Recuperação Judicial e a Exigência de Demonstrações Contábeis – Antinomia jurídica aparente entre o art. 48 e o art. 51 da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Augusto Oliveira da Silva Neto Sarah Kelly Limão Introdução As empresas que pleiteiam a recuperação judicial, nos moldes estabelecidos pela Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, precisam cumprir uma série de requisitos para ter aprovado o seu pedido e poder superar a crise econômico-financeira em que está imersa, demonstrando ao juiz da causa e, principalmente, aos credores, que possui condições de superação da situação fática em que se encontra. Dentre estas condições, encontra-se a exigência de que a empresa tenha pelo menos dois anos de atividade regular para que possa apresentar requerimento de recuperação judicial (art. 48, caput) e que apresente petição inicial instruída com uma série de documentos que demonstrem a sua condição econômica, contendo as três últimas demonstrações contábeis da empresa (art. 51, II). Esta contradição entre os prazos de funcionamento e das demonstrações contábeis poderia levar ao entendimento que, em determinadas condições limítrofes, seria inviável o pedido de recuperação judicial de empresas com dois anos de atividade regular, por não haver condições de apresentação de demonstrações contábeis referentes a três exercícios. A questão será abordada neste artigo, a fim de apresentar as possíveis situações onde esta dúvida poderia surgir e demonstrar que se trata de uma contradição apenas aparente, integrando as normas jurídicas às demais normas de caráter contábil e financeiro, e constatando a necessidade de uma maior interdisciplinaridade nas causas que envolvem o direito empresarial. Antinomia Aparente e Hermenêutica Jurídica As normas jurídicas contêm comandos de conduta dentro do ordenamento jurídico. Segundo Paulo Dourado de Gusmão a norma jurídica “é a proposição normativa inserida em uma ordem jurídica, garantida pelo poder público ou pelas organizações internacionais. Coloca ainda ele, que tal proposição pode disciplinar condutas ou atos, como pode não as ter por objeto, coercitivas e providas de sanção. Visam a garantir a ordem e a paz social e internacional” (Gusmão, 1997). As normas contidas no ordenamento jurídico impõem aos seus destinatários obrigações diversas que devem ser interpretadas segundo critérios científicos e que levam à solução de possíveis colisões existentes entre comandos antagônicos. Segundo Alberto Marques dos Santos, “a interpretação do direito é a operação que tem por fim solucionar uma dada questão jurídica, mediante a compreensão clara, exata e completa da norma estabelecida pelo legislador” (Santos, 2011). A hermenêutica jurídica é a ciência que cuida da interpretação dos textos legais de forma a harmonizá-los entre si, evitando que possíveis incompatibilidades entre as normas possam causar dificuldade ou mesmo impossibilitar a fruição de direitos ou o cumprimento de obrigações. Para Norberto Bobbio: A situação de normas incompatíveis entre si é uma dificuldade tradicional frente à qual se encontraram os juristas de todos os tempos, e teve uma denominação própria característica: antinomia. (Bobbio, 1995) A antinomia jurídica é um fenômeno que se caracteriza pelo conflito entre duas proposições em que ambas não podem ser verdadeiras. Para Flávio Tartuce, “a antinomia é a presença de duas normas conflitantes, válidas e emanadas de autoridade competente, sem que se possa dizer qual delas merecerá aplicação em determinado caso concreto”. (Tartuce, 2012). A antinomia pressupõe que haja uma norma que seja verdadeira e a outra não, caso que deve ser solucionado por um dos métodos existentes quanto à hierarquia ou cronologia das normas. Quando os comandos exarados pertencem ao mesmo texto legal, surge uma antinomia aparente, uma vez que não pode haver antinomia neste caso. Segundo Santos: Não pode existir jamais antinomia entre duas normas que constem do mesmo diploma. Os artigos de uma mesma lei são todos contemporâneos, e, portanto, não podem revogar uns aos outros. Normas contemporâneas, e da mesma hierarquia, têm que ser compatíveis. Cabe ao intérprete buscar, com os instrumentos hermenêuticos, uma interpretação que concilie as normas concomitantes e aparentemente antinômicas. (Santos, 2011) No caso em apreço, a questão existente entre as duas exigências para apresentação das demonstrações contábeis, contidas no art. 48 e no art. 51, II, da Lei n 11.101/2005, configura-se como uma antinomia apenas aparente por duas razões. A uma, porque constantes do mesmo texto legal; a duas, porque é possível verificar que as regras de hermenêutica são aplicáveis ao caso e há solução perfeitamente cabível para o aparente conflito, conforme melhor explicitado em linhas subsequentes. Da Recuperação Judicial Os países de tradição econômica baseada na livre iniciativa, que se caracterizam pela as ações de seus agentes econômicos segundo uma economia de mercado, com baixa intervenção estatal e liberdade de atuação em qualquer atividade lícita e não defesa em lei, dependem em boa medida do espírito empreendedor de seus cidadãos para desenvolver as atividades que gerarão riquezas para o conjunto da sociedade em um ciclo virtuoso que alimenta toda a cadeia produtiva. Com efeito, quando uma pessoa, ou grupo de pessoas, resolve abrir as portas de uma nova empresa, em qualquer dos setores econômicos – primário, secundário ou terciário – esta medida terá efeito multiplicador, gerando empregos diretos, para desenvolvimento da atividade da própria empresa, e empregos indiretos, nos fornecedores e produtores de insumos ou matérias-primas e nos destinatários dos bens ou serviços produzidos. Ademais, a atividade empresarial – e sua consequente geração de riquezas – tem correlação direta com a arrecadação de tributos, que irão suportar os gastos estatais em manutenção da máquina pública e dos investimentos necessários nas áreas de atuação governamental, que se revertem para o conjunto da sociedade. Toda a economia do país, enfim, é afetada pelo surgimento e operação produtiva das empresas. Contudo, as empresas estão sujeitas a dificuldades advindas de fatores os mais diversos, como mudanças repentinas no mercado, entrada de novos competidores, surgimento de novas tecnologias, obsolescência do produto, desenvolvimento de formas mais eficazes de produção, ou mesmo a má gestão de seus sócios ou administradores, gerando desequilíbrios em suas contas e fazendo com que sua atuação no mercado passe a se tornar duvidosa. Estes desequilíbrios podem ser momentâneos e superados em curto espaço de tempo, quando as empresas são capazes de lidar sozinhas com as adversidades e buscar alternativas que viabilizem a situação econômico-financeira da empresa, uma vez que flutuações são previsíveis e comuns em qualquer ramo de atividade, havendo, normalmente, salvaguardas estabelecidas nas estratégias de qualquer empresa a fim de superar estes momentos. Mas, em alguns casos, as adversidades se tornam insuperáveis e a empresa não consegue mais fazer frente aos seus compromissos, gerando um acúmulo de obrigações insolvidas e gerando temor generalizado quanto à solvabilidade das obrigações futuras. É dentro deste contexto que a legislação pátria cuida do instituto da recuperação judicial, visando a preservação da empresa como parte do reconhecimento de sua função social (MAMEDE, 2012), onde se busca a proteção da fonte de produção, de empregos e dos interesses dos próprios credores, que se veem repentinamente privados de seus créditos e tornando a sua própria atividade duvidosa. Para que a empresa se credencie ao pedido de recuperação judicial, vários requisitos precisam ser atendidos, dentre eles o exercício regular das atividades da empresa por mais de dois anos, como se depreende da leitura do art. 48, caput, da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, demonstrando que o legislador preocupou-se com um tempo mínimo necessário para que fossem consideradas as ações da empresa como recuperáveis. Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; III – não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo; IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei. O pedido de recuperação judicial, por sua vez, deve ser apresentado em petição inicial contendo diversos documentos comprobatórios da situação da empresa, a fim de possibilitar uma leitura da sua situação financeira e possibilitando o conhecimento detalhado do quantum devido pela empresa, a expectativa de pagamentos e recebimentos e a possibilidade de recuperação da empresa. No art. 51, da Lei nº 11.101/05, constam os documentos e informações contábeis necessárias à revelação deste quadro, havendo a necessidade da apresentação de demonstrações contábeis relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o pedido, gerando uma aparente incongruência com o disposto no art. 48, uma vez que a empresa com dois anos de atividade não possuiria demonstrações de três exercícios sociais. Art. 51. A petição inicial de recuperação judicial será instruída com: I – a exposição das causas concretas da situação patrimonial do devedor e das razões da crise econômico-financeira; II – as demonstrações contábeis relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o pedido, confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e compostas obrigatoriamente de: a) balanço patrimonial; b) demonstração de resultados acumulados; c) demonstração do resultado desde o último exercício social; d) relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção; Esta aparente contradição entre os artigos da lei necessita ser analisada diante de situações possíveis de serem encontradas no mundo real, a fim de que os problemas e suas soluções encontrem o suporte normativo necessário para sua aplicação, afastando as conjecturas de caráter meramente filosófico, que não constituem objeto deste trabalho. Neste sentido, constata-se que não há qualquer orientação prática contida na Lei nº 11.101/05 quanto à forma das demonstrações contábeis que devem ser apresentadas por ocasião do pedido de recuperação judicial, restando aos estudiosos da ciência jurídica a tarefa de integrar a norma e suprir a lacuna existente com a utilização das normas contábeis utilizadas para casos que guardam semelhança com a matéria. Não havendo um modo específico de cuidar deste tema, a forma mais adequada de tratar a recuperação judicial, no que diz respeito às demonstrações financeiras, é tratá-la do mesmo modo que nos casos de cisão, fusão e incorporação, uma vez que nestas situações as empresas necessitam fazer demonstrações financeiras ditas intermediárias, que se mostram adequadas ao caso da recuperação judicial, como se vê no art. 21, da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995: Art. 21. A pessoa jurídica que tiver parte ou todo o seu patrimônio absorvido em virtude de incorporação, fusão ou cisão deverá levantar balanço específico para esse fim, no qual os bens e direitos serão avaliados pelo valor contábil ou de mercado. No mesmo sentido, dispõe a Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, estabelecendo regras para as demonstrações contábeis intermediárias, para fins de apuração do imposto de renda, nos casos de fusão, cisão e incorporação, que deverão ser apuradas na data do evento. Art. 1º A partir do ano-calendário de 1997, o imposto de renda das pessoas jurídicas será determinado com base no lucro real, presumido, ou arbitrado, por períodos de apuração trimestrais, encerrados nos dias 31 de março, 30 de junho, 30 de setembro e 31 de dezembro de cada ano-calendário, observada a legislação vigente, com as alterações desta Lei. § 1º Nos casos de incorporação, fusão ou cisão, a apuração da base de cálculo e do imposto de renda devido será efetuada na data do evento, observado o disposto no art. 21 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Ademais, a recuperação judicial guarda proximidade com a fusão, cisão ou incorporação da empresa, conforme se depreende do disposto no art. 50, da Lei nº 11.101/2005, o que leva uma vez mais à conclusão que o instrumento contábil das demonstrações intermediárias é o que se mostra mais adequado para tratar do instituto. Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: ... II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente; A exigência de demonstrações contábeis intermediárias decorre da necessidade de empresas em situação fragilizada, necessitem demonstrar sua situação no momento mais próximo possível da realidade, para que os interessados possam tomar conhecimento dos fatos e tomar decisões baseados em informações recentes, evitando prejuízos decorrentes de uma má avaliação. Feitas estas considerações, passa-se imediatamente a analisar a condição estabelecida quanto ao tempo de funcionamento regular da empresa, a fim de estabelecer as diversas possibilidades que podem ser encontradas, confrontando com o texto legal no que diz respeito a esta condição, fazendo a exegese exaustiva do seu conteúdo. Atividade Regular das Empresas Uma empresa, no Brasil, para ter existência regular precisa cumprir uma série de requisitos legais para que seja assim considerada. Dependendo do porte da empresa e do seu ramo de atividade, o rol de exigências e os locais de registro podem apresentar variações, conforme estabelecido tanto na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), como em legislação extravagante. O primeiro passo para regularização de uma empresa é o seu registro no órgão competente que poderá ser o Registro Público de Empresas Mercantis, ou o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, conforme estabelecido no art. 1.150, do Código Civil brasileiro. Somente a partir do seu registro a empresa passa a ter existência de direito, adquirindo a sua personalidade jurídica (art. 985, CC). Além do registro, as empresas necessitam ainda fazer o registro junto aos demais órgãos com interesse tributário e de posturas municipais, como a obtenção do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídicas (CNPJ), solicitado à Secretaria da Receita Federal do Brasil, a inscrição estadual (NIRE), nas Secretarias Estaduais de Fazenda e a inscrição municipal, nas Secretarias Municipais de Fazenda, além da obtenção do alvará de funcionamento, obtido na Prefeitura Municipal da cidade onde a empresa será instalada. Para os propósitos deste trabalho é importante ressaltar que a doutrina possui mais de um entendimento quanto ao início do prazo para contagem dos dois anos de regularidade da empresa, condição sine qua non para o pedido, para evitar pedidos prematuros de recuperação judicial e por ser considerado um tempo mínimo de consolidação das atividades da empresa. Enquanto José da Silva Pacheco (Pacheco, 2013) considera que o registro da empresa constitui o dies a quo de sua regularidade, o professor Gladson Mamede (Mamede, 2012) entende que esta condição é necessária, mas não suficiente para provar a regularidade da atividade da empresa, devendo ser confirmada com a comprovação da escrituração das suas atividades nos livros contábeis da empresa, principalmente no livro Diário. A despeito da controvérsia, e considerado o prazo inicial como sendo o registro dos atos constitutivos da empresa no órgão adequado, a empresa pode ter início em qualquer dia útil do ano calendário e são duas as situações vislumbradas que podem ocorrer para efeito de estudo. A primeira, que a empresa seja registrada em qualquer dia do ano, diferente do primeiro dia útil; e a segunda, justamente quando a empresa requer seu registro no primeiro dia útil do ano. Se a empresa requer seu registro no primeiro dia útil do ano terá concluído seus dois anos de funcionamento com coincidência do último dia do ano calendário subsequente. Se o registro for realizado em qualquer outro dia do ano ela terá necessariamente funcionado por três anos, sendo o primeiro incompleto, o segundo completo e o terceiro também incompleto. Para exemplificar, uma empresa com data de abertura em 1º de abril de 2012 passará a poder pedir recuperação judicial em 1º de abril de 2014, quando estará em funcionamento a mais de dois anos. Neste caso, terá funcionado durante nove meses do ano de 2012, durante todo o ano de 2013 e três meses do ano 2014, adquirindo a condição necessária a partir do início do mês subsequente. Se a empresa faz o seu registro no dia 2 de janeiro de 2012, primeiro dia útil do ano, terá completado seus dois anos de funcionamento no último dia útil de 2013, e exercido suas atividades por apenas dois anos integralmente, estando aparentemente alijada da possibilidade de pedir recuperação judicial, por não ser capaz de apresentar as demonstrações contábeis de três exercícios. Não se pode perder de vista que a Lei nº 11.101/2005 trata do período de regular funcionamento da empresa como superior a dois anos, deixando claro que a empresa deverá ter funcionado regularmente por período que extrapole os dois anos, sendo necessário para tal que aguarde o decurso de qualquer intervalo de tempo que ultrapasse os dois anos para requerer a recuperação judicial. Então, nos casos já exemplificados, a empresa que tenha realizado sua abertura no dia 2 de janeiro de 2012 poderá pedir recuperação judicial a partir do dia 2 de janeiro de 2014, enquanto que a empresa aberta em 1º de abril de 2012 poderá fazê-lo a partir de 1º de abril de 2014. A exigência de funcionamento por período superior a dois anos deve ser interpretada de forma literal, estabelecendo um intervalo de tempo que não contempla o período limite citado, excluindo a possibilidade de uma empresa que funcionou regularmente por exatamente dois anos poder pedir a recuperação judicial. Como se vê, as empresas necessitam de um período, ainda que mínimo, de funcionamento além dos dois anos para adquirir condição de requerer a recuperação judicial, restando a dúvida quanto às suas demonstrações contábeis, uma vez que a norma não trata desta especificidade mais adstrita às regras contábeis, como se verá a seguir. Demonstrações Contábeis Intermediárias As normas para elaboração de demonstrações contábeis no Brasil passaram por mudança significativa a partir da Lei nº 11.638, de 28 de dezembro de 2007, que alterou o art. 177, da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, a fim de adotar no país regras contábeis de padrão internacional, harmonizando as regras nacionais com as internacionais. Art. 177. A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência. ... § 5o As normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários a que se refere o § 3o deste artigo deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários. (Incluído pela Lei nº 11.638, de 2007). Este movimento decorre da necessidade de as empresas nacionais estarem em conformidade com os padrões estabelecidos pelo International Accounting Standards Board (IASB), do qual o Brasil é membro, que é o órgão internacional responsável por desenvolver padrões internacionais às práticas contábeis das empresas, em decorrência do processo de globalização e da internacionalização da economia e dos fluxos de capitais que desafiam a realidade econômica global e afetam diretamente a performance da gestão empresarial (Silva, Madeira, & Assis, 2004). Posteriormente, o Conselho Federal de Contabilidade elaborou a Resolução CFC nº 1.103 de 28 de setembro de 2007, que visa estabelecer normas de convergência para os padrões contábeis internacionais a serem adotados por todas as empresas nacionais, harmonizando as demonstrações contábeis nos moldes estabelecidos pelo IASB. Dentro deste contexto, as demonstrações contábeis em geral - e especificamente aquelas exigíveis para o pedido de recuperação judicial - devem seguir os padrões estabelecidos pelas normas elaboradas pelo CFC, quando será possível avaliar a situação econômica da requerente, mediante análise de sua contabilidade. É importante ressaltar que uma empresa que requer a recuperação judicial deve ser capaz de demonstrar ao juiz e aos seus credores que será capaz de sair da situação adversa em que se encontra, razão pela qual a exigência das demonstrações contábeis é forma tradicional de apresentação da situação econômico-financeira das pessoas jurídicas. A Resolução CFC nº 1.185, de 28 de agosto de 2009, cria a Norma Brasileira de Contabilidade NBC T 19.27, que cuida da apresentação das demonstrações contábeis, definindo os elementos que deverão fazer parte de sua apresentação, bem como limitando o seu alcance, excluindo as demonstrações intermediárias. 2. Esta Norma deve ser aplicada em todas as demonstrações contábeis elaboradas e apresentadas de acordo com as normas, interpretações e comunicados técnicos do Conselho Federal de Contabilidade (CFC). 4. Esta Norma não se aplica à estrutura e ao conteúdo de demonstrações contábeis intermediárias condensadas elaboradas segundo a NBC T 19.24 - Demonstração Intermediária. Contudo, os itens 13 a 35 aplicam-se às referidas demonstrações contábeis intermediárias. Esta Norma aplica-se igualmente a todas as entidades, inclusive àquelas que apresentem demonstrações contábeis consolidadas ou demonstrações contábeis separadas, conforme definido na NBC TS sobre Demonstrações Separadas e na NBC TS sobre Demonstrações Consolidadas. (Resolução CFC nº 1.185/2009). Esta norma estabelece o conteúdo das demonstrações contábeis apresentadas por qualquer empresa nacional e contêm diversas diretrizes para elaboração e apresentação das demonstrações financeiras, além de definir para cada tipo de situação a especificidade de cada termo utilizado. Por outra via, a Resolução CFC nº 1.174, de 24 de julho de 2009, criou a NBC T 19.24, que cuida da Demonstração Intermediária, contém as definições específicas para este tipo de demonstração ao estabelecer o conteúdo mínimo de uma demonstração contábil intermediária e os princípios para reconhecimento e mensuração para demonstrações completas ou condensadas de período intermediário. 4. Os termos a seguir são usados nesta Norma com os significados especificados: Período intermediário é um período inferior àquele do exercício social completo. Demonstração contábil intermediária significa uma demonstração contábil contendo um conjunto completo de demonstrações contábeis (assim como descrito na NBC TS sobre Apresentação das Demonstrações Contábeis) ou um conjunto de demonstrações contábeis condensadas (assim como descrito nesta Norma) de período intermediário. (Resolução CFC nº 1.174/2009). Quando uma empresa encerra o seu exercício social, normalmente coincidente com o ano calendário, deve elaborar as demonstrações contábeis a fim de dar conhecimento aos investidores e aos órgãos reguladores e fiscalizadores da sua situação econômica. Quando há a necessidade de elaborar demonstrações financeiras de períodos inferiores ao seu exercício social, deve fazê-lo segundo as regras das demonstrações intermediárias. Esta situação pode se dar quando a empresa necessita encerrar suas atividades, quando será fundida, cindida ou incorporada a outra empresa, ou quando pede recuperação judicial, situações estas que normalmente não coincidem com o final do seu exercício social. Não por acaso, um dos meios de recuperação judicial é justamente o pedido de cisão, incorporação ou fusão, conforme estabelecido no art. 50, inciso II, da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Uma demonstração intermediária deverá conter algumas informações obrigatórias, a fim de ser considerada dentro dos padrões estabelecidos pelo CFC, dentre elas as seguintes estabelecidas na NBC T 19.24: 5. A NBC TS sobre Apresentação das Demonstrações Contábeis define um conjunto completo de demonstrações contábeis como incluindo os seguintes componentes: (a) balanço patrimonial do período; (b) demonstração do resultado do período; (c) demonstração do resultado abrangente do período; (d) demonstração das mutações do patrimônio líquido do período; (e) demonstração dos fluxos de caixa do período; (f) demonstração do valor adicionado do período, conforme NBC T 3.7, se exigido legalmente ou por algum órgão regulador ou mesmo se apresentada voluntariamente; (g) notas explicativas, compreendendo um resumo das políticas contábeis significativas e outras informações explanatórias; e (h) o balanço patrimonial do início do período mais antigo comparativamente apresentado quando a entidade aplica uma política contábil retroativamente ou procede à republicação ou à reapresentação de itens das demonstrações contábeis, ou ainda quando procede à reclassificação de itens de suas demonstrações contábeis. A demonstração do resultado abrangente pode ser apresentada em demonstrativo próprio ou incluída dentro das mutações do patrimônio líquido. Como se vê, uma empresa que necessite, por alguma razão, apresentar demonstrações contábeis parciais, relativas apenas a uma parte do seu exercício social, deverá fazê-lo segundo as regras estabelecidas para as demonstrações contábeis intermediárias, regras estas estabelecidas a partir da harmonização do sistema contábil nacional com as regras internacionais trazidas a nós por meio de Resoluções do CFC. Mas o que é, afinal, exercício social? Exercício social, ou exercício contábil, é o espaço de tempo decorrido após o início das atividades da empresa, findo o qual as pessoas jurídicas apuram seus resultados e que pode coincidir, ou não, com o ano-calendário, de acordo como que dispuser o estatuto ou o contrato social. Como a legislação do imposto de renda exige que a apuração do resultado do exercício seja realizada ao final do ano calendário, normalmente as empresas optam por adequar seu exercício financeiro, a fim de reduzir despesas com apurações em duplicidade, uma vez que do contrário deveriam fazer uma apuração contábil no mês em que completassem doze meses de funcionamento, e outra ao final do ano calendário para fins de apuração tributária. Neste sentido, a Lei nº 7.450, de 23 de dezembro de 1985, estabelece: Art 16 - Para efeito de apuração do imposto de renda das pessoas jurídicas, o período-base de incidência será de 1º de Janeiro a 31 de dezembro, ressalvado o disposto no art. 17 desta lei. Nestes casos, as empresas que são constituídas em determinado mês do ano calendário encerram o exercício ao fim do ano de forma parcial, com as demonstrações proporcionais ao período de funcionamento e a partir do segundo ano de passam a fazer todas as apurações contábeis em períodos de doze meses, coincidentes com o ano calendário. Assim, ficou evidenciado que uma empresa para poder requerer a recuperação judicial deverá ter funcionado por pelo menos dois exercícios sociais completos e mais um período de tempo adicional, a fim de atender à exigência contida no art. 48, da Lei nº 11.101/2005, de funcionamento superior a dois anos. Ficou claro que as empresas que necessitem realizar demonstrações contábeis de períodos inferiores ao seu exercício social devem fazê-lo segundo regras de demonstrações intermediárias, que servirão para os propósitos da recuperação judicial, que são os de demonstrar aos credores e ao juiz da causa a capacidade da empresa de solver seus compromissos e efetivamente retornar ao exercício regular de suas atividades. Em forma de conclusão Viu-se neste artigo que os preceitos legais podem conter aparentes incongruências entre si, que devem ser solucionadas por meio de técnicas hermenêuticas que irão possibilitar o exercício dos direitos e deveres contidos nas normas jurídicas de forma harmônica, traduzindo os seus comandos em procedimentos úteis de solução dos conflitos. No caso em estudo, este conflito aparente entre as exigências estabelecidas para apresentação das demonstrações contábeis das empresas que requerem a recuperação judicial, de tempo de funcionamento superior a dois anos e demonstrações contábeis de três exercícios sociais, é perfeitamente sanável com a utilização das demonstrações contábeis intermediárias, segundo regras nacionais e internacionais de contabilidade. A questão levanta a necessidade de uma maior interdisciplinaridade entre a ciência do Direito e outras ciências, a fim de possibilitar não somente a utilização de técnicas e conceitos existentes em outras áreas do saber, mas para definitivamente solucionar questões de ordem prática contidas no cotidiano das empresas, que é uma das funções dos operadores do Direito que se dedicam à matéria. Foi possível perceber que a exigência de mais de dois anos de funcionamento das empresas para requerer a recuperação judicial carrega consigo uma componente de estabilização das operações empresariais antes de requerer a utilização de um instituto de tão grande importância. Da mesma forma, quando se fala em mais de dois anos de funcionamento, pressupõe-se o funcionamento integral da empresa por dois exercícios sociais integralmente e mais um período mínimo de funcionamento, que irá exigir a elaboração de demonstrações financeiras por pelo menos três exercícios, demonstrando que as exigências contidas na lei estão perfeitamente adequadas à realidade das empresas. Enfim, espera-se que o artigo possa de alguma forma colaborar para o esclarecimento de tópicos controversos do instituto da recuperação judicial, que se configura como ferramenta de ordem social, visando a preservação das empresas e dos empregos por elas gerados, estabilizando as relações econômicas e possibilitando a satisfação dos credores, possibilitando seu soerguimento a partir da adoção das medidas legalmente estabelecidas. Referencias Bibliográficas Bobbio, N. (1995). Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Conselho Federal de Contabilidade. Acesso em 02 de abril de 2014, disponível em: http://www.cfc.org.br/sisweb/sre/Default.aspx. Gusmão, P. D. (1997). Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense. Mamede, G. (2012). Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Atlas. Nascimento, C. T., Marquez, E. M., Borges, F. A., Botinha, R. A., & Lemes, S. (2011). 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