Autora: Kelly Porto Ribeiro, Radialista graduada em Comunicação Social com ênfase em Rádio e TV pela Universidade Metodista de São Paulo.

 

 
 
 

Realidade e Criação Artística no Cinema



Filme e Realidade

Na arte, a imaginação entra em contato com a realidade. No cinema, a composição gráfica, ao tornar-se móvel, torna-se também viva e o movimento permite à imagem impor-se com potência, dando uma sensação forte de realidade, a ponto de os espectadores acreditarem no filme como algo verdadeiro. As performances cinematográficas provocam no espectador reações que se confinam à expressão e à emoção. É claro que existem diferentes tipos de realidade e temos que diferenciá-las, mas, muitas vezes, o reconhecimento no filme de uma verdade, validade ou realidade mental acaba sendo tão importante ou mais do que a realidade física.

Em The Nature of Film, Kracauer atribui ao cinema a capacidade de dar uma sensação intensa de “estar presente” e mostra que um filme proporciona um senso de que os acontecimentos representados não são como na vida real. Conclui ele que a construção natural do cinema é uma “por terminar” - referindo-se à espécie de enredo que é uma fatia da vida, e não o final arrematado, concluído, inevitável da tragédia ou da comedia formalmente concluídas.

Os fatos na tela não estão acontecendo com os espectadores, mas com outras pessoas (os personagens da trama). Isso afetará mais ou menos a plateia de um filme segundo o tipo de tratamento e até que ponto o espectador se identifica com um ou outro personagem. O romancista pode adotar uma atitude distante e escrever sobre seus personagens na terceira pessoa ou escrever como se o personagem estivesse narrando em primeira pessoa. O mesmo se dá com o filme. O espectador se envolve menos com o tratamento mais indireto - por exemplo, um filme que desde o começo seja claramente apenas a filmagem de uma representação de palco ou o de um número de dança. O envolvimento é muito maior quando a câmera passa a ser um dos personagens; quando o espectador vê, juntamente com a heroína, a lâmina de uma serra circular aproximando-se cada vez mais...

 

A Natureza Concreta do Filme

         O filme é composto de imagens concretas, e isso o torna mais real. É uma espécie de escrito, mas o escrito através de imagens. Pode mesmo expressar ideias completamente abstratas, desde que sejam adaptadas às naturezas do veículo e formuladas em termos pictóricos concretos.

Comparada à maioria das outras artes, a cinematografia tem em grande proporção elementos realísticos, significativos, que lhe limitam a liberdade, mas essas cargas prosaicas podem ser aliviadas através de meios artísticos.

Quando a realidade pode ser descartada ou quando, por vários meios, pode-se impedi-la de ser tiranizante, então a imaginação do artista se torna mais fluida para se comunicar com o público, que apreende a mensagem.

 

O Papel do Artista 

Pelo o que foi dito, é evidente que a realidade de um filme existe em pelo menos dois níveis – o físico e o mental. Em ambos os níveis, o realizador de cinema convencerá melhor sua plateia se criar um todo artístico de acordo com a natureza e finalidade do filme em questão, e, até certo ponto, dentro das convenções aceitas pelo público. Poderá ser tão importante para o artista evitar destruir a ilusão, como fazer algo positivo para criá-la, e paradoxalmente isso o poderá levar a evitar um uso específico de detalhes realísticos.

O nível físico inclui elementos tais como cenário, adereços, vestuário, hábitos, maneiras, costumes, fala. Por exemplo, a crença em um filme histórico pode ser instantaneamente destruída com a intrusão de expressões de linguagem moderna (como gírias).

Há, todavia, outras circunstâncias que motivam o realizador do filme a escapar de referências limitadoras do realismo, deixando que o espectador complete o detalhe com sua própria imaginação.

No sentido também de nível físico, diferente do mencionado anteriormente, há elementos que formam o estilo do realizador cinematográfico: enquadramento, ângulo de câmera, iluminação, corte, uso da música; são características do veículo que auxiliam o realizador a concretizar suas ideias. Não se trata de ser fiel à realidade, é uma questão de escolha, arranjo, manipulação. Consideremos cada um deles em separado e chegamos à conclusão de que regras rigidamente aplicáveis, de validez universal, não podem ser formuladas, mas os artistas que obtém mais êxito são aqueles cujo estilo é adequado ao filme e ao público.

O segundo nível em que um filme existe é o mental. Neste, a realidade é de ideias, emoções, comportamento, caráter, de verdades fundamentais e universais. O  artista procura criar um todo artístico, que convencerá por sua profundeza emocional ou ideológica e por sua veracidade. Tudo dependerá da intensidade, da experiência do artista e da sinceridade de sua expressão. Os componentes físicos de um filme podem ser tratados com grande sensibilidade e estilo, mas o filme pode fracassar no nível mental.

Em arte, o nível mental, a que se poderia chamar também de o nível de imaginação, é o mais importante. Em nossa vida cotidiana, nos deixamos afetar pelo nosso ambiente mental e físico; o pensamento é que determina o que é bom ou mau. Já na arte, livres da pressão imediata do mundo físico, pendemos para o lado do mental.

Do ponto de vista do espectador, há outro motivo que torna o nível mental, ou nível de imaginação, especialmente importante em arte. Na vida comum, quase todo o tempo nossos sentidos e nosso próprio corpo estão inteiramente ocupados em atuar e reagir; nossa imaginação, se tem alguma atividade, está ocupada com raciocínio utilitário, em antecipar, servir ás necessidades da situação. No cinema, por outro lado, nosso corpo fica praticamente imóvel, e só dois de nossos sentidos, audição e visão, estão atentamente envolvidos. Mas nossa imaginação está a todo o pano: dirigida e estimulada pelo material carregado de emoção, expressamente selecionado pelo realizador e pela sua técnica de apresentá-lo. Assim, é possível ao filme conseguir apoderar-se do espírito do espectador de maneira mais forte, mais profunda e talvez mais duradoura do que a própria realidade.

Na prática, os dois níveis físico e mental, ocorrem juntos, e ambos são importantes. Para uma arte mais requintada, a perfeição da forma deve combinar-se à grandeza de concepção. É possível que a aceitação do espectador de conteúdo racional e emocional de um filme seja destruída por um mau estilo ou por inabilidade na apresentação de detalhes físicos. Mas o fracasso mental é mais complexo; não basta criar apenas um espetáculo perfeito, para que o espectador constate depois que o conteúdo é ruim.

 

O Papel do espectador

É o artista quem cria a obra de arte e procura impressionar um público, e a atividade maior é a dele. Mas o espectador não é um mero recipiente passivo. Na realidade, assistir a um filme implica, ou deveria implicar, intensa atividade sensória e intelectual. Em todas as artes o espectador deve dar alguma contribuição, também física e mental, para que seja completa a comunicação da experiência.

A percepção física do sentido não consiste apenas em receber a impressão de um estímulo interno, e sim uma atividade positiva. Quando vemos um filme, uma vida inteira de hábito de experiência visual opera para validar a ilusão na tela, e o espectador inconscientemente corrige imperfeições ou omissões da imagem assimilando-a como perfeitamente real. Assim, até certo ponto, a má qualidade da cópia ou uma trilha sonora mal inserida não perturbam tanto uma plateia cinematográfica, especialmente se grande parte de sua atenção está absorvida pelo filme.

A força da realidade de um filme depende menos da precisão de detalhe e fidelidade da imagem a seu original do que do apelo da narrativa visual ás reações do público, que variam de uma pessoa para outra. Tais variações pequenas no nível imediato de percepção podem ser maiores quando se tratam de reações intelectuais ou emocionais.

A contribuição do espectador é tão grande no nível de emoção e imaginação quanto no de percepção. Assistir a um filme desencadeia muitas e poderosas reações emocionais na plateia, que são realmente sentidas. Essa participação emocional frequentemente toma forma de identificação com um dos personagens do filme - o espectador sente emoções relacionadas às situações em que se encontra o próprio personagem.

A reação final do espectador resultará da interação e combinação de reações mentais e de sentidos. As sensoriais despertam ideias e emoções que, por sua vez, facilitarão a aceitação do espectador com relação às imagens físicas. Quando o nível de influência de um filme atinge seu máximo, a participação mental do espectador pode ser tão intensa que este se deixa absorver por completo pelo espetáculo.

 

Natureza do Filme

O cinema é capaz de proporcionar uma intensa sensação de realidade utilizando uma variedade infinita de estilos e traduzindo fantasia, formalismo, simbolismo, surrealismo e composições abstratas. A própria qualidade realística da fotografia pode ser usada para dar força especial a elementos fantásticos. É significativo que os fantasmas mais impressionantes do cinema sejam também os mais realísticos.

O espectador não espera do cinema uma ilusão física. A plateia procura acreditar não tanto no que vê, mas sim no que concebe; quanto mais o espectador, trabalhado pela arte do realizador do filme, participar de sua criação, mais forte será a realidade subjetiva. Não se trata de reproduzir objetos reais na tela, mas de criar coisas novas, resultando em uma obra de arte autêntica e envolvente.

O mundo da imaginação tem suas próprias leis e convenções, mas não são as mesmas que as do mundo físico. Ao mesmo tempo, o imaginário é tão real e importante quanto o tátil. Quando se cria, os termos são tão “reais” quanto o físico. Certamente, na arte, a imaginação é o árbitro decisivo do real.

Em todo o decorrer do processo artístico, desde a experiência real fermentando na imaginação do artista e concretizando-se em uma ideia, um argumento, um filme realizado; o que importa é o artista, utilizando não somente o dom realístico do cinema mas também suas diferenças da realidade, para um fim comum. O processo se completa com a apreciação do espectador da obra impregnada de emoção e com a sua recriação mental de uma experiência corresponde à do artista.

Descrevemos já de varias maneiras o cinema como uma profunda forma de comunicação, um meio de realização de anseios, um campo para experimento social, uma revelação do mundo físico, um meio de demonstrar verdades universais e de ilustrar a natureza humana.

O cinema é tudo isso e mais ainda. Suas funções e formas têm sido muito variadas (e continuarão sendo). Seria um esforço inútil tentar aprisionar seus recursos infinitos dentro de uma fórmula rígida; afinal, como toda arte é uma expressão e uma forma de vida.