava-se livremente no tempo e espaço, multiplicando-se através de um número indefinido de episódios. As alterações sofridas pelos mitos gregos, não se restringiam a poetas e artistas. Eram aceitos e mantidos, embora reduzidos e criados, alterados para atender às exigências artísticas.
Porém, o pensamento racional, principalmente dos Pré-Socráticos, muitos dos quais tentaram desmitizar ou dessacralizar o mito em nome do Logus (a razão), sabiam que na Grécia, como em nenhum outro lugar, o mito inspirava, não somente a poesia épica, mas a tragédia e a comédia, assim como as artes plásticas. A cultura grega submeteu o mito a uma longa e profunda análise, da qual ele saiu, nas palavras de Mircea Eliade (apud BRANDÃO, 1991), 'radicalmente desmitificado'. O racionalismo Jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia clássica, expressa nas obras de Homero e Hesíodo.
Na realidade, a crítica dos filósofos jônicos não visava o pensamento mítico, à essência do mito, mas ao comportamento dos deuses e suas atitudes. Em nome de uma idéia cada vez mais elevada de Deus, defendiam que Ele não poderia ser concebido como injusto, vingativo, adúltero e ciumento (atributos do humano). Nas palavras de Homero e Hesíodo, os deuses realizavam tudo o que era vergonhoso para os homens, como trapacear e roubar. O antropoformismo é violentamente censurado na figura dos deuses: como a cavalos, bois, poderiam ser atribuídos corpos humanos?
A idéia de um Deus acima de todos os deuses e homens, cuja forma e pensamento não se assemelha aos mortais, era a idéia defendida por Xenófanes. A crítica racionalista cresce e o mito recebe com Demócrito (520-440 a.C.), um grande golpe. O sistema mecanicista reduz tudo a um entrechoque de partículas denominadas átomos, cuja necessidade da natureza os fazia moverem-se no vácuo infinito com movimento retilíneo de cima para baixo e com desigual velocidade. Dos entrechoques atômicos formariam-se imensos vórtices ou turbilhões dos quais se originariam os mundos, a alma, os seres, os deuses. Todos sujeitos à morte, uma vez entendidos como matéria.
Dessa forma, é possível dizer que Demócrito lança os deuses vulgares e a mitologia à fantasia popular. Os deuses, tidos como superiores ao homem, que embora igualmente composto de átomos, era, portanto, falível.
Os mitos são a linguagem imagística dos princípios. Traduzem a origem e, na expressão de Goethe, são as relações permanentes da vida. Se o mito é, pois, uma representação coletiva que relata uma explicação do mundo e sua origem, então o que é mitologia?
A mitologia, palavra na qual está introduzida o logos= matéria de estudo, articula os mitos, estuda sua procedência, seu significado, sua interpretação e oferece informações básicas sobre a origem, a crença e o desenvolvimento sociopolítico de um povo. Todos os povos têm sua mitologia. Em Zacharachis (1995) é possível encontrar - e concordar - com a afirmativa que a mais bela e rica é a mitologia dos gregos. O número dos mitos que se incorporam à mitologia grega é imenso e variável desde a era dos povos neolíticos, em que são introduzidos elementos de Creta, da Palestina, do Egito, da Babilônia e em geral dos povos do Oriente, até o panteão puro dos deuses olímpicos, das musas e das ninfas florestais.
Para melhor compreender o conteúdo dos mitos gregos, o seu significado e sua origem é fundamental tomar como base sua antiga forma, definindo primeiramente o que vem a ser divindade, o thion dos gregos na consciência do homem primitivo. Divindade e mito são, neste caso, noções dependentes entre si e o estudo de uma requer aprofundamento no campo da outra.
O homem, em seu estado primitivo, formou sua sociedade tendo como habitação primeiro as cavernas e mais tarde suas instalações primitivas. Vivia da vegetação e dos frutos naturais, assim como da caça e da pesca. A mulher gerava os filhos e cuidava do ambiente interno e ao homem, cabia garantir a alimentação e proteção diante dos inimigos do ambiente externo. Em Zacarachis (1995), se afirma que o homem mentalmente evoluído sentia de imediato a influência das forças da natureza; a noite, o dia, a lua, o sol, os relâmpagos, os ventos... No meio destas forças o homem colocava o seu "eu", seu "ego" e procurava se identificar e compreender a vida da natureza à medida que esta influenciava e agia sobre sua existência.
Neste exercício de reconhecimento, o homem conscientizou-se que a terra tinha uma força com o poder de produzir. A chuva era influenciada pela lua, que por sua vez era a responsável pela produção e pela força geradora da vida na terra e, conseqüentemente, da eliminação pela morte. Assim, na concepção greco-helênica nasceram primeiro as divindades cósmicas: a terra, o sol, o oceano, o ar os ventos, as montanhas, as florestas, etc., e depois nasceram as divindades espirituais: a fé, o culto, a paz, a guerra, o amor, a sabedoria, a beleza. Os dois mundos entrepostos, o da matéria e do intelecto, foi realizado com a intervenção de Eros.
Os seres antropomorfos, divindades personalizadas, tinham pais, irmãos, filhos, moradia, alimentos, paixões, prazeres. Sabiam tudo o que acontecia ou que aconteceria, influenciavam a vida dos homens, eram fortes e belos e não sujeitos à morte. Esta era reservada apenas aos homens, meros mortais.
Interessante é a posição da deusa, nos tempos mais antigos: sua posição era predominante e a dos deuses, suplente; reflexo das condições político-sociais da época. As Titanas eram as de maior importância no domínio e os Titans exerciam posições secundárias. Urano era apenas um esposo e ainda perturbador da terra. Com o passar do tempo, a posição dos deuses perante as deusas foi se modificando até a chegada do sistema Olímpio, onde era possível encontrar certa harmonia, com a predominância dos deuses e a supremacia de Zeus.
Na tradição mitológica, os deuses e os homens nasceram da mesma fonte. A Mãe-Terra, após ter gerado os deuses, gerou as ninfas. Os deuses podiam se juntar com pessoas humanas, assim nasciam seus filhos mortais, mas o contrário não podia acontecer: as pessoas humanas não podiam, por sua vontade, juntarem-se aos deuses. Também existia uma criatura intermediária, a ninfa-melia, que podia gerar filhos tanto com os deuses, quanto com os homens. Seus filhos tinham algo de divino, o thion dos gregos, e pertenciam a uma classe especial que era a classe dos heróis. E os mitos que se referem a esta classe constituem a mitologia dos heróis.
Através do herói, eram personalizadas as forças morais. Os heróis, como chefes, fundadores de polis, reis de Estado, fundadores de dinastias, destacavam-se pela intenção e pelo propósito de ajudar a sociedade. "Dento deles existia uma força maior, o divino, comparado à luz e à graça cristã, e por isto as raízes de suas árvores genealógicas chegavam até os deuses" (ZACARACHIS, 1995).



O Titanismo



Neste parágrafo, comecemos por compartilhar algumas impressões sobre o titanismo, um tempo que pode ser visto como um período de transição entre o homem primitivo e o homem culto, civilizado. Um período durante o qual não existiam nem o ritual, nem o culto do homem primitivo, nem a imaginação antropomórfica bem definida do homem altamente culto e religioso.
Antes de tudo, é importante classificar um pouco o campo mitológico da figura titãnica: os Titãs pertencem ao tempo mitológico de Crono, época da primeira e segunda geração dos deuses. Foi o tempo anterior à guerra de Zeus contra seus progenitores titânicos, que originou uma nova ordem, um novo ritual, uma nova cultura.
Sem perder o viés da abordagem ao mundo titânico, podemos presumir que o antropoformismo grego abre a possibilidade de um renascimento da psique também através da poesia grega, como uma maneira de educar a alma através dela, do antropoformismo poético-mitológico do qual o homem ocidental pode extrair inesgotavelmente aquilo com que se educar e recriar a alma. Mas retornemos à titanomaquia... Os relatos sobre os titãs são sobre deuses que pertencem a um passado associado com a divindade do sol; eram deuses celestiais, ainda selvagens e não sujeitos a lei alguma, a ordem ou limites.

....Assim falou. Aprovaram os deuses doadores de bens a palavra ouvida. Ávido de guerra o ânimo ainda mais, e despertaram o triste combate todos- Deuses e Deusas-naquele dia: Os Deuses titãs. Quantos nasceram de Crono, os que Zeus do Érebos sob a terra lançou a luz, terríveis, poderosos, com bem- armada violência. ( HESÍODO apud TORRANO, 1995)

No trecho extraído da poesia Titanomaquia, obra de Hesíodo, intitulada Teogonia, existe a possibilidade de reconhecer a busca da vitória e do poder de forma combativa, erguidos numa discórdia atroz. E assim se expressa o poder de Caos; desagregação, violência. Enraizadas nas origens, distinguem-se três linhagens, as três fases cósmicas: a de Caos, que como força de separação se opõe à força de união Eros; Céu, que como duplo positivo da Terra se opõe ao duplo negativo dela; Tártaro-distante da terra como a terra dista do céu (J. Torrano: 1995, in Hesíodo)
À linhagem de Caos pertencem todas as formas de violência das potências negativas e destrutivas, potências de cisão. O catastrófico momento que constitui a titanomaquia conta com a horrenda batalha entre as forças coligadas por Crono e Os Deuses Olímpios, comandados por Zeus e a dominação de Crono por este, que o lança às profundezas do Tártaro. O Caos é transpassado, envolvido e contido no incêndio divino, onde tudo é um só e vivo fogo que mostra aos inimigos um Zeus consagrado rei, o deus dos deuses.
A tragédia fará então um dos seus temas centrais a reflexão sobre o vínculo entre o agente e ação, caracterizadas por deidades apresentadas pela visão de Hesíodo e seus contemporâneos. Para ele, o mundo não é uma materialidade fundada em uma essência universalmente homogênea, subsistente por si mesma, e entregue às suas próprias leis. Não há, nas diversas partes do cosmo, essa homogeneidade sob os fenômenos. Essa imagem do mundo pode e deve ser discutida na sua complexidade. Michel Mafessoli (1998) preconiza o deixar ver, o fazer pensar e completa, afirmando que "isso pode chocar alguns"; O "julgamento da existência" é diferente do "julgamento de valor". É preciso conhecimento e sensibilidade teórica para apresentar o mundo como ele é. Isso significa prestar atenção e teorizar sobre as diversas imposições sociais e morais. O dizer sim à vida não significa um otimismo romântico, mas exercitar a sensibilização da razão. Para o mesmo autor, descrever a continuidade na complexidade mantém juntos elementos contrários, até opostos, num mundo observável, orgânico, policultural, em seus diversos sincretismos religiosos e ideológicos. Uma lógica contraditória, onde conflito, desordem e disfunção podem fortalecer seus opostos, na tentativa de acomodá-los e utilizá-los para um possível acréscimo de vitalidade, num processo de repulsão e paixão, amor e ódio, numa sutil alquimia das "afinidades eletivas",muito bem ditas por Goethe.




A busca (da modernidade) de uma expressão social mais original

Distinguir o bem do mal, o sagrado do profano, o verdadeiro do falso está em congruência com a tentativa estética de certo e errado. Mas o que se poderia pensar frente a uma heteregeneização de valores no século XXI? O reconhecimento da beleza ou da tragicidade do mundo não requer supressão do eu. Pelo menos assim é mais possível estar atento aos fatos da vida real, do conhecimento comum e relacionar com o universo simbólico da sociedade.
Embora se tenha que admitir a importância da tradição e da dispersão por migrações, há casos numerosos em que essas imagens pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o inconsciente coletivo. Mas por não ser verbal, ou seja, não podendo o inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz através de símbolos, que em grego significa "lançar com", no sentido de arremessar. Inicialmente, o símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em partes. O símbolo é, pois a expressão de um conceito de equivalência, de conjunção, de união. Jung ilustra que os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos que existem sempre a priori.
Oriundo do grego primitivo arkhétypos, etimologicamente, significa modelo primeiro, idéias inatas. Como conteúdo do inconsciente coletivo foi empregado pela primeira vez, por Jung. No mito, esses conteúdos remontam a uma tradição, cuja idade é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado primitivo, cujas exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre as culturas primitivas ainda existentes. Normalmente, se distinguem dois tipos de imagens: de caráter pessoal; incluídos os sonhos, que remontam a experiências pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela anamnese individual e imagens de caráter impessoal; incluídos os sonhos, que não podem ser incorporados à história individual. Correspondem a certos elementos coletivos: são hereditárias.
Nossa sociedade se utiliza do mito como expressão de fantasia, de mentiras: mitomania. E nesse contexto, o homem moderno convive com fenômenos distintos e diversos, que influem enormemente em suas ações. O enfrentamento da confusão, da incerteza, e da contradição o torna complexo. E para Morin, a dificuldade do pensamento complexo é justamente enfrentar as adversidades e ter que conviver com a solidariedade dos fenômenos existentes em si mesmo. O pensamento que é complexo, não pode ser linear, não se utiliza de idéias simples, de soluções, mas de problemas, de caos, além de considerar todas as influências, sejam elas internas ou externas. O uno e o múltiplo convivem na constância da ambigüidade, da desordem, elementos que são membros e partícipes do todo. E o todo, ainda em Morin, é uma unidade complexa e não se reduz a mera soma dos elementos que constituem as partes. Assim também pode ser explicada a complexidade do pensamento, do corpo humano, da natureza, da História Universal, do mundo, do mito. O bem e o mal, o feio e o bonito, o esquerdo e o direito, numa convivência ambígua e estimulante, enquanto genuinamente inquieta.
Nesse contexto, é possível, num processo de construção, que fiquem claras as relações e que de uma forma ou de outra, se possam fazer presentes na prática pedagógica fundamentadas por uma epistemologia da complexidade embasada nos mitos gregos, reconhecidos como verdade profunda na nossa mente coletiva e que não podem ser vistos tão somente quanto uma linguagem imagística dos princípios, mas decifrados não apenas quanto aos significantes, isto é, a parte concreta do mito como signo, mas ir além das aparências e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo, fazendo constantes interligações de sujeito-objeto-ambiente.
Uma educação voltada para tais saberes, não cede espaço para conceitos fechados, moralismos ou pensamentos estanques. O conhecimento requer relações de busca, de descoberta, de discussão, de problematização, de apresentação. É uma educação que suporta ir além, que aponta para um caminho que transcende em seus limites e possibilidades. Mas nada será possível se os educadores não iniciarem um processo de reforma de pensamento, e que comece no próprio educador uma busca de renovação de cultivar-se, buscar informações, fazer o que Morin ainda sugere ao considerar que o professor, individualmente deve ir em busca da formação necessária, partindo do estudo do que ele próprio classifica como novo tipo de ciência: ecologia, ciências da terra e cosmologia. Concordando com o mesmo autor, esse processo é contagiante e ainda que as idéias fiquem bloqueadas algumas vezes por muito tempo, chegará o dia em que elas explodirão e ecoarão.
E as instituições, estariam preparadas para a proposta desse tipo de (re)forma? Talvez sim, talvez não! Dedicação, persistência e consciência do ser político que se é podem movimentar não apenas a educação, mas várias áreas da ciência. O desassossego não pode se restringir apenas ao "achismo". Teorizar significa conhecimento prévio, estudo, discussão, imersão no caos. Como conversar sobre tragédia, sobre mundo real, sobre sentimentos ambíguos inerentes ao humano sem conhecê-lo, ou melhor, sem reconhecê-lo na sua tragicidade, na sua comicidade e nos seus feitos. Nunca fomos tão gregos! Como sabê-lo sem buscarmos na historicidade universal um aporte capaz de reformular, de rever nossos pensamentos e refleti-los conscientemente, com autonomia e conhecimento?



A partir da mitologia: (con)viver com os monstros da modernidade

"... e mesmo depois que os Titãs foram derrotados e esmagados, Zeus não ficou totalmente vitorioso. A terra gerou seu último e mais terrível rebento, uma criatura mais tenebrosa do que qualquer das que até então haviam sido geradas. Seu nome era Tífon,

Um monstro flamejante com cem cabeças
Que se insurgiu contra todos os deuses
A morte sibilava por entre suas mandíbulas,
E seus olhos vertiam labaredas fulgurantes ". (HESÍODO apud TORRANO, 1995, p. 143 )


Com o domínio do trovão e do raio, eis que Zeus então destruiu o monstro, fazendo com que seu próprio coração ardesse em chamas. A metáfora do monstro, pode ser comparada ao cotidiano, às ameaças tanto externas quanto internas que sofremos enquanto humanos. Ao passo que o embrutecimento pode ser visto como alienação, a inveja, o ódio e o descomprometimento com o outro são monstros da convivência, são frutos do humano, demasiado humano, como diria Nietzche. A subserviência, as relações de poder e o materialismo exacerbado são monstros internos, com os quais convivemos diariamente. Ou nos juntamos a eles, ou, a exemplo de Zeus (Zacarachis, 2005), travamos uma batalha e saímos vencedores. A consciência dessa limitação é o primeiro passo para o despertar no sentido de refletir sobre a necessidade de superação da fragmentação mutilante que influencia nossas vidas no aspecto social, cultural e cerebral. Nesses termos, o próprio sujeito torna-se objeto do conhecimento.
Até mesmo as instituições podem ser nocivas, "monstruosas" quando impedem que espíritos desejosos de transformação não possam concretizar seu sonho de (re)forma. Um universo físico pode evoluir através das desordens; ora destruidoras, ora cooperativas. A "monstruosidade" do humano é que pode ser entendida, pode ser posta num processo dialógico e servir de aporte para agir complementariamente nas situações de antagonismo das noções de ordem e desordem. E essa possibilidade está na reformulação do pensamento linear e simplista até chegar na complexidade de um pensamento capaz de considerar todos os aspectos que o compõem.Para essa transformação, Edgar Morin sugere o paradigma da complexidade, que influi sobremaneira a educação, que abrange todas as áreas do conhecimento, todo o tipo de indivíduo, todo o complexo mundo das diferenças no sentir e no agir.No ser.
Sob o ponto de vista descritivo, é marca profunda da modernidade a maneira paradoxal pela qual se busca do elemento agregador da felicidade, diante de todos os perigos e disfunções do momento.Viver intensamente o hoje é frase que se repete, talvez porque nos sintamos ameaçados, talvez porque seja um sinal de uma concepção trágica da existência, um enfoque no cotidiano, uma espécie de conservação tanto de si, quanto da espécie.





"Dizer sim à vida, lutar contra a marginalização do poder".

Michel Foucault chama isso de "cuidado de si", não como retração sobre si mesmo, mas um usufruir amplamente na relação e influir na vida em comunhão com os outros: relações econômicas, de amizade, de cônjuges e, evidentemente, com a natureza. A questão do prazer e do hedonismo em contraposição aos monstros sociais, como por exemplo, o trabalho pelo trabalho, a negação da relevância das relações verdadeiras e afetivas no trabalho, como interação e constituição das equipes, o não negligenciar da importância do fator relacional, como valorização do espírito e numa dimensão imaterial do ser que, mesmo sem negar ao ter, potencializa sua influência na formação da sua identidade.
Para o desencantamento que precisa ser enclausurado, banido ,Bauman (2001) supõe um "reencantamento" pelo viés da imagem, do mito, da alegoria, numa função agregadora. A emoção não precisa restringir-se ao privado; os ambientes podem ser afetuosos, sejam eles em casa, na rua ou no trabalho. O vivenciar coletivamente e experienciar momentos de frivolidade, é visto em diversas manifestações, sejam elas musicais, religiosas, esportivas ou políticas. O "vibrar com" cria uma espécie de estar-con-viver-com. São efeitos sociais, são o exemplo da presença de um vínculo tênue e misterioso que nos une. A visão gregária se dá por contágio, ou seja, um exprimir, um experimentar o outro, um deixar-se envolver pelo outro. Nesse sentido, "quem olha e não vê, toca, mas não sente, escuta, mas não ouve, diz, mas não fala... deixou de ser humano" (CUNHA, 2006) .
A necessidade orgânica de estar junto, não homogeiniza o ser humano, ao contrário, cada um, independente de ser igualitário, passa a ser indispensável ao todo. Logo, a diversidade não pressupõe igualdade, ela comunica uma multiformidade em que cada pessoa se encaixa justamente pela sua versatilidade. Isso prova uma lucidez, uma preparação espiritual para pensar critica e claramente sobretudo o que se permite ser experienciado, sorvido, degustado, metaforicamente falando.
Eis pois que a ênfase colocada no mito, no presente, permite lembrar que a imagem é um elemento social importante em sua estruturação, seja ela qual for. Discutir e reconhecer nessas imagens uma potência imaterial, simbólica e útil constitui uma barreira para a não formação de uma ideologia da utilidade dentro de um projeto político-econômico que deseje exercer seu poder sob todas essas coisas que podem ser reunidas e chamadas de "imaginário social".
Poderíamos elencar vários exemplos nesse sentido, porém é só lembrar que a imagem não é apenas um suplemento da alma, dispensável,primitivo, mas ela está no próprio cerne da criação. A imagem individual de si mesmo, é refletida igualmente no conjunto social, que se estrutura em função das imagens dele próprio e que podem ser rememoradas regularmente. É o que Bauman (2001) descreve como "forma formante". E mesmo que não se formule exatamente dessa maneira, um e outro irão viver arquétipos fundadores; sua vitalidade será medida pela fidelidade e esses arquétipos, pois tanto o corpo social quanto o corpo individual tendem a enfraquecer, ou até mesmo desaparecer, até que outras imagens regenerem este o corpus em questão.
E por que insistir nessa idéia de religação da imagem. Justamente porque ela fornece vínculos, relaciona todos os elementos entre si, tudo junto e ao mesmo tempo, por meio de diversas categorias e procedimentos, o imaginário, o simbólico, a imagem, suscita a confiança que permite o reconhecimento de si a partir do reconhecimento do outro, seja ele quem e como for, seja objeto, indivíduo ou idéia.
Assim, é possível compreender que o ambiente se alimenta da inércia, é um corpo que vive de espacialidade, traduzida em lugares, monumentos, ruas. As histórias humanas, contadas, vividas, rememoradas, mostram esse efeito; mostram, além disso, o papel psíquico da vida social refletido em suas crenças, ritos e sentimentos coletivos. No lugar da separação, há a globalidade, que agrega espaços, restauram fatos, palavras; distingue uma coisa da outra, distingue os fatos individuais e os fatos sociais, assim como os indivíduos entre si, mas nem por isso é perdido o sentimento de pertencimento, a divindade de viver e de estar-junto.




O resgate de um tempo forte

Nada mais apropriado para encerrar este texto, que mais uma vez rememorar e admitir a importância da tradição mitológica grega, reconhecendo na tragicidade do humano, re-atualizar aquilo que é ritualizado, incorporado ao mito, ao segredo da origem de todas as coisas, o sentido de uma ação e uma atenção especial através da referência que se estabelece entre o sagrado e o profano. Esse retorno às origens é uma viagem fantástica, é a possibilidade de readquirir as forças que jorraram nessas mesmas origens. A finalidade de recuperar um tempo forte, um tempo primordial e estruturar o homem na sua contemporaneidade, reiterado ao mito, ao aspecto litúrgico do rito,daquilo que transforma e transborda, da palavra que deve ser lida e não proferida, do subjetivismo aliado à ciência, da experiência sensível , ritualizada. E, enquanto o tempo, que é profano e linear e, por isso irreversível, pode-se se recorrer ao sagrado, ao ad infinitum, num processo de reversibilidade capaz de voltar e compreender e se apropriar da virtuosidade de um tempo, num movimento circular, que liberta o homem de um tempo morto, de um presente de inércia, dando-lhe segurança para ser aquilo que ele é: humano, com suas virtudes, suas mazelas, seus sentimentos bons ou ruins.
A modernidade repensada é um tempo de estado de espírito, de consciência política, de imagens coletivas impregnadas de sentido, de uma pluralidade complexa, de rompimento com ideologias dominadoras, hegemônicas, baseadas no exercício do poder aracaico e desestruturante.O mundo continuará trágico, os conflitos não deixarão de fazer parte do quotidiano, a política, forma profana da religião, continuará irritantemente corrosiva, invasiva, medíocre.
Há, na perspectiva pragmática uma fonte de subjetividade que encontra prazer na felicidade partilhada, às vezes até mesmo na crueldade coletiva. E na urgência da estruturação de uma nova ética, um vínculo que se conforta pela partilha dos afetos, pelo hedonismo, pelo sentimento de pertencimento ao cosmos e ao outro enquanto sujeito.












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