Reescrita da História

Quando consideramos a mentalidade medieval, perpassada de perto pelos conteúdos e pelas máximas derivadas do movimento cultural ocorrido na Europa denominado de Renascimento Cultural e Científico, fica claramente difícil de acreditar que marinheiros e navegadores daquela época não estivessem impregnados com uma miríade de valores que misturavam conceitos tanto da mentalidade medieval quanto da mentalidade moderna, portanto, uma mentalidade sincrética. Prova disto é que Cristóvão Colombo, assim como tantos outros navegadores de sua época como Américo Vespúcio, Giovanni Caboto, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, quis acreditar que o Paraíso Terreno estivesse localizado em algum lugar do Oriente ou do Ocidente. É claro, diante de tantas maravilhas vislumbradas de perto por estes aventureiros europeus em terras nunca antes navegadas, matas virgens, árvores frutíferas, lagoas e rios imensos e cristalinos, brisa fresca entre tantos outros indícios de que ali se encontrava, diante dos olhos, o Paraíso Terrestre, ficava difícil de negar que aqueles indícios eram marcas evidentes daquilo que as Sagradas Escrituras denominam de Éden.1

Ora, o Éden, terra considerada como a primitiva habitação da raça humana pela Bíblia, seria um jardim paradisíaco, colocado em algum lugar da Terra por Deus no momento mesmo de seu ato de criação. Neste jardim encontravam-se várias espécies de animais, de aves, de peixes, de frutos e, principalmente, o primeiro casal humano. As intempéries da natureza não conseguiam agredir tal lugar com sua presença maléfica, o clima era sempre ameno, a brisa sempre fresca, os frutos dados pela terra paradisíaca eram capazes de alimentar para sempre os seres vivos que ali se encontravam e o esforço físico do homem não era exigido. O Éden, que fique claro, era

1 Bíblia de Jerusalém. Paulus Editora.

um Paraíso Terreal, portanto, localizado na Terra e passível de ser encontrado por destemidos desbravadores de novos mundos.

Quando se lê os versículos do Livro Sagrado, no Gênesis para ser mais específico, é possível deduzir-se que: a princípio, Deus criou o Paraíso Terreal para ser um jardim de delícias para os seres que nele habitariam. Não se sabe por que cargas d’água Deus teria colocado duas árvores frutíferas proibidas no jardim, o que por si só já colocaria em dúvida a ideia de o jardim ser de “delícias”. Especulações, porém, indicam que Deus teria feito isto para testar a fidelidade do primeiro casal de humanos. Quando o primeiro casal cometeu o pecado de deliciar-se com os frutos daquelas árvores, Deus impôs um castigo que acompanharia a humanidade por todo o sempre. Expulsou o casal do jardim e condenou o primeiro homem ao trabalho eterno para angariar o seu sustento, somente possível a partir deste momento com o suor do próprio rosto. Para a primeira mulher, o castigo foi a dor do parto. Ora, estes castigos traziam junto de si algumas marcas: trabalho, dor, procriação, elementos até então inexistentes para o primeiro casal. Enfim, Deus colocou anjos para policiar as entradas do Jardim do Éden para que os homens nele jamais voltassem a pôr os pés. Há, entretanto, especulações de que Deus teria deslocado o Paraíso para outro local, tirando-o da Terra. Assim, o Paraíso Terreno deixaria de ser Terreno e passaria a ser apenas Celestial.

Se o Paraíso passou a ser Celestial isto fatalmente tornou-o fora de alcance para os homens. Somente após a morte e depois de ter realizadas incontáveis boas ações é que o homem poderia, outra vez, pôr os pés no solo sagrado. Sendo assim, o que levaria, então, homens como Cristóvão Colombo a procurarem ainda, aqui na Terra, o Paraíso Terreal? Se estes homens já estavam impregnados com os valores e com os ensinamentos resultantes do Renascimento Cultural, por que ainda acreditar ser

possível encontrar aqui na Terra o Jardim das Delícias no qual habitaram nossos primeiros ancestrais?

Para estimular os marinheiros a arriscarem a vida em busca de terras nunca antes navegadas é bem provável que aqueles com o pensamento mais centrado falassem em Paraíso Terreal. Ora, apenas ouro e pedras preciosas podiam não ser o suficiente, dado que, se encontrados, a maior parte fatalmente iria parar nas mãos dos reis, dos nobres ou dos capitães dos navios. Mesmo com a possibilidade de contrabandear tais minérios, os pobres marinheiros possuíam pequenas possibilidades de enriquecer com tais viagens. Assim, a ideia de um Paraíso Terrestre, capaz de acabar com os sofrimentos mundanos do homem abria uma nova perspectiva: poder-se-ia encontrar tanto os ditos metais preciosos quanto o dito Jardim das Delícias em algum lugar da Terra. Somado a isto, poder-se-ia encontrar a fonte da juventude e vida eterna. Ora, com tantas promessas, valeria a pena arriscar-se um pouco em busca de tais promessas.

Os mesmos marinheiros que, ao participarem de uma viagem como aquela de Colombo, ao verem aquelas terras que, aos olhos deles, pareciam por demais com as descrições feitas do Paraíso Terrestre, fatalmente, ao voltarem para casa, para junto de seus pares, contribuíam para propagar a propaganda de que o Jardim do Éden existia, estava ainda na Terra e estava localizado no Ocidente. Qualquer pessoa mais crente, mais idólatra acreditaria nos relatos de marinheiros que viram com os próprios olhos as novas terras.

Os habitantes de tais terras viviam como, na imaginação de tais homens, deveriam ter vivido nossos ancestrais. Nus, comendo o fruto da terra, sem se esgotar na labuta do dia a dia, diferentemente dos homens da Europa. Parecia que o Inferno terrestre só existia para os europeus. Os primeiros a encontrar tais terras devem

ter procurado pelos querubins que guardavam as entradas, devem ter procurado pelas árvores proibidas, devem, ainda, ter saboreado do fruto que julgaram ser o “pomo de Adão”. Procuraram pela fonte da vida e da juventude eternas e pelos metais preciosos, afinal, enquanto homens que eram, tinham seu devido quinhão de cobiça humana correndo em suas veias.

A princípio, os homens e as mulheres encontrados na América levavam um tipo de vida muito parelho ao do primeiro casal humano, mas devido a ser em grande número (não era apenas um casal) estavam mais para os homens da Idade de Ouro dos Trabalhos e Dias de Hesíodo2 ou das Metamorfoses de Ovídio3 do que para Adão e Eva da Bíblia. Por andarem nus e não demonstrarem nenhum tipo de vergonha de sua nudez, estes homens e mulheres só podiam viver ainda na idade da inocência.

Assim, fica difícil de acreditar que homens que buscassem encontrar o Paraíso Terrestre e, após acreditarem tê-lo encontrado, pudessem de maneira tão selvagem ter atacado, impiedosamente, os habitantes da América. Salvo em poucas exceções, ou seja, no início dos contatos entre brancos europeus e índios, que por vezes foram contatos amistosos, os descobridores do então “Paraíso Terrestre” massacraram os filhos de Adão americanos e não encontraram nenhum querubim para tentar impedi-los. Teriam eles atacado de forma tão vil a imagem idônea de Adão e de Eva? Talvez alguma espécie de vingança por saberem que na Europa, o castigo divino afetava de maneira cruel os descendentes de Adão, e na América isto não acontecia? Seria somente a cobiça por metais preciosos?

Somente alguns séculos depois, após os europeus terem consagrado o domínio sobre o “Paraíso Terrestre” que era a América é que ficou patente que

2 HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. De Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1991.

3 OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Manuel Maria Barbosa Du Bocage. São Paulo: Martin Claret, 2004.

realmente o Jardim do Éden devia estar em outro lugar. Os descendentes de Adão aqui encontrados também possuíam alguma malícia. Ora, alguns comiam da carne humana, coisa abominada pelos homens da Europa já nos poemas de Homero4. Assim, só podiam ser bestas selvagens passíveis de serem tratados como tal.

Assim, a ideia de Paraíso Terrestre localizado então na América ficou para trás. Os índios americanos pagaram com a vida ou com a perda de suas terras pelo simples fato de estarem no caminho do “progresso” dos europeus. A visão do Paraíso na América não mais atraía os brancos europeus, talvez ele estivesse em outro lugar.

O que fica de tudo isto é que aqueles homens, quase todos desbravadores de novos mundos, tiveram uma chance de participar da construção da História (no caso, da História da América). Muito se especulou se não poderiam ter sido os chineses ou os árabes. Ambos os povos reuniam algumas das condições mesmas que deram aos portugueses o pioneirismo em tal empreendimento. Outra especulação foi a de que a América não fora “descoberta”, mas invadida ou até mesmo inventada. Ora, havia sim especulações da existência de terras incógnitas a ocidente das Colunas de Hércules desde a Antiguidade. O fato é que os europeus não tinham como comprovar tal existência até pelo menos o século XI de nossa era com a especulação de uma viagem de viquingues que teriam posto os pés em terras da América, mais precisamente na Groenlândia. Depois disso, somente no século XV. Considerando-se que os índios que ainda não travaram nenhum tipo de contato com os brancos (ou quase nenhum) vivem praticamente da mesma forma que viviam seus ancestrais, é pouco provável que se a América fosse “encontrada” nos dias de hoje, os descendentes diretos dos índios aqui encontrados no século XV estivessem vivendo em cidades, conduzindo carros, viajando

4 HOMERO. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.

______. Odisséia. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

de avião etc., e isto não por incompetência da raça ou qualquer outro tipo de justificativa. Pura e simplesmente porque as necessidades deles continuam a ser supridas pela natureza da mesma maneira que o fora no passado. Salvo se o homem branco destruir toda a natureza, eles continuarão a aproveitar dos frutos dela por muito tempo ainda. Assim, é preferível acreditar que a América foi inventada pelos europeus.

Desta forma, pode-se perceber que a História lida com acontecimentos que, na maioria das vezes, estão fora do controle dos homens. Tendo como uma primeira premissa para uma noção do que é a História o tempo e o homem inserido neste tempo, pode-se especular que assim que o tempo ou o homem acabar, não haverá mais História. Tendo como segunda premissa que o homem por si só, considerando suas ações apenas individuais, não consegue fazer a “roda da História” girar, chega-se a um ponto em que necessariamente tem-se de considerar que os acontecimentos históricos são aleatórios, fortuitos, incontroláveis na maioria das vezes. Ao homem cabe apenas planejar sua ação para que, dentro do espectro de dez tentativas de sucesso ele consiga ter êxito em uma ou duas das dez vezes tentadas. Assim a roda da História poderá seguir o curso determinado por este homem que fez tal planejamento. Mesmo assim, na maioria das vezes, os planos não darão certo, porque os acontecimentos são fortuitos e incontroláveis e dependem de muitas variáveis, geralmente fora do controle de quem tenta dominá-los. Cabe ainda acrescentar mais algumas premissas.

No Universo há coisas atemporais, como as estrelas; há também coisas não históricas, como as coisas que não tem passado, sendo sempre atuais; deve-se observar que estas regras só funcionam se tomar-se o ponto de vista pura e simplesmente humano.

O tempo é linear, ou seja, corre sempre progressivamente, para frente, com o seguinte esquema: passado, presente, futuro (?); apesar disso, há momentos em

que o tempo parece parar e retornar ao princípio, dando a ideia de circularidade temporal; isto ocorre principalmente porque há acontecimentos históricos que parecem se repetir.

O destino não existe, não está traçado previamente; portanto, há uma possibilidade de mudança do “rumo por nós traçado”; entretanto, existe aquilo que se denomina “roda do destino” ou “roda da História”, que pode girar para qualquer lado e, uma vez iniciado o seu movimento de rotação, não se pode controlar aquilo que irá acontecer, dando a sensação de que as coisas já estavam predestinadas para aquele tipo de final, aquele tipo de fenômeno.

Para entender-se melhor o que foi supramencionado, devem ser levados em conta alguns exemplos: a Reforma Protestante que foi bem-sucedida foi aquela do monge Martinho Lutero, ocorrida no princípio do século XVI. Ora, vários reformadores anteriores a Lutero tentaram fazer uma reforma semelhante, mas não conseguiram. Deve-se acreditar que o monge agostiniano estava predestinado (como diria Calvino, outro reformador bem-sucedido) a ter sucesso ou deve-se pensar que, no período em que os outros reformadores (como John Huss e São Francisco de Assis) tentaram fazer as suas reformas, as variáveis históricas, os fenômenos históricos, os acontecimentos históricos não foram favoráveis e estes reformadores não poderiam ter sucesso? O pioneirismo português nas Grandes Navegações: destino ou os portugueses reuniam algumas condições históricas que nenhum outro povo reunia naquele momento mesmo? Getúlio Vargas foi considerado “O Pai dos Pobres” por brasileiros que foram contemporâneos ao seu governo. Durante o seu primeiro mandato (que foi de 15 anos), as mulheres ganharam o direito ao voto; foram criadas leis trabalhistas que favoreciam em muito os trabalhadores brasileiros, entre outras realizações deste governo. Ora, Getúlio estava predestinado a ser um bom governante merecedor de tal título ou a “roda

da História” já havia girado favoravelmente e Vargas apenas aproveitou o momento (era o homem certo, no lugar certo, na hora certa)? A história de Napoleão é particularmente interessante. Quando pequeno, participara com sua classe de um concurso cujo prêmio seria uma viagem de ida e volta até a Inglaterra. A sua classe saiu vencedora e, no dia da viagem, os alunos foram embarcados, mas Napoleão chegou atrasado. O navio naufragou e todos morreram menos Napoleão que não embarcara por causa do seu enorme azar. O resto da história de Napoleão todos já conhecem: tornou-se grande general do exército francês, tornou-se imperador da França. Ora, antes do processo revolucionário francês, era praticamente impossível para alguém da camada social à qual pertencia Napoleão ascender a cargos de alta patente no exército francês, logo jamais seria imperador da França nem que desse um golpe. Com a revolução, as transformações sociais que ocorreram foram capazes de propiciar alguns acontecimentos antes inimagináveis. Destino (aqui entendido como algo inevitável) ou Acaso (aqui entendido como algo evitável)?

Assim, a História está repleta de fatos como estes. A muitos ela faz acreditar que o Destino cumpriu seu papel de maneira formal e exitosa, digno dos aplausos de uma plateia que assiste a tudo jubilosa e sem exercer função alguma na peça. A muitos a História apontará para o Acaso da coisa. Uma torrente de variáveis na qual a plateia foi pega sem perceber, mas que de alguma maneira pode exercer alguma função.

É neste contexto que se pode pensar a (re)escrita da História. Refletindo sobre o papel do indivíduo na história pode-se refletir sobre o papel de Bismark na história da Unificação da Alemanha ocorrida nos anos de 1870-71. Ao se observar atentamente para a figura de Bismark e sua atuação naquele processo histórico, chega-se a pensar que sem ele não haveria unificação. Assim, as ações de um indivíduo,

no caso, aquelas de Bismark, teriam sim um efeito colateral imenso na tessitura da História. Em outras palavras, somente este indivíduo poderia cumprir tal papel, sem ele a peça jamais chegaria ao seu final de forma exitosa. Bismark teria de ter nascido, vivido, morado na Alemanha, senão, nada de Alemanha. Pensando-se assim, seria Destino a Unificação da Alemanha estar atrelada às ações de Bismark. Mas, pode-se pensar também que a conjuntura política e econômica da Alemanha naquele momento favorecia a emersão de uma figura-chave para exercer um papel primordial no processo histórico que a Alemanha estava vivenciando. Neste caso poderia ser qualquer um e calhou de este um ter o nome de Bismark. Pensando-se assim, seria Acaso a Unificação da Alemanha estar atrelada às ações de Bismark.

Destarte, a frase de Karl Marx vem bem a calhar:

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado.5

Observando-se as palavras do pensador alemão e levando-as em consideração, mais um exemplo vem bem a calhar. Durante o Período Regencial da História do Brasil (1831-1840) ocorreram diversas revoltas. Foi um período bastante conturbado da história brasileira. Vários movimentos rebeldes tinham cunho separatista e republicano. Se bem-sucedidos estes movimentos poderiam fragmentar o território brasileiro em diversos novos países, mas isto não aconteceu porque os movimentos ou foram derrotados pelas forças regenciais ou fizeram algum tipo de acordo com elas. Assim, o Brasil preservou seu território e suas fronteiras, contrariamente ao que havia acontecido com os vizinhos de colonização espanhola.

5 Marx, K. e ENGELS, F. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s.d. v. 1, p. 203.

A constante (re)escrita da História seria necessária porque os homens que se defrontam diretamente com aquelas circunstâncias que estão emergindo do passado são outros homens. Estes homens não tem como fazer sua história do jeito que querem, por isto tentam, de alguma maneira, influenciar o resultado da emergência dos efeitos dos acontecimentos do passado no presente. Mas ao agirem assim desconsideram que a História não é objeto desta ação verbal nesta oração enquanto os homens seriam sujeitos desta mesma ação. Ou pelo menos, nesta oração, que é a escrita da História, o papel do sujeito da oração é relegado a um segundo plano ao passo que o papel do objeto da oração passa a exercer uma função de primeiro plano e preponderante. Isto para não dizer que a História sim é o sujeito da oração e os homens o objeto.

Referências

Bíblia de Jerusalém. Paulus Editora.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. De Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1991.

OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Manuel Maria Barbosa Du Bocage. São Paulo: Martin Claret, 2004.

HOMERO. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.

______. Odisséia. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

MARX, K. e ENGELS, F. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s.d.