Introdução

Este estudo é parte do trabalho de pesquisa que está sendo desenvolvido no programa de Mestrado em Educação, cujo objetivo principal é discutir acerca do projeto de Recuperação e Reforço das escolas públicas estaduais do Estado de São Paulo. Para a realização da pesquisa fez-se mister um estudo que envolve mediação, analisando a psicologia marxista de Vigotski e as possíveis distorções que ocorrem na apropriação de suas teorias, bem como o estudo da política educacional adotada desde a implantação da progressão continuada até o ano de 2006, através de legislações, discursos do poder administrativo e da prática docente dos professores que lecionam o conteúdo de língua portuguesa, integrantes do projeto no letivo de 2006. Desta forma, para entender a psicologia marxista de Vigotski, é necessário conhecer sua gênese, método e fazer uma discussão sobre as distorções existentes na revisão bibliográfica vigotskiana, oriundas de um discurso neoliberal, que comprometem flagrantemente seu entendimento.

Gênese da Psicologia Marxista

A Psicologia Sócio-Histórica de Vigotski originou-se na ex-União Soviética impulsionada pela Revolução de 1917, sendo, posteriormente um referencial para a psicologia do desenvolvimento e para a Educação.

As transformações sociais no período da Revolução Russa de 1917 foram profundas, pois estabeleceram a primeira experiência social e política socialista. O cenário proporcionado pelas transformações é o de uma sociedade que vivia uma grave crise econômica gerada pela I Guerra Mundial, submetida a um regime absolutista onde o poder centrava-se no Czar Nicolau II que mantinha a divisão e organização social em camadas rígidas, sem mobilidade social. (GARCIA, 2004)

A população empobrecida por causa do desemprego, condição originada pelos gastos da Guerra e pela falta de investimentos, mobilizou o movimento que deu origem a essa nova sociedade. (GARCIA, 2004)

Chegam ao poder as idéias do socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels na então criada União das Repúblicas SocialistasSoviéticas, liderada por Lênin até 1922, e posteriormente por Josef Stalin, o qual instaurou uma ditadura que restringiu as liberdades individuais.

A consolidação da Revolução buscou a compreensão de um novo homem, que somente uma nova concepção teórico-metodológica que atendesse à análise dos problemas de aplicação prática que emergiram nesse contexto, seria capaz de responder. (MOLON, 1999) A mudança viria com a teoria sócio-histórica desenvolvida por Vigotski e seus seguidores.

A principal barreira para o surgimento de uma nova psicologia a ser transposta era com relação ao método, pois se carecia de um método único para a compreensão dos fenômenos, situação que ainda persiste atualmente com os confrontos metodológicos tentando inserir seus pressupostos como sendo universais.

Vigotski direcionou seu interesse à Psicologia e liderou um grupo de cientistas orientados para uma análise histórico-crítica da situação da psicologia na Rússia e no resto do mundo, que até então não se preocupava com os processos psicológicos superiores[1]. A nova abordagem teórica proposta por Vigotski buscava contribuir para Psicologia de modo a superar as tradições positivistas[2].

Para Vigotski (cit. in OLIVEIRA, 2003, p.23), o homem não se preocupou com a transformação do homem apenas biologicamente como até então faziam alguns pesquisadores com análises que partiam de princípios botânicos ou zoológicos. O desenvolvimento das funções psicológicas superiores, não se dá de forma estanque, mas contextualizada. O homem se transforma biologicamente num processo sócio-histórico.

Segundo a teoria Sócio-histórica, os fenômenos do mundo psíquico não são naturais do mundo psíquico, mas fenômenos que vão se construindo conforme o homem atua no mundo e se relaciona com outros homens.

Era preciso superar os modelos existentes de estudo de psicologia e para tanto buscar um caminhoque estudasse o homem e seu mundo psíquico como uma construção histórica e social da humanidade.

Luria (cit. in Vasquez :2006) mostra o entusiasmo e reação às abordagens tradicionais que denomina mentalistas e naturalista :

Para superar callejones sin salida, se debía acabar con la robinsoniana psicológica de la psicología mentalista y naturalista. La solución real del problema del desarrollo de las funciones mentales superiores se halla en la premisa fundamental de que el hombre es un ser social, un producto de la historia social y sujeto activo de las relaciones sociales… La existencia de la relación social del hombre con el mundo externo debe ser considerada como la fuente básica de las más elevadas formas de conducta consciente, no tan sólo en su contenido sino también en sus formas de existencia (Luria, 1979, p.30)

O Materialismo Histórico

A Psicologia Sócio-Histórica teve seus fundamentos no marxismo adotando como filosofia, teoria e método o materialismo histórico. Partindo da filosofia alemã de Hegel e Feuerbach é que podemos entender as construções teóricas de Marx e Engels.

Segundo Spindel (1983:31):

A dialética hegeliana afirma que cada conceito possui em si o seu contrário, cada afirmação, a sua negação. O mundo não é um conjunto de coisas prontas e acabadas, mas sim o resultado do movimento gerado pelo choque destes antagonismos e destas contradições. A afirmação traz em si o germe de sua própria negação (tese X antítese); depois de se desenvolver, esta negação entra em choque com a afirmação e este choque vai gerar um terceiro elemento mais evoluído, que Hegel chamou de "síntese" ou "negação da negação.

Feuerbach se opõe a Hegel, pois para ele o homem de forma consciente cria as idéias as quais podem ser explicadas a partir do homem, afirmando inclusive que Deus é fruto da criação humana. (GARCIA, 2004)

Com base nas contribuições desses dois filósofos alemães é que Marx elabora sua própria teoria, considerando a dialética de Hegel, que fora desprezada por Feuerbach, porém passando-a do plano das idéias para o plano material.

Conhecendo o materialismo histórico de Marx, não é difícil perceber a influência que esta teoria exerce nos estudos realizados por Vigotski. Apoiado na dialética materialista, Vigotski desenvolve um método e passa a levantar hipóteses a respeito do desenvolvimento das funções superiores do homem.

As apropriações

A revisão literária do pensamento de Vigotski tem revelado diferentes interpretações que muitas vezes descaracterizam suas bases teórico-metodológicas. Desta forma, criou-se um questionamento polêmico quanto a Vigotski ser ou não marxista devido a distorções de seus fundamentos ou traduções omissas e equivocadas. (TULESKI: 2002)

De fato, as imposições políticas do partido comunista na Rússia e o governo de Stalin marcado pela violência em nome de uma proteção ao socialismo dificultam a situação dos psicólogos soviéticos que se viam tolhidos de sua liberdade para pesquisar. A imposição do governo fez com que todos adotassem na realidade a reflexologia camuflada pela teoria marxista. (COLE, cit. In TEIXEIRA, 2004:226).

A suposta preocupação com a clareza dos conceitos, também podem acarretar em distorções da teoria de Vigotski, até mesmo considerando a importância que o próprio Vigotski deu ao significado das palavras em relação ao seu contexto, originou traduções que omitiram reflexões marxistas em seus textos.

No prefácio de A Formação Social da Mente, o desprezo às reflexões marxistas fica flagrante nas palavras dos próprios tradutores:

O leitor não deve esperar encontrar uma tradução literal de Vygotsky, mas, sim, uma tradução editada da qual omitimos as matérias aparentemente redundantes e à qual acrescentamos materiais que nos parecem importantes no sentido de tornar mais claras as idéias de Vygotsky. (...) Temos, ainda, perfeita noção de que ao mexer nos originais poderíamos estar distorcendo a história; entretanto, acreditamos também que, deixando claro nosso procedimento e atendo-nos o máximo possível aos princípios e conteúdos dos trabalhos, não distorcemos os conceitos originalmente expressos por Vygotsky". (VYGOTSKY,1989 :XIV-XV)

A falta de citações de Marx, Engels, Lênin, nas obras de Vigotski pode, também, ter colaborado para as distorções do pensamento dialético e histórico de suas obras. O cuidado que tinha Vigotski com a utilização da expressão psicologia marxista, não pode ser interpretado como insegurança ou hesitação de sua parte, pois entendia que a psicologia marxista estava em construção e salientava que a expressão deveria traduzir não apenas uma correspondência com o pensamento marxista, mas por enfocar os processos psicológicos como processos produzidos histórica e socialmente. (DUARTE, 2000)

Duarte (2000) opõe-se de maneira categórica às leituras neoliberais e pós-modernas dessa obra. Afirma que leituras incorporadas aos ideários pedagógicos focados no lema "aprender a aprender" acentuam a reprodução da ideologia da classe dominante no meio educacional.

Para ele, o ideário "aprender a aprender":

...reside na desvalorização da transmissão do saber objetivo, na diluição do papel da escola em transmitir esse saber, na descaracterização do papel do professor como alguém que detém um saber a ser transmitido a seus alunos, na própria negação do ato de ensinar(...) Em última instância o lema "aprender a aprender" é a expressão, no terreno educacional da crise cultural da sociedade atual.(DUARTE,2000:8-9)

Além das distorções ideológicas do pensamento de Vigotski há aqueles que costumam usar o que chamamos de ecletismo. Para esses autores não se pode defender a idéia de total antagonismo entre as teorias de Vigotski e Piaget para que não se adote uma postura dogmática, anticientífica e sem compromisso com a melhoria da prática educacional. (FACCI, 2004)

Alguns autores insistem na idéia do ecletismo, e podemos ver em publicações recentes como a de Teixeira (2004:231) que, ao falar da "filiação" de Vigotski ao marxismo, compara de forma analógica ao que escreveu o psicólogo francês Zazzo, em carta dirigida a psicólogos americanos com relação à "filiação" de Wallon. Assim, faz das palavras de Zazzo as suas com relação a Vigotski afirmando que "o fato de Vigotski ter desenvolvido sua psicologia sob a ótica do marxismo não deve ser entendido como uma filiação dogmática e ortodoxa às idéias dos filósofos materialistas dialéticos."

Não podemos rechaçar o exercício dialético presente na forma e no conteúdo dos textos de Vigotski. Tuleski (2000:5) parafraseando Duarte diz que:

Ler Vygotski, portanto, é antes de tudo admiti-lo como marxista e comunista e todas as implicações decorrentes disso. Como diz Duarte, Comete-se um grave equivoco pretender depurar a psicologia de Vygotski de seu marxismo ou afastá-lo da proposta de uma sociedade comunista:" para se compreender o pensamento de Vigotski e sua escola é indispensável o estudo dos fundamentos filosóficos marxistas dessa escola psicológica. (DUARTE,1996:78)

As leituras distorcidas do pensamento de Vigotski, talvez pela dificuldade de alguns autores, ou até mesmo por razões de convicções políticas e ideológicas, pela disseminação do pensamento neoliberal que impõe o ideário do "aprender a aprender" sob pretexto de que a aquisição do método científico é mais importante do que o próprio conhecimento já existente, acabam desprezando totalmente a criticidade e historicidade que norteiam a sua teoria. A leitura que ignora o marxismo como referencial teórico-metodológico da psicologia vigotskiana, deixa de ser crítica e passa a aderir a um pensamento fragmentado que ao invés da transformação prima pela adaptação do ser.

Referências

BOCK, Ana M. Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias; uma introdução ao estudo da Psicologia. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

DUARTE, N. Vigotski e o Aprender a Aprender: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana.Campinas: Autores Associados, 2000.

__________________. Educação Escolar; Teoria do Cotidiano e A Escola de Vigotski. 3 ª ed. Campinas. S.P. Autores Associados, 2001. 115 p.

FACCI, Marilda Gonçalves Dias. Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor?: um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. –(Coleção formação de professores)

GARCIA, Sandra Regina Rezende. Um estudo do termo mediação na Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural de Feuerstein à luz da Abordagem Sócio-Histórica de Vygotsky: um estudo teórico. São Paulo: Universidade São Marcos. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Dissertação de Mestrado, 2004.210p.

MOLON, Susana Inês. A questão Subjetiva e da Constituição do Sujeito nas Reflexões de Vygotsky. 1995. 174p. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social)-PUC. São Paulo, 1995.

__________________. Subjetividade e Constituição do Sujeito em Vygotsky. São Paulo. Educ, FAPESP, 1999.

OLIVEIRA, Martha Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. 4ª ed. São Paulo. Scipione, 1997.

TEIXEIRA, E. S. A Censura Imposta a Vigotski e seus Colegas na União Soviética entre 1936 e 1956: o decreto da pedologia. In Pauta, Pato Branco, v. II, p. 222-244, 2004.

TULESKI, Silvana Calvo.Vygotski. A Construção de uma Psicologia marxista.1ª ed. São Paulo. EDUEM, 2002.

______________________. Para ler Vygotski: recuperando parte da historicidade perdida. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 23., 2000. Caxambu. Educação não é privilégio. Anais... Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 2000. Diponível em:< http://www.anped.org.br/23/textos/2024t.PDF#search=%22tuleski%2C%20silvana%20calvo.%20para%20ler%20vygotski%22> Acesso em 20/07/2006.

VÁSQUEZ, Angie. Vygotski Y Luria.Dos Aliados, Dos Amigos, Dos Vidas:
Un Acuerdo Teórico-Práctico Sobre La Mente
Y El Protagonismo De Lo Social
. San Juan. Puerto Rico, 2006. Disponível em: http://www.psicologiacientifica.com/publicaciones/biblioteca/articulos/ar-ang_vazquez06.htm Acesso em: 15/07/2006.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

______________. Linguagem desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo. Ícone: Editora da universidade de São Paulo, 1988.

______________. Pensamento e Linguagem: tradução Jefferson Luiz Camargo: revisão técnica José Cipolla Neto. -2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.



[1] Processos psicológicos superiores são aqueles que caracterizam o funcionamento psicológico tipicamente humano: ações conscientes controladas, atenção voluntária, memorização ativa, pensamento abstrato, comportamento intencional. (OLIVEIRA, Martha Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. 4ª ed. São Paulo. Scipione, 1997).

[2] No século XVIII, Kant havia desenvolvido importantes reflexões sobre as possibilidades e limites da razão. Neste mesmo século, diferentes linhas filosóficas interpretaram o pensamento kantiano; entre elas encontra-se o Positivismo. Geralmente, o francês Augusto Comte (1798-1895) é o mais conhecido como o iniciador da corrente positivista. Todavia, do ponto de vista histórico, vê-se que as idéias positivistas já se encontravam difundidas na sociedade antes mesmo do período de tividade de Comte. É importante ressaltar que Comte recebeu influência de Turgot, Condercet e Saint-imon. (Sobre Positivismo e Educação, Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 3, n.7, p. 89-94, set./dez. 2002. Disponível em: http://www2.pucpr.br/multimidia/mestr_educacao/n_7/artigo6.pdf#search=%22palavras-chave%3A%20positivismo%22, Acesso em: 15/08/2004.)