1 INTRODUÇÃO No Brasil, a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, de acordo com o artigo 170 da Constituição Federal. Conforme se deduz dos artigos 170 e 173 da Constituição Federal de 1988, a exploração de atividade econômica deve, em regra, ser exercida pela iniciativa privada e, somente em determinados casos específicos, pelo Estado, como se observa (GABRIEL, 2005): Art. 170 ? A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) Art. 173 ? Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. A atividade empresarial ocupa um papel de grande relevância para a economia do país, gerando empregos e tributos, e, na hipótese de extinção da empresa, há sempre conseqüências negativas para a sociedade, pois a empresa é, na lição de ZANOTI; MENDES (2005, p. 19) um patrimônio social: Pode-se afirmar que a empresa é um bem social, antes mesmo de ser um bem que pertence ao empresário. Em linguagem inversa, o empresário tem cotas ou ações de uma empresa que pertence à sociedade. É por isso que a empresa tem uma função social para cumprir, norma esta positivada nos textos legais principalmente a partir da promulgação da Lei n. 6.404/76, conhecida como Lei das Sociedades por Ações. Freqüentemente as empresas enfrentam dificuldades para cumprir pontualmente o pagamento de suas obrigações e atravessam crises econômico-financeiras, pois a atividade econômica sempre envolve um risco de insucesso. O atraso pode ser breve, momentâneo e superável, não ocasionando maiores problemas para a empresa. Porém, em determinados casos, ocorre verdadeira insolvência da empresa, isto é, impotência do ativo em face do passivo, assim descrita por CAMPINHO (2008, p. 121-122): Em todas essas situações pode-se dizer que o devedor empresário se encontra submerso em uma situação de crise econômico-financeira. Seu conteúdo varia desde o atraso no pagamento das dívidas, motivado por uma constante falta de caixa, de liquidez para pontualmente realizá-lo, à caracterização da insolvência, revelador da falta de força do ativo, que não é capaz de gerar recursos, ainda que tardiamente, para fazer face aos pagamentos. Em última análise, a crise econômico-financeira constitui-se em um fenômeno tradutor de um desequilíbrio entre os valores realizáveis pelo devedor e as prestações que lhe são exigidas pelos credores. Espelha, assim, sob o ponto de vista econômico, um efeito patológico do funcionamento do crédito. Essa situação de desequilíbrio patrimonial é denominada falência, em seu conceito econômico. Falência, na visão econômica, como observa LACERDA (p.11): "é a condição daquele que, havendo recebido uma prestação a crédito, não tenha à disposição, para a execução da contraprestação, um valor suficiente, realizável no momento da contraprestação". Na Idade Média, essa situação de desequilíbrio era considerada um verdadeiro delito e impunha castigos que variavam desde a prisão até a mutilação do responsável. (ALMEIDA, 2008, p. 16). Por essa razão, o instituto jurídico da falência tinha, no início, a finalidade de punir o devedor, que era tido como um fraudador, e expô-lo à degradação pública (ALMEIDA, 2008, p. 299). Mais adiante, procurou-se estabelecer uma distinção para as hipóteses de falência, classificando os devedores em bons e maus pagadores, com o objetivo de proporcionar aos primeiros oportunidade para a composição com os seus credores, através da moratória, isto é, da concessão de melhores condições ao devedor para pagamento de suas dívidas. (ALMEIDA, 2008, p. 300). A moratória veio a se transformar posteriormente no instituto da concordata, e esta, por sua vez, sofreu alterações. No Brasil, com o advento na nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005), desapareceram as concordatas (preventiva e suspensiva), surgindo um único processo chamado de recuperação judicial, que ocorre antes da decretação de falência. Sobre o novo instrumento da recuperação empresarial trata o presente trabalho. 2 CONCORDATA A concordata era o único instrumento jurídico para possibilitar a recuperação econômica do devedor, evitando a falência. Segundo ALMEIDA (2008, p. 300), tinha por finalidade "salvaguardar o devedor desventurado e honesto, e que se encontrasse temporariamente endividado, da falência." O termo falência, sob o ângulo jurídico, é utilizado para denominar um processo de execução coletiva contra o devedor insolvente. Na lição de ALMEIDA (2008, p. 17), a falência é: Processo de execução coletiva por congregar todos os credores, por força da vis attractiva do juízo falimentar. Verdadeiro litisconsórcio ativo necessário, ou seja, elo que reúne diversos litigantes em um só processo, ligados por comunhão de interesses. A concordata tinha natureza contratual, como um "acordo, entre o devedor insolvente e seus credores sobre as respectivas relações de crédito e débito, tendo por fim e por efeito evitar a falência, ou fazê-la cessar se já declarada.", conforme BONELLI (1923, p. 21). No Brasil, com a promulgação do Decreto-lei n. 7.661/45, conhecida como Lei de Falência e Concordata, a natureza contratual da concordata, que era o único meio de recuperação empresarial existente, foi substituída pela de favor judicial, que não estava mais subordinado à vontade dos credores, mas ao preenchimento de determinados requisitos legais. Foi o seguinte argumento de Miranda Valverde: Se a concordata é um favor, que a lei concede ao devedor honesto e de boa fé, injustificável é, a nosso ver, o sistema geralmente adotado de deixar ao arbítrio exclusivo da outra parte ? a maioria dos credores ? a concessão ou não desse favor. Em 09 de fevereiro de 2005 foi sancionada a Lei n. 11.101/2005, Lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária, adotando mudanças no direito falimentar brasileiro. Com vacatio legis de 120 dias, a nova lei entrou em vigor em junho de 2005, revogando a legislação anterior sobre a matéria, constante do Decreto-Lei n. 7.661/45 supracitado. A Lei n. 11.101/05 introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura da recuperação empresarial, que poderá ser realizada sob a forma judicial ou extrajudicial. Inserindo uma nova filosofia sobre o tema, pois, enquanto na legislação anterior a falência era a regra e a concordata, exceção, o novo regime privilegia as medidas que visam à tentativa de preservação da empresa e de evitar a falência. A idéia de nocividade da empresa em situação de desequilíbrio, que deveria ser retirada do mercado, deixou definitivamente de prevalecer, sendo substituída pela concepção da empresa com função sócio-econômica. Segundo ZANOTTI (2008): O diploma legal em comento contempla um horizonte jurídico que vai muito além da simples re-pactuação dos débitos sociais ? como previa a antiga Lei de Falência e Concordata -, e pugna pelo diagnóstico do perfil econômico-financeiro da empresa, pela solução das causas que ocasionaram a crise por ela vivenciada. Com o advento da nova Lei, a empresa passou a ser reconhecida como importante fator de desenvolvimento econômico nacional, cuja preservação interessa não somente aos seus sócios, mas também aos seus trabalhadores e credores. Essa missão está prevista expressamente no seu artigo 47, que dispõe: Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Dentre os princípios da nova legislação encontram-se ainda, segundo o Senador Ramez Tebet, além da preservação da empresa: 1) Separação dos conceitos de empresa e empresário; 2) Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 3) Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 4) Proteção aos trabalhadores; 5) Redução do custo do crédito no Brasil; 6) Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 7) Segurança jurídica; 8) Participação ativa dos credores; 9) Maximização do valor dos ativos do falido; 10) Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 11) Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial; 3 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL Em lugar da concordata (preventiva ou suspensiva), que desapareceram, surge o instituto da recuperação judicial ou extrajudicial, como mecanismo de recuperação da empresa em situação de crise financeira, se essa recuperação se mostrar viável, e a aceleração do procedimento destinado a decretar a falência, em caso contrário. Verifica-se, portanto, que essa reabilitação deve estar condicionada à viabilidade econômica da empresa, a ser analisada em função de alguns indícios de recuperabilidade. O devedor poderá, antes de recorrer à recuperação judicial, propor e negociar com credores um plano de recuperação extrajudicial, desde que preencha os requisitos exigidos para a recuperação judicial. Esses requisitos são, de acordo com o artigo 48 da nova Lei: Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: I ? não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; II ? não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; III ? não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo; IV ? não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei. A recuperação extrajudicial é, na verdade, um acordo entre a empresa e os seus devedores, uma tentativa de cumprimento das obrigações da empresa, sem intervenção do judiciário. Segundo ZANETTI (2008): Com a nova legislação, o empresário que propõe dilatar o prazo de pagamento de suas dívidas e pede remissão de seu débito podia ter sua falência declarada e isso não ocorrerá mais com a nova legislação, aonde os credores serão chamados extrajudicialmente para negociar seus créditos com o devedor. Não existe mais a idéia de concessão de favor legal, mas de incentivo ao devedor para apresentar proposta para superar a crise e preservar a unidade produtiva, e de autonomia dos credores para aceitar a proposta formulada pelo credor, privilegiando a autonomia contratual privada. Nos ensinamentos de PERIN JUNIOR (2008), a recuperação extrajudicial é importante também por: dar maior amparo e proteção jurídica aos acordos informais que são cada vez mais comuns entre grandes empresas e instituições financeiras, proporcionando a redução dos custos de transação e, por conseqüência, conferindo maior transparência e segurança com a possibilidade de homologação judicial do plano de recuperação que resulte dessas negociações. Assim, o procedimento prévio extrajudicial de composição entre a empresa e seus credores, que era, na vigência do Decreto-lei n. 7.661/45, um ato passível de decretação de falência, passou a ser admitido legalmente como forma de prevenção da falência, que pode ser utilizada antes do procedimento judicial. 4 RECUPERAÇÃO JUDICIAL Sendo inviável a recuperação extrajudicial, o empresário devedor poderá requerer a recuperação judicial, desde que atenda aos requisitos elencados no art. 48 supracitada. O Juiz deverá verificar se restaram atendidas os referidos requisitos, mediante análise da documentação apresentado pelo devedor. No prazo de 60 dias, contados da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, o devedor deverá apresentar um plano detalhado de recuperação. Esse plano deve consistir em uma proposta concreta a ser apresentada pelo empresário para se recuperar e pagar seus credores, podendo, para tanto, utilizar-se dos meios previstos no artigo 50 da referida Lei, dentre eles a concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações. Pode também constar do plano de recuperação qualquer outro meio viável e adequado para superação da crise, pois, conforme se deduz da expressão "dentre outros", o rol de medidas contidas no mencionado artigo é exemplificativo e não taxativo. Se houver objeções ao plano, o juiz convocará a Assembléia Geral de Credores para deliberar a respeito, que pode adotar uma das seguintes posições, nos termos do artigo 56: a) aprovação do plano, com o que o juiz o homologará; b) rejeição do plano, o que acarretará a falência da empresa; c) alteração do plano, desde que haja concordância do devedor e não De acordo com o § 1º do artigo 59, a decisão judicial que conceder a recuperação judicial constituirá título executivo judicial (art. 59, § 1º). Durante o procedimento de recuperação judicial, em regra, o devedor ou seus administradores permanecerão na condução da empresa, conforme artigo 64. Durante o período de dois anos, a partir da referida decisão, o devedor permanecerá em recuperação judicial até que sejam cumpridas as obrigações nele previstas com vencimento dentro desse período. Ocorrendo o descumprimento dessas obrigações, o procedimento será convertido, de recuperação em falência, tudo conforme artigo 61 da nova lei. Porém, se as obrigações forem cumpridas, o juiz decretará, por sentença, o encerramento da recuperação judicial. Esses são recursos para salvar uma empresa viável, revertendo uma situação financeira desfavorável e possibilitando maiores perspectivas de manutenção da empresa e favorecendo a economia brasileira. 5 CONCLUSÕES a) a livre iniciativa é fundamento da ordem econômica no Brasil; b) a atividade empresarial é de grande relevância para a economia, pois gera empregos e tributos; c) a empresa tem uma função social e é considerada, por isso, um patrimônio de toda a sociedade; d) as empresas, às vezes, enfrentam problemas que comprometem a sua saúde financeira, pois atividade econômica possui risco de insucesso; e) essa situação de desequilíbrio é conceituada, sob o aspecto econômico, de falência, e, na Idade Média, era considerada um crime e punida com castigos; f) posteriormente, buscou-se socorrer as empresas, proporcionando a elas meios para pagamento da dívida: era a moratória, que, depois transformou-se no instituto da concordata; g) no Brasil, a concordata era o único meio jurídico para evitar a falência da empresa e tinha feição contratual; h) com a promulgação do Decreto-lei n. 7.661/45 (Lei de Falência e Concordata), a natureza jurídica da concordata passou a ser de favor judicial, pois não dependia mais da vontade dos credores, mas apenas do preenchimento de requisitos estabelecidos na lei; i) Com o advento da Lei n. 11.101/2005 (Lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária), foi revogado tacitamente o Decreto-lei citado e introduzido no Brasil o instituto da recuperação judicial; j) desapareceram as concordatas (preventiva e suspensiva), surgindo, em substituição, um procedimento de recuperação judicial; k) foram previstas medidas judiciais e extrajudiciais para preservação da empresa, em reconhecimento à função social e econômica que esta possui; l) a adoção dessas medidas depende do preenchimento, pela empresa, de requisitos estabelecidos na própria lei; m) A recuperação extrajudicial possui natureza contratual; n) Se os requisitos forem preenchidos e o plano de recuperação judicial apresentado pela empresa for aprovado pelos credores, o juiz o homologará; o) o devedor permanecerá em recuperação judicial até o cumprimento das obrigações nele previstas com vencimento dentro de dois anos; p) se vier a descumpri-las, o procedimento será convertido, de recuperação em falência; q) se forem cumpridas, o juiz encerrará o procedimento de recuperação judicial, por sentença. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a Lei n. 11.101/2005. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. BONELLI, Gustavo. Del fallimento. v. III. Milão: Casa Editrice Dott, 1923, p. 21. In: CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: O novo regime da insolvência empresarial. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: O novo regime da insolvência empresarial. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. GABRIEL, Sérgio. A Lei de Recuperação de Empresas como instrumento de desenvolvimento econômico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 157. Disponível em: Acesso em: 3 dez. 2008. LACERDA, J. C. Sampaio de. Manual de direito falimentar. 5. ed. Freitas Bastos. In: ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a Lei n. 11.101/2005. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. PERIN JUNIOR, Ecio. A dimensão social da preservação da empresa no contexto da nova legislação falimentar brasileira (Lei nº 11.101/05). Uma abordagem zetética. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1682, 8 fev. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2008. ZANETTI, Robson. A nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências: aspectos gerais. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 602, 2 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2008. ZANOTI, Luiz Antonio Ramalho; ZANOTI, André Luiz Depes. A preservação da empresa sob o enfoque da nova lei de falência e de recuperação de empresas . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1413, 15 maio 2007. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2008. ZANOTI, Luiz Antonio Ramalho; MENDES, Marcelo Dorácio. Responsabilidade dos sócios das sociedades limitadas. In: Hórus ? Revista de Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas, da Faculdade Estácio de Sá, de Ourinhos (SSN 1679-9267), ano 3, nov/2005, p. 19.