RECURSO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA APÓS REEXAME NECESSÁRIO E A PRECLUSÃO LÓGICA[1]

 

Clara Oliveira Almeida Castro e Maria Eduarda Costa Carneiro[2]

Christian Barros Pinto[3]

 

RESUMO

A Fazenda Pública goza de prerrogativas e privilégios especiais em relação aos particulares, dentre tais privilégios encontra-se o reexame necessário, mas tal prerrogativa não exclui o direito aos recursos previstos no Código de Processo Civil. Assim, na hipótese da Fazenda Publica deixar de apelar contra a sentença proferida, sendo o processo submetido ao reexame, o órgão publico poderá interpor recurso especial após a decisão do Tribunal? A doutrina diverge sobre esse assunto e neste trabalho abordaremos ambos os pensamentos. Para melhor compreensão será necessária uma leitura aprofundada do tema proposto.

Palavras-Chave: Fazenda, reexame, recurso, preclusão

INTRODUÇÃO

A Fazenda Pública, ao fazer parte de uma ação judicial defendendo o erário em juízo goza de garantias processuais não concedidas aos particulares, isto porque é uma prerrogativa do referido órgão público, que tem como escopo proteger o interesse público, pois o patrimônio da Fazenda Pública conforme será abordado trata-se de bem comum. Assim, ao ser proferida uma decisão desfavorável à Fazenda Pública consequentemente representará perdas ao erário, onerando a Administração Pública e frustrando o interesse público.

Dessa forma, tendo como objetivo fim proteger a supremacia do interesse público, e o princípio da isonomia do qual afere-se que é preciso tratar os iguais como iguais, e desiguais como desiguais, faz-se necessário criar institutos para proteger de forma especial a Fazenda Pública em face da parte contrária em uma ação judicial. Dentre tais institutos, será abordado neste trabalho o reexame necessário, previsto no Código de Processo Civil em seu art. 475, que pode ser entendido como uma exceção à regra de que o duplo grau de jurisdição depende da vontade da parte vencida.

Ocorre que apesar de usufruir de tais prerrogativas, a Fazenda Pública mantém o direito de fazer uso dos recursos previstos pela legislação brasileira no Direito Processual tal como os particulares. No entanto, na hipótese da Fazenda Publica deixar de apelar contra a sentença proferida, sendo o processo submetido ao reexame, há divergência doutrinária acerca da possibilidade de interposição do recurso especial após decisão do tribunal pelo órgão público. Este trabalho tem como objetivo primordial responder tal questão, e para tanto, faz-se necessária uma explicação acerca do que é a Fazenda Pública e a finalidade do reexame necessário, bem como realizar uma análise de sua natureza jurídica, posteriormente passa-se à definição de recurso especial bem como seus requisitos de admissibilidade, para então concluir se há preclusão lógica capaz de afastar a interposição do recurso especial, ou se não há preclusão lógica, e o mesmo poderá ser interposto mesmo após o reexame necessário.

1 O REEXAME NECESSÁRIO E A FAZENDA PÚBLICA

O termo Fazenda Pública é designado para representar a presença do ente de direito público interno em juízo, quer faça parte da Administração pública direta ou indireta, desde que a função precípua seja a prestação de atividades estritamente públicas, sob o regime do direito público. Hely Lopes Meirelles (2000, p. 95) reitera este conceito ao definir Fazenda Pública na legislação processual como sendo a atuação em ação judicial da Administração Pública, através de suas entidades estatais, tais como: autarquias, fundações públicas e órgãos com capacidade processual.

Leonardo José da Cunha (2009, p. 15) entende por Fazenda Pública o aspecto financeiro do Estado destinado às pessoas de direito público. .A Fazenda Pública goza então de prerrogativas e privilégios especiais em relação aos particulares, tendo como escopo proteger seu patrimônio, que pertence aos cidadãos na figura do Estado, e por consequência deve prevalecer o princípio da supremacia do interesse público, dentre estas prerrogativas encontra-se o reexame necessário.

O artigo 475 do Código de Processo Civil declara que a sentença proferida contra a Fazenda Pública e a sentença que julgar procedente, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública está sujeita ao duplo grau de jurisdição. Dessa forma, a decisão judicial só produzira efeitos após ser confirmada pelo Tribunal competente. Tal sujeição obrigatória ao duplo grau de jurisdição é conceituado como reexame necessário e consiste numa exceção à regra de que o exercício do duplo grau de jurisdição depende exclusivamente da vontade da parte vencida.

Barbosa Moreira (2008, p. 117) explica o uso do reexame necessário devido ao fato da necessidade de prevalecer a proteção dos interesses da ordem pública e não os do indivíduo, hipóteses nas quais a lei prescreve o dever de ser observado o duplo grau de jurisdição sempre que, por presunção a Fazenda Publica não tenha prevalecido na sentença. Nesse contexto, observa-se que o reexame necessário é uma prerrogativa que favorece a Fazenda Publica, porém, vale ressaltar que tal prerrogativa não exclui o direito aos recursos previstos no CPC.

Sobre a natureza jurídica do reexame necessário, uma corrente minoritária o classifica como recurso por entender que o Código de Processo Civil presume de maneira absoluta a vontade da parte de recorrer à sentença que lhe é desfavorável, com esta presunção, o juiz deve provocar a reanálise da decisão que proferiu, no qual este reexame necessário seguirá o procedimento destinado à apelação voluntária.

A doutrina majoritária, no entanto, afirma que este não se trata de um recurso, isto porque não está localizado topologicamente no art. 496 do Código de Processo Civil que elenca um rol taxativo de espécies recursais, nem em leis especiais, mas está inserido na seção que trata da coisa julgada. Nelson Nery Jr corrobora deste pensamento:

Na verdade, nem se trata de recurso, por faltarem-lhe os pressupostos de tipicidade, voluntariedade, dialeticidade, interesse em recorrer, legitimidade, tempestividade e preparo, características próprias dos recursos. (NERY, 1990, p. 65)

O instituto do reexame necessário tem então natureza jurídica de condição de eficácia da sentença, entendimento acompanhado por Alcides Mendonça Lima, Nelson Nery Jr e Orestes Nestor d Sousa (CIANI, ANO, PAGINA). A procuradora Ciani para fundamentar tal classificação cita ainda a súmula 423 do STF, ao dispor que não transita em julgado a sentença que houver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege. Desse posicionamento é possível perceber que tendo natureza jurídica de condição de eficácia da sentença, o reexame necessário tem como condão impedir que haja execução provisória da Fazenda Pública antes que tenha sido reafirmada uma decisão desfavorável ao erário, a fim de garantir o interesse público.

4 CABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL APÓS REEXAME NECESSÁRIO

Conforme dito anteriormente, o reexame necessário trata-se de prerrogativa exclusiva da Fazenda Pública em juízo, assegurado pelo artigo 495 do Código de Processo Civil. Entretanto, além deste instituto, a Fazenda Pública tem direito ainda aos demais recursos previstos na legislação vigente dispostos no art. 496 do supramencionado diploma, assegurado à todas as demais partes, quer seja Fazenda Pública, quer não. Assim, o reexame necessário não extingue o direito de dispor dos demais recursos cabíveis que porventura sejam necessários no decorrer do processo.

Neste sentido, o reexame necessário é instituído com o fito de favorecer a Fazenda Pública, de modo que foi sumulado o entendimento de que durante o reexame necessário é defeso ao tribunal agravar a condenação imposta à Fazenda Pública através da súmula 45 do STJ.

A controvérsia surge na doutrina quanto à possibilidade de interpor recurso especial pela Fazenda Pública, quando a mesma deixar de apelar da sentença proferida, sendo o processo submetido à segunda instância por força do reexame necessário e, após a decisão do Tribunal. Isto é, se há preclusão lógica, e por consequência não é possível interpor o recurso especial, ou se não há preclusão lógica sendo plenamente possível a interposição do mencionado recurso.

A primeira corrente entende que haveria preclusão lógica e portanto o ente público estaria impossibilitado de interpor tal recurso, isto com base anterior posicionamento jurisprudencial do qual entendia-se que se o ente em questão não recorreu no momento oportuno, isto é, não apresentou apelação ao tribunal de segundo grau, restaria configurada a preclusão lógica que tem como consequência o impedimento de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça. Tal corrente, por entender que o reexame necessário não possui natureza recursal, se não houve apelação anteriormente, logo não poderia ser manejado o recurso especial de forma posterior. Este é o entendimento da ministra Eliana Calmon, no julgado em 2008:

Diante da impossibilidade de agravamento da condenação imposta à Fazenda Pública (súmula 45 do STJ), chega a ser incoerente e de duvidosa constitucionalidade a permissão de que entes públicos rediscutam os fundamentos da sentença, não no momento oportuno, mas mediante a interposição de recurso especial contra o acórdão que manteve a sentença em sede de reexame necessário. (REsp 904885/SP, julgado em 12/11/2008, Min. Rel: Eliana Calmon. DJU 09/12/2008)

Para esta corrente, os privilégios concedidos à Fazenda Pública devem ser restringidos, de forma a harmonizar os institutos criados em seu benefício como é o caso do reexame necessário, com os demais valores protegidos constitucionalmente no Direito Processual Civil, como é o caso do princípio da efetividade da garantia constitucional ao acesso à Justiça, função que cabe ao STJ.

A relatora do julgado em supramencionado, rebateu o argumento de que fraudes e conluios contra a Fazenda Pública ocorrem principalmente no primeiro grau de jurisdição, levando a não impugnação da sentença no momento oportuno, não constitui motivo relevante para agastar a indispensável busca pela efetividade da tutela jurisdicional, que envolve maior interesse público, e não os interesses puramente da União, Estados, Distrito Federal e respectivas autarquias e fundações. 

A ministra afirma ainda que é irrelevante a Constituição Federal não distinguir entre a origem da causa decidida, se proveniente de reexame necessário ou não, “pois o recurso especial, como de regra os demais recursos de nosso sistema, deve preencher, também, os requisitos genéricos de admissibilidade que, como é cediço, não estão previstos constitucionalmente”, pois a Carta Magna não exige, por exemplo, o preparo ou a tempestividade, e nem por isso se discute que o recurso especial deva preencher tais requisitos. 

A segunda corrente admite a possibilidade de interpor tal recurso, optando pelo entendimento de que não há preclusão lógica. Logo, havendo prazo e interesse do ente público em dispor de tal recurso, pode o mesmo ser proposto. Conforme explicitado anteriormente a preclusão trata-se de perda ou extinção de uma atividade processual por ter sido realizado um ato incompatível com a intenção de impugnar uma sentença, para o âmbito recursal, um at incompatível com o interesse em recorrer.

No que tange à preclusão lógica na seara recursal o direito processual brasileiro prevê duas hipóteses para que ocorra a extinção do direito de recorrer: a primeira comtemplada pelo art. 502 do referido diploma que dispõe sobre a renúncia, e a segunda prevista no art. 503 que trata da aquiescência, isto é, aceitação da decisão. Tal artigo dispõe que:


Art. 503. A parte, que aceitar expressa ou tacitamente a sentença ou a decisão, não poderá recorrer. Parágrafo único. Considera-se aceitação tácita a prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer.

 

Assim, se não há renúncia que trata-se de um ato unilateral e expresso da parte, passa-se à análise de possível preclusão lógica por força do art. 503. Por uma interpretação literal deste dispositivo, é possível aferir que o parágrafo único requer a prática de um ato, logo, quando a Fazenda Pública deixa de apelar, a mesma não está praticando quaisquer ato capaz de desencadear uma anuência tácita da decisão, mesmo porque tal ato requer um agir.

A aquiescência se reparte em expressa e em tácita. É expressa a aquiescência endereçada, por escrito ou oralmente, ao órgão judiciário e através de declaração dirigida à parte contrária. O art. 503, parágrafo único, considera aceitação tácita a "prática, sem reserva alguma, de um ato incompatível com a vontade de recorrer". É, pois, conforme realçou a 4ª Turma do STJ, um ato comissivo. Resultará de fatos inequívocos e convergentes, não cabendo presumi-la. (ARAKEN, 2007, p. 173) 

 

Ora, quando a Fazenda Pública deixa de apelar, tal omissão não pode ser entendida como aquiescência tácita da vontade de recorrer, mesmo porque a matéria já seria devolvida ao Tribunal competente por força do reexame necessário. Caso houvesse interposição do recurso de apelação neste momento do processo, tal recurso tão somente acentuaria a defesa do ente público, mas não haveria quaisquer ampliação ou mudança quanto à cognição do julgamento em segunda instância. E, quando o processo é apreciado pelo Tribunal competente por força do reexame necessário, o acordão ulteriormente proferido tão somente substitui a decisão proferida em primeira instância. A jurisprudência brasileira tem se posicionado mais recentemente no sentido de que não há preclusão lógica, ao decidir da seguinte forma:

PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - REEXAME NECESSÁRIO – AUSÊNCIA DE APELAÇÃO DO ENTE PÚBLICO – PRECLUSÃO LÓGICA AFASTADA – CABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. 1. A Corte Especial, no julgamento do REsp 905.771/CE (rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 29/06/2010, acórdão pendente de publicação), afastou a tese da preclusão lógica e adotou o entendimento de que a Fazenda Pública, ainda que não tenha apresentado recurso de apelação contra a sentença que lhe foi desfavorável, pode interpor recurso especial. 2. Embargos de divergência conhecidos e providos.”(STJ. Corte Especial. ERESP 201000652941. Relatora: Min. Eliana Calmon. DJE DATA:08/11/2010)

Além disso, há de se falar que a renúncia e a aquiescência constituem atos unilaterais e voluntários aptos a extinguir a prática de um direito, que neste caso trata-se do direito de recorrer. Neste sentido, os representantes da Fazenda pública não são autorizados, via de regra, a praticar tais atos que impliquem no comprometimento de direitos ao ente público, isto porque os mesmo respondem em benefício da coletividade. Assim, poderiam excepcionalmente pratica-los, desde que munidos por uma outorga formal que conceda este poder específico, o que não ocorre nesta situação, pois não há a existência de quaisquer lei específica que conceda poderes de renúncia aos substitutos em juízo das pessoas de direito público.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Araken. Manual dos Recursos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Novo Processo Civil Brasileiro, 27ª ed., RJ, Forense, 2008.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. Vol. 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 7. Ed. São Paulo: Dialética, 2009

EDITORA SARAIVA. Vade Mecum Saraiva. Obra coletiva de autoria da Editora

Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo, Márcia Cristina Vaz dos

Santos Windt e Lívia Céspedes. São Paulo: Editora Saraiva, 11. ed. atual e ampl, 2011.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

Nelson Nery Junior. Princípios Fundamentais: teoria geral dos recursos. 1990. 

SUNDFELD, Carlos Ari e BUENO, Cássio Scarpinella (coord.). Direito Processual Público. A fazenda Pública em Juízo. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

STJ. Corte Especial. RESP 904885/SP, julgado em 12/11/2008, Min. Rel: Eliana Calmon. DJU 09/12/2008

STJ. Corte Especial. RESP 201000652941. Relatora: Min. Eliana Calmon. DJE DATA:08/11/2010



[1] Paper apresentado à disciplina de Recursos, Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Alunas do 6º período do curso de graduação em Direito da UNDB.

[3] Professor Mestre, orientador.