REFLEXÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO

 

Rocha, Douglas Diego Palmeira

 

1.    Educação como fenômeno inerente ao ser humano

É fato que “ninguém escapa da educação” (Brandão, 1993, p. 7), visto que esta se faz intrínseca e imersa no quotidiano de todo e qualquer ser humano, afinal, todo homem e toda mulher atravessou – e atravessa durante toda a sua existência – um processo (ou vários processos) educativo.

É por muitos conhecido o fato dado a partir da assinatura do tratado de paz dos governos da Virgínia e Maryland, nos Estados Unidos, com os Índios das Seis Nações, recordado também por Brandão (1993), no qual, após tal tratado, os governantes enviaram, através de correspondência aos índio, o convite para que alguns jovens da tribo pudessem estudar nas escolas dos brancos. E a resposta dos nativos muito nos é útil e atual, quando dizem:

"Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. [...] Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos aos saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa.[...] Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou conselheiros. [...] Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão, oferecemos aos nobres senhores de Virgínia para que nos envie alguns de seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens." (BRANDÃO, 1993, p. 8-9)

 É claro que os índios das seis nações não escreveram as palavras acima ingenuamente, e até “a usaram” em seu escrito com ironia, como artifício de linguagem a favor de sua persuasão. Defenderam, portanto, sua concepção de educação, deixando claro – e têm razão – que cada nação tem sua concepção e aplicação do processo educativo; e mais, dentro de cada localidade geográfica, diferentes grupos têm diferentes educações (como no caso do Brasil, onde não há uma única educação, onde todo o processo educativo, não só o escolar, do Amazonas é diverso em relação ao de São Paulo, que também o é do estado do Rio Grande do Sul), como reflexo de sua identidade antropológica, social e cultural, e como instrumento de formação do cidadão do grupo em questão, do continuador, daquele que, sabendo-a e vivendo-a, transmitir-lhe-á aos que virão, às futuras gerações.


2.    Educados, “mal educados”, “sem educação”...

Há que se pensar, portanto, se a educação sistemática por si só implica que tal processo tenha sido satisfatório, de acordo com as peculiaridades de cada sociedade. O que nos leva a afirmar que nem todo aquele que “é educado” é, por via de regra, educado para a vivência em seu grupo.

Isso tudo leva à questão do debate por uma educação de qualidade: se este ou aquele processo educativo não forma o cidadão para a sociedade na qual insere-se, ou que seja capaz de interagir com seus semelhantes na igualdade presente na diversidade, pode-se dizer que fora educado pelo processo que lhe é inerente, mas que não deixa de ser um indivíduo “mal educado” ou “sem educação”.

3.    Força ideológica da educação

Eis nossa reflexão pertinente quanto à força ideológica da educação, pois ela é um forte, senão o maior, instrumento para a dominação de um povo. Sabemos que um povo, ao impor a outro sua educação, sufocando-lhe sua cultura, imprime-lhe um novo modo de olhar, de saber e de fazer; o dominador, por seu processo educativo, acaba por forçar o dominado a pensar e fazer do que jeito que o primeiro espera, de modo que o segundo não pode mais encarar o saber-fazer do dominador como errôneo.

Brandão (1993), ao tratar desta questão afirma:

“não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é seu único praticante... [...] a educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades. E esta é a sua força.”   (p. 9; 11)

Assim sendo, a escola deve ocupar o papel de formadora sistemática em completude dos saberes já trazidos pelo educando, de modo a não uniformizar-se e rotular o processo educativo dos diversos povos atendendo aos interesses de uma única parcela. Justamente por isso que a educação é um dos instrumentos nos quais a discrepância econômico-social permanece em nosso país, pois até a educação escolarizada classifica a elite do restante da população, e forma, em sua maioria pública, aqueles que a manterão no poder, uma classe operária em categoria de mão-de-obra, formada não para pensar e criar, mas para obedecer e manter no poder a elite, sem questioná-la.


4.    Educação no contexto da globalização

Por outro lado, vale ressaltar que a educação insere-se neste contexto globalizado e neoliberal da sociedade pós-moderna. O importante para o mercado é o saber-fazer, e não compreender o porquê de se fazer, e como se chegou a tal, se o preço final será justo, se a grande parcela do coletivo terá acesso a tal material, se alguém fora ou não explorado durante a fabricação.

Somos produtos de um sistema escolar excludente, e excluímos também nossos educandos, que não podem fugir à regra. Eles não podem avaliar, pois quem avalia é o professor, e ainda avalia apenas o que ele sabe reproduzir das “verdades” que sobre eles descarregamos. Não podem julgar, pois não podem mudar o estabelecido. E não podem tirar suas conclusões, pois nem elas as pertencem; devem apropriar-se das conclusões impostas pelo mercado e pela mídia. Produzir não. Reproduzir sempre.

Em outras palavras:

“...o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação ­– nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa – interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta é a sua fraqueza.”   (Brandão, 1993, p. 12)

A educação precisa, então, oportunizar sistematicamente a aplicação de um conhecimento crítico, incentivando e provocando o questionamento e reflexão por parte do educando, ao contrário da realidade que vem-se solidificando: um descarregamento de informações lineares e desconexas, que fornecem apenas os subsídios necessários para a “base da pirâmide social” vigente.

Transparece-se, contudo, educação do vencido, do estagnado, daquele que, desde seus primeiros passos da colonização, recebera de forma “bancária” uma educação que não era sua, que não era nem de sua gente e nem para a sua gente, que atendia apenas, no passado, aos interesses de seus colonizadores, e que hoje atende aos interesses dos que regem o mercado, a imprensa e moda, uma educação que assume-se como o “símbolo social dos privilégios e do poder dos membros e das camadas dominantes” (cf. Ferandes, 1964, p. 414).

Recorrendo também a Piletti e Praxedes (2010, p. 64), verificamos:

"A hegemonia de uma classe social é a sua capacidade de dirigir política e culturalmente uma sociedade, garantindo o consentimento ou a submissão dos grupos dominados, e ela é exercida por meio do trabalho educativo realizado em igrejas, sindicatos, meios de comunicação, chamados atualmente de mídias, e escolas, que difundem a ideologia ou concepção de mundo dos grupos dirigentes das sociedades modernas do Ocidente."


5.    Papel do professor comprometido

Todavia, não é esta a única educação possível. Há ainda homens e mulheres comprometidos com a gênese do educar, que desejam formar cidadãos éticos, e não apenas estéticos; cidadãos que não apenas exerçam presença, mas que façam-se presentes e atuantes, que promovam a dignidade do ser humano, e que trabalhem e produzam em favor do coletivo, não dos interesses mercantilistas e lucrativos da minoria do poder.

Se a globalização encurta as distâncias do mercado e da educação, por outro lado, amplia o abismo entre quem consome e quem não tem condições de fazê-lo plenamente, classificando quem é ou não “gente”, quem pode ou não estar no mundo como indivíduo ou mera “mão-de-obra”. Essa tentativa de sobrevida do capitalismo, e até de um neoliberalismo, com caráter taylorista e até totalitarista classifica e exclui, torna dispensável e descartável os que não atendem às regras do mercado e do consumo.

Ainda expõe Brandão (1993, p. 34):

"Onde um tipo de educação pode tomar homens e mulheres, crianças e velhos, para torná-los todos sujeitos livres que por igual repartem uma mesma vida comunitária; um outro tipo de educação pode tomar os mesmos homens, das mesmas idades, para ensinar uns a serem senhores e outros, escravos, ensinando-os a pensarem, dentro das mesmas ideias e com as mesmas palavras, uns como senhores e outros como escravos."

 O professor precisa ser aquele que fomenta a transformação, tendo em vista que dificilmente esta se dará em uma explosão em cadeia, mas de acordo com as pequenas e éticas ações e iniciativas. É na sala de aula, no espaço educativo, que as discussões e reflexões que desembocam na mudança devem acontecer. O professor, mediador do processo educativo sistemático, precisa ser o primeiro a acreditar na mudança, ainda que utópica, mas palpável, na medida que se torne, sobretudo através da educação, o objetivo de uma sociedade que, mais do que desenvolver-se globalmente, deseje crescer como espaço e ambiente de pessoas que desenvolvam-se, umas na relação com as outras, perpassando-se e transformando-se mutuamente. Educação como instrumento de ascensão social do social, não apenas do indivíduo; do coletivo ao invés do individual. Não seja, portanto, uma educação que deseduque, mas que educando encuque, e revoltando revolucione, de modo a construir e transformar a sociedade em espaço do social legítimo e inalienante.

Recorrendo a Martins e Weber (2010, p. 135)

"Professor passa a ser percebido como educador, intelectual orgânico das camadas populares ou trabalhador, e a escola encarada como instância de organização da comunidade."

E também a Piletti e Praxedes, 2010:

 "[...] a ação educativa pode prestar a contribuição de socializar as novas gerações para a construção de identidades de acordo com padrões éticos de convivência e solidariedade." (p. 97)

 "[...] devemos construir uma ética política de respeito às diferenças nas relações sociais dentro e fora da escola, sem preconceitos depreciativos, estereótipos negativos e sem discriminação de ninguém. O respeito à diferença se torna estratégico se tivermos como objetivo democratizar e melhorar a qualidade da vida pública." (p. 119)

 Eis, mais um vez, o objetivo de uma educação legítima e consciente: deve, abrindo mão da ideologia dominante – por mais difícil e desafiador que o seja – problematizar, fomentar a crítica, a compreensão, o debate, a construção coletiva do pensar em favor do próprio coletivo, de modo que tais atitudes possibilitem a construção de outras verdades, a verdade dos ideias libertários, de um povo que não seja apenas a base, mas o sustento da sociedade, pelo povo, com o povo e através dele.

E é claro, não há como concluir sem beber da fonte de Paulo Reglus Neves Freire, patrono da educação brasileira, quando diz: “O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da Terra’” (2011, p.16), e ainda reforça:

"Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. (...) Não posso ser professor a favor simplesmente do homem ou da humanidade, frase de uma vacuidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. (...) Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. (...) Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, (...) Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar." (FREIRE, 2011, p. 100-101)

Sem tirar os olhos do horizonte, a educação deve manter-se com os pés no chão e as mãos na massa, e perceber que, enquanto instrumento ideológico, não pode atender única e exclusivamente aos anseios de uma minoria elitista, mas tornar-se também instrumento de ascensão e igualdade.

6.    Referências bibliográficas

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. In: Coleção Primeiros Passos. 28ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

FERNANDES, Florestan. O dilema educacional brasileiro. In: PEREIRA, L.; FORACCHI, M. M. (Org.). Educação e sociedade. São Paulo: Nacional, 1964.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 2011.

MARTINS,C.B; WEBER,S. Sociologia da Educação: democratização e cidadania. In: MARTINS H. H. T. de S. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Sociologia. São Paulo: Anpocs, 2010. p. 131-201.

PILETTI, N.; PRAXEDES, W. Sociologia da Educação. São Paulo: Ática, 2010.

ROCHA, Douglas Diego Palmeira. As contribuições de Paulo Freire para a Educação Popular no contexto da globalização. Disponível em: http://webartigos.com/artigos/as-contribuicoes-de-paulo-freire-para-a-educacao-popular-no-contexto-da-globalizacao/121829/#ixzz36serXK56. Acessado em: 8 de julho de 2014.