INTRODUÇÃO:

Este trabalho tem como finalidade abordar os conceitos de Razão de Estado, bem como os conceitos de Estado de Direito e Estado de Exceção, compreendendo todo o seu curso histórico até o contexto atual.
Sabemos que vivemos em tempos cruéis onde todos nós constatamos que o Estado de Direito encontra-se em tamanha crise de legitimidade e representatividade, revelando-nos o fracasso do projeto moderno que é a democracia, liberdade, igualdade, justiça e os direitos humanos, principalmente. Isso nos revela também que a democracia moderna se confunde com um estado de exceção permanente, reacionários, com certo que de totalitarismo não eliminado.
Apresentaremos neste trabalho os pensamentos de Agamben e Norberto Bobbio, passando pelos filósofos Hobbes, Foucault, Maquiavel, Carl Schimitt, entre outros para um entendimento dos pressupostos teóricos dos citados conceitos.

1.RAZÃO DE ESTADO:


Na história do pensamento político, descobrimos numerosas antecipações parciais, às vezes muito agudas, desta teoria, mas certamente é com Maquiavel que se registra um salto qualitativo capaz de constituir o início de uma nova tradição de pensamento. O ponto de partida para o pensament indicada pela expressão Razão de Estado se situa na Idade Média e é constituído pelas instituições inspiradoras de Maquiavel, que inicia o conceito de Razão de Estado, porém não é ainda a sua exata formulação.
A reflexão e análises dos mestres da razão e dos interesses de Estado, através de italianos e franceses, na sua maioria, na segunda metade do séc. XVI e do séc. XVII foi o segundo momento significativo desta tradição. Novas determinações e aprofundamentos desse conceito e das suas implicações, e, particularmente, uma mais rigorosa distinção entre o interesse individual do príncipe e o interesse do Estado, são devidas a estes mestres. Esta doutrina depois de um determinado período atingiu enorme importância e foi de altíssimo nível de conceituação na cultura alemã do séc. XIX e primeira metade deste, com base nas contribuições de um pequeno grupo de filósofos e historiadores, entre os quais se destacam: Hegel, Ranke, Dehio, Meineck , Hintze, que contribuíram teoricamente para a doutrina da Razão de Estado, usualmente grifado com a expressão " doutrina do Estado potência". A expressão mais recente desta tradição de pensamento está na escola americana, a qual tem fomentado umas das principais correntes das modernas relações internacionais. A corrente federalista também deve ser acrescentada a estas tendências porque é uma corrente muito peculiar na tradição deste pensamento. Partindo das doutrinas fundamentais dessas tradições, o federalismo é o meio de superar a prática da Razão de Estado.
O ponto de partida relativo à superação da Razão de Estado através do federalismo encontra-se no pensamento de Kant que escreveu que, assim como pôde ser superada a anarquia existente nas relações entre os homens através da criação de uma autoridade estatal capaz de impor o respeito do direito, da mesma maneira, as relações anárquicas entre os Estados poderão ser eliminadas através da constituição de uma autoridade suprema na sociedade dos Estados e de uma federação universal, capaz de limitar a soberania absoluta, ou seja, a "liberdade selvagem".
Sendo assim, a lei da força como reguladora das controvérsias internacionais será substituída pelo domínio universal do direito, e, portanto, o comportamento segundo a Razão de Estado será eliminado. Essas teses de Kant constituem a base teórica essencial do discurso relativo à superação da razão de Estado, um discurso que os expoentes da corrente federalista desenvolveram, sobretudo em direção a uma definição mais precisa das instituições federais e ao esclarecimento dos termos concretos e das condições econômico-sociais da sua realização nas situações históricas em que se ofereceu a oportunidade da crítica rigorosa e desumana das pseudo-soluções que até agora foram cogitadas para resolver o problema da anarquia internacional.
Outro ponto deste discurso é o motivo pelo qual, fora da corrente federalista, os outros filões contemporâneos da tradição de pensamento fundada na doutrina da Razão de Estado não souberam indicar o caminho para superar a Razão de Estado. É fundamental estabelecer aqui a diferença de orientação de avaliação, pois a doutrina alemã do Estado potência, por exemplo, que é certamente, pela quantidade e qualidade de suas contribuições a mais importante expressão dos sec. XIX e XX sobre a doutrina da Razão de Estado, é caracterizada por uma orientação valorativa contrária a superação da soberania estatal absoluta e de base objetiva da anarquia internacional.
Muitos teóricos alemães do Estado potência usaram tal teoria para justificar a conservação de estruturas internas centralizadas e autoritárias como mais adequadas em relação às exigências da segurança externa do Estado e da política de potência. Outro obstáculo decisivo contra a afirmação de uma opção favorável à superação da Razão de Estado é formado pelo nacionalismo, o qual, em seu sentido mais preciso, significa a convicção de que o Estado nacional soberano do século XIX constitui um modelo insuperável de organização política. Esta certeza, mesmo quando não se traduz na adesão a uma política externa nacionalista (já que visa à opressão de outras nações) , impede de certa forma a compreensão, com certeza, dos termos do problema da superação da anarquia internacional. É exatamente pelo fato de condividir tal orientação ideológica que muitos teóricos modernos da Razão de Estado bloqueiam sua capacidade analítica no momento em que se coloca o problema da limitação da soberania nacional absoluta.
O que está mais ou menos explícito de semelhantes importações é que a anarquia internacional e a soberania absoluta dos Estados não estariam em contradição com o progresso da humanidade, se todos os estadistas respeitassem os preceitos de moderação e de cautela indicados pela doutrina da Razão de Estado e não fossem dominados pelas próprias paixões irracionais. O obstáculo ideológico levantado pelo nacionalismo está ausente, por sua vez, da corrente federalista, cujo ponto de vista valorativo tem como pólo fundamental o cosmopolitismo no sentido kantiano e a convicção de que a paz perpétua e a unificação da humanidade constituem a premissa insubstituível, para que ( minimizada a legitimização da violência do homem sobre o homem derivada da guerra e da possibilidade da guerra), possa ser realizada inteiramente a parte verdadeiramente humana da natureza dos homens, ou, por outras palavras, a autonomia da razão e a lei moral. Por este motivo que essa corrente de pensamento entendeu com o máximo de clareza a natureza da anarquia internacional e suas conseqüências e entender, também, desde o inicio, a relação entre criação dos modernos Estados nacionais e a exasperação da anarquia internacional.
As teses da doutrina da Razão de Estado, afirmam que a segurança do Estado é uma exigência de tal importância que os governantes, para garantir, são obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que consideram imperativas, quando essa necessidade não corre perigo. Sendo assim, podemos dizer que, Razão de Estado é a exigência de segurança do Estado, que impõe aos governantes determinados modos de atuar. Ela pode ser formulada quer como uma norma prescritiva de caráter técnico quer como uma teoria empírica, que comprova e explica a conduta efetiva dos homens de Estado em determinadas condições.

2.ESTADO DE EXCEÇÃO:

O conceito de Estado de Exceção é usado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben para demonstrar como os tempos não são de normalidade jurídica, com estruturas públicas ameaçadas e de abandono total dos cidadãos em meio a uma "terra de ninguém".
O Estado de Exceção foi um mecanismo jurídico criado pela Assembléia Constituinte Francesa, em 1791, sob o nome de "estado de sítio", visando à suspensão da ordem em casos extremos. Essa operação jurídica foi sendo utilizada e desenvolvida ao longo dos séculos XIX e XX pelas diversas "democracias ocidentais", ou melhor, pelos governos constitucionais, como Alemanha, Itália, Reino Unido e EUA e a recorrência a esses dispositivos na lei se davam em virtude das mais variadas situações de caos, desordem ou emergência política e econômica.
A problemática do Estado de Exceção vem se tornando o paradigma de governo, ou seja, o que seria para funcionar em casos de exceção funciona como regra geral, conforme observado pelo filósofo Giorgio Agamben. É sempre o apelo à segurança, à defesa da paz, ao combate à violência que move o poder soberano a agir fora dos mecanismos jurídicos, suspendendo o direito, a norma e a lei. " A segurança como paradigma de governo", nos diz o filósofo em questão, "não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem."
A base do pensamento sobre o Estado de Exceção de Agamben é elaborada num percurso histórico-filosófico passando por Hobbes, Arendt, Schmitt, entre outros.
Segundo Thomaz Hobbes, no estado de natureza, cujo conceito simula uma hipotética situação na qual cada homem seria seu próprio soberano, não haveria lei nem propriedade. Neste contexto, há apenas um direito natural de todas as coisas, uma vez que todos eram providos de uma liberdade para " usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, sua própria vida."
Em outras palavras, a liberdade é entendida como uma ausência de impedimentos externos e todos os homens buscariam satisfazer suas próprias aspirações e seriam governados pela sua própria razão.
Hannah Arendt elaborou uma aguçada análise a respeito do totalitarismo. No período do surgimento do estado nazista, a filósofa alemã já apontava que os direitos humanos, antes precedidos de uma aura eterna e universal, estavam desprovidos de qualquer valor e não possuíam mais legitimidade, pois na prática, não existiriam. E os estados nazi-fascistas provaram isso. O que a filósofa alemã aponta como sendo problemático no advento dos estados totalitários é a crise da esfera pública, a decadência do espaço político e o surgimento de um espaço da privação total de liberdade.
Estas relações são também tratadas por Carl Chimitt, no inicio do século XX, de uma outra ótica, como relações fundamentais de integração entre nação, povo, Estado de direito e democracia. Ao analisar a Constituição da República de Weimar, na Alemanha, o jurista alemão identifica a nação como um substrato natural de organização do Estado. Para além da definição jurídica que o conceito de Estado impõe na era moderna, a construção da nação permite a consolidação de uma comunidade política formada por um idioma, cultura e história comuns. O povo participa da produção de uma narrativa coletiva no processo de epifania da própria nação. Os laços de integração são estabelecidos na medida em que uma homogeneidade é criada e uma vontade política coletiva é afirmada. E, em certo sentido, exclui o diferente, o outro, aquele que não faz parte do corpo político. Em outras palavras, na acepção de Schimitt, o povo é fundador da democracia política porque é possuidor de uma força vinculatória. É o povo o responsável pela preservação da homogeneidade da nação e, portanto, que assegura a paz. A existência de uma identidade é uma condição a priori para a existência de direitos individuais para todos. A paz, para Schimitt, só é preservada na medida em que o corpo político é uno. Essa análise nos oferece a observação de que o povo se constitui se corporifica e se incorpora à dinâmica política. É notório que Schimitt aborda um ponto de vista etnonacionalista e que seu pensamento formou, em grande parte, as doutrinas da ideologia nazista. No entanto, sua linha de raciocínio é importante, pois nos oferece uma referência para entendermos como se vinculou a idéia entre o povo, nação e democracia: "o conceito central da democracia é o povo e não a humanidade".
Carlos Schimitt compreende o Estado de Exceção como algo inerente à própria soberania, no sentido de que o ser soberano tem o poder de declarar a exceção sempre que quiser. No seu entender, é o soberano quem decide se a norma reina de fato, é dele o monopólio da decisão, e por isso a exceção passa a ter validade. A soberania não nasce, portanto, de um contrato, mas da própria exceção, do poder de decretá-la e de recorrer á ela sempre que a paz ( homogeneidade nacional) estiver ameaçada. Este paradoxo anuncia que o soberano está no mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico, no sentido de ter o poder legal para decretar a exceção e colocar-se fora da lei ( o fato de poder declarar o fora da lei, faz o soberano estar incluído na norma- eu sou soberano pelo fato de poder declarar a exceção- ao mesmo tempo em que a norma não se aplica a ele), porque é o soberano que define a validade ou não da norma, da lei, do contrato.
Até aqui tratamos da construção teórica, como ponto de partida de Agamben para mostrar o Estado de Exceção como regime político que vem se configurando na sociedade contemporânea: o paradoxo da soberania ( exceção como regra), o investimento na vida pelo poder (biopoder), a falsa universalidade do projeto moderno (principalmente com relação aos direitos humanos e à liberdade) e a relação entre povo, nação e democracia( no sentido de que o homem só é portador de direitos enquanto é um cidadão inserido num corpo político uno e homogêneo).
Agamben através destas considerações entende o uso do Estado de Exceção como um mecanismo de suspensão da ordem jurídica como paradigma de governo, cada vez mais presente na política contemporânea. As ações do governo americano pós 11 de setembro, são reflexos de medidas excepcionais que são justificadas em nome da democracia, mas colocam em ruína a própria democracia. E talvez, o mais assustador, é que estas medidas emergenciais, causando "soluções imediatas" e visíveis em diferentes áreas como a penal, social, internacional e constitucional, acontecem no interior do estado democrático de direito e o aproxima cada vez mais dos estados totalitários.
Zizek mostra que em virtude dos ataques de 11 de setembro, por exemplo, ponderações de alguns ingredientes básicos das noções modernas de dignidade e liberdades humanas se multiplicaram em propostas de operações jurídicas que alteram o âmbito dos direitos humanos. Por exemplo, discutir mecanismos legais que legitimem a tortura a presos e inimigos políticos, como forma de proteger a democracia. Embora seja algo contrário aos chamados "valores norte americanos", a tortura poderia ser utilizada em casos de "exceção" para proteger a vida dos cidadãos americanos.
A principal característica do Estado de Exceção é abrir brechas legais para a legitimação de algo que está fora da lei, pois coloca numa zona de indistinção a norma e a sua própria violação, a transgressão da lei e a sua exceção. Este regime político convive com a suspensão do "império do direito" e leva o Estado a impor sua soberania, " sem restrições legais excessivas". Existe uma série de questionamento e problemas do âmbito do direito que envolvem uma definição mais precisa do Estado de Exceção. O filósofo Giorgio Agamben usa o conceito de Estado de Exceção para definir um regime político marcado por uma zona de indistinção entre a vida política, da esfera do direito, do ordenamento jurídico e a vida abandonada pelo poder soberano, indigna de ser vivida, sem valor político algum. A coexistência entre o Estado democrático de direito e o Estado do direito produz um espaço político de indeterminação, onde não se sabe quando funciona a violência e quando funciona o direito. O que Agamben analisa é o ressurgimento de um estado totalitário que tem um papel do soberano nesse processo. Essa questão é útil para pensar que " a violência soberana abre uma zona de indistinção entre violência e direito", porque o soberano é precisamente aquele que mantém a possibilidade de decidi-los na mesma medida em que os confunde.
Agamben constata de fato que a vida sempre foi e se torna cada vez mais, o objeto da decisão do poder. É este quem decide se ela é útil ou não. Quando Hitler justificou o holocausto, ele afirmava que era o mesmo que matar piolhos. Judeu é um ser vivente, tal como piolhos, tal como uma árvore, mas é indigna de ser vivida, porque atrapalharia a vida política, a vida germânica. Quando o jornalista brasileiro Paulo Francis disse, à época, que a chacina da Candelária era limpeza e não chacina, ou quando a polícia britânica mata um brasileiro por achar que ele era terrorista sem motivo algum, apenas alegando legitimidade em nome da segurança nacional, verificamos que a vida esta cada vez mais abandonada pelo ordenamento jurídico, pelo estado, pelos valores construtivos da modernidade ( liberdade, direitos humanos, etc.). Enfim, é como se os próprios espaços urbanos, as esferas públicas se constituíssem campos de concentração, que passar a ser o lugar onde a privação total de humanidade torna-se regra, a exceção perdura e homem pode ser assassinado em que isso se torne crime. Agamben para ilustrar seu pensamento, recorre a uma figura jurídica existente no antigo direito romano: o homo sacer, que é o indivíduo romano, julgado por um delito e abandonado, literalmente, pelo poder soberano. Nesse sentido, é considerado diferente dos demais criminosos que precisavam ser presos ou sacrificados através dos processos de rituais, para, enfim, se tornarem sagrados. Portanto, é uma vida exposta à morte, excluída e nenhum rito ou sacrifício a resgata desta condição.
Agamben apenas resgata a figura do homo sacer para ilustrar a problemática contemporânea. Para o filósofo italiano, o homo sacer é aquele excluído da comunidade religiosa e política, pois não cumpre ritos nem qualquer outro ato jurídico. Qualquer um pode matá-lo sem que seja homicídio e é uma vida despojada de todo direito, principalmente pelo fato de ser exposta, a todo instante a uma ameaça de morte pelo poder que o baniu.
O Estado de Exceção não precisa ser constitucionalmente decretado, há uma coexistência com o Estado Democrático de Direito, com certo ar de normalidade jurídica, mas o que se revela é a absoluta falta de códigos, regras e leis quando o assunto é a violência por parte do estado e por que não, a resposta violenta por parte dos "excluídos". Essa condição de violação absoluta da vida humana pode ser aplicada à realidade brasileira. A precária condição que muitos brasileiros enfrentam esta muito aquém de qualquer direito humano. Os espaços urbanos muitas vezes estão mais próximos de verdadeiros campos de concentração do que domínios públicos de fato.

3.ESTADO DE DIREITO:


A expressão, Estado de Direito foi cunhada pelo jurista alemão Robert Von Mohl, no século XIX, ao procurar sintetizar a relação estreita que deve haver entre Estado e Direito ou entre política e lei. Segundo Canotilho, por oposição a Estado de não-Direito, podemos entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito: "Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ?Estado de não direito? será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito."
De uma forma mais simples, definimos o Estado de Direito a partir da estrutura estatal em que o poder público é controlado, definido e limitado por uma Constituição. Desta forma, há uma maior jurisdicização do poder político. Também inicialmente, podemos afirmar que seus principais elementos são: a)império da lei: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar do Estado ? o Estado tem personalidade jurídica e por isso é objeto do Direito que ele próprio produz; b) separação dos poderes: significa que o Poder Executivo não pode anular o Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo Poder Judiciário ? trata-se de assegurar a interdependência dos poderes por meio da aplicação do sistema de freios e contrapesos; c) prevalência dos direitos individuais fundamentais: refere-se notadamente aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente nesse período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos.
Já no entendimento de Miguel Reale, por Estado de Direito entende-se aquele que, constituído livremente com base na lei, regula por esta todas as suas decisões. Os constituintes de 1988, que deliberaram ora como iluministas, ora como iluminados, não se contentaram com a juridicidade formal, preferindo falar em Estado Democrático de Direito, que se caracterizam por levar em conta também os valores concretos da igualdade
Bobbio entende que para melhor conceituar Estado de Direito, é preciso distinguir entre: 1. Limites dos poderes do Estado; 2. Limites das funções do Estado. Esta divisão nos ajudaria a compreender algumas diferenças entre liberalismo e Estado de Direito:
O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções. A noção corrente que serve para representar o primeiro é Estado de direito; a noção corrente para representar o segundo é Estado mínimo. Enquanto o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto entendido como legitibus solutus, o Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo, podendo-se então dizer que: o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito, e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda que nem sempre os dois movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente.
O Estado mínimo aqui definido pode ser entendido como a antítese do máximo de concentração de poder no Estado ? além da diminuição da intervenção na área econômica como temos hoje em dia. Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam, salvo o direito do cidadão de recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso ou excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito reflete a velha doutrina [...] da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula lex facit regem. Bobbio ainda irá ressaltar que o Estado de Direito é entendido como a fase em que houve a necessária positivação do chamado direito natural, mas com uma substancial defesa dos direitos individuais.Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e, portanto, em linha de princípio "invioláveis" (Bobbio,1990, pp. 18-19).
Em Bobbio, também vemos algumas diferenças entre o Estado em sentido forte (Estado Constitucional), Estado em sentido fraco (Estado não-despótico: governo das leis) e Estado em sentido fraquíssimo (a partir de Kelsen, com a máxima resolução do Estado no Direito, no sentido de que todo Estado é Estado de Direito). O mais importante, no entanto, é que Bobbio destacará os mecanismos de controle e de juridicidade do poder do Estado:
Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder. Desses mecanismos os mais importantes são: 1) o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe em última instância o Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação política; 2) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político.
As garantias institucionais dos direitos constitucionais constituem os melhores mecanismos de frenagem do poder e de garantia da liberdade ? neste caso, as garantias referentes à liberdade negativa. Como analisa Bobbio: Os mecanismos constitucionais que caracterizam o Estado de direito têm o objetivo de defender o indivíduo dos abusos do poder. Em outras palavras, são garantias de liberdade, da assim chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja nas relações entre duas pessoas, à medida que se estende o poder (poder de comandar ou de impedir) de uma diminui a liberdade em sentido negativo da outra e, vice-versa, à medida que a segunda amplia a sua esfera de liberdade diminui o poder da primeira .
Vale ressaltar que, na atual Constituição brasileira, o Estado de Direito está protegido pelas cláusulas pétreas (conforme o art. 60, parágrafo 4º da CF/88). De forma exata, está disposto que a forma de organização federativa do Estado não pode ser abolida: o dispositivo constitucional aglutina e agasalha, além da Federação, a observância integral da democracia, do Estado de Direito e a divisão dos poderes.
Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito ? a coação e a norma são insuficientes para criar o que chamaremos o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento ? a norma bilateralmente obrigatória ? em virtude do qual o próprio Estado se inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede, enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que chamaremos a ordem jurídica .O Estado ordena, o súdito obedece. A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a injustiça do Estado pelo nome de arbítrio . O arbítrio é a injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a força a seu favor, ao passo que o segundo à tem contra si. Noção puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força bilateralmente obrigatória das normas jurídicas. Acompanha, pois, a todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito.
Guardar o Direito que impede o arbítrio é o objetivo de toda cláusula de pedra. Portanto, neste caso, a proteção da cláusula pétrea é uma garantia democrática.
Da mesma forma define Canotilho, pois o Estado de Direito é um conceito altamente elaborado e dessa forma também não pode ser confundido com derivações, distorções ou deformações decorrentes do seu próprio emprego ou uso. Portanto, sendo-lhe essencial, segundo Canotilho. A divisão do poder lhe é inerente porque inibe naturalmente o arbítrio: a separação de poderes, a garantia de direitos e liberdades, o pluralismo político e social, o direito de recurso contra abusos dos funcionários, a subordinação da administração à lei constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das leis, a publicidade crítica, a discussão e dissensos parlamentares e políticos, a autonomia da sociedade civil. O que Canotilho parece acentuar aqui seriam os atributos do Estado Democrático de Direito. Em suma, como proposto por Miguel Reale, atualmente, o Estado de Direito deve ser regulado pela Democracia: daí a fórmula do Estado Democrático de Direito.
Se a lei pressupõe o Estado como legislador, temos que observá-lo, antes de tudo, como fonte de praticamente todo o direito. O Estado, porém, não é apenas fonte do direito, é simultaneamente produto do direito: deriva sua Constituição, e com isso sua existência jurídica, do direito público. Sendo essa Constituição do Estado ela própria uma lei do Estado, encontramo-nos diante da contradição aparentemente insolúvel de que o Estado tem como pressuposto o direito público e, por outro lado, o direito público tem o Estado como pressuposto. No Estado de Direito prevalece o princípio da isonomia (equiparar para buscar e auferir igualdade entre os sujeitos de direito) e de onde decorre, é claro, a própria igualdade formal (todos são iguais perante a lei), a liberdade negativa e a equidade.
Será que no Brasil, definido como República Federativa, realmente há uma estrutura jurídica mínima assentada nas bases do Estado de Direito? Deveríamos indagar, ainda, se o próprio liberalismo jurídico é realidade no país, pois é fácil inquirir até onde estão presentes idéias-fortes como os princípios da liberdade, igualdade, legalidade, isonomia e a própria ânsia pelo Direito. É fácil demonstrar que a coisa se complica se pensarmos na eficiência e na legitimidade desse Estado e do seu Direito, e não apenas na formalidade e na legalidade.
De uma maneira bem mais simples, mas sempre no plano teórico, é possível articular Estado de Direito e Estado Constitucional, no Brasil? É como se a estrutura institucional-formal do Estado de Direito no Brasil não fosse suficiente para o enraizamento dos princípios liberais da liberdade e da legalidade ,como se não tivéssemos o chão da famosa Revolução Burguesa por que pisar.
Se tomarmos como exemplo o artigo 5º da CF/88 veremos que sem o respeito ao direito adquirido de trabalhadores ou de aposentados, será válido dizer que o tal artigo 5º está em vigor? Quando se vê, infelizmente de forma regular, que pessoas são presas ou detidas por furtarem galinhas, isso se dará na vigência do Estado de Direito e estará de acordo com o artigo 5º? Quando um prefeito resolve construir um estádio de futebol em vez de escolas primárias, estará seguindo e servindo o "espírito constituinte do Estado de Direito" e do artigo 5º? .
O Estado de Direito no Brasil ainda não é realidade. Dessa forma, efetivar os preceitos do Estado de Direito no Brasil seria um procedimento revolucionário porque, neste caso, a lei teria algum significado, alcance ou eficácia universal, global, e não apenas uma declaração de que, mesmo condenando milhares à miséria absoluta, "todos são iguais perante a lei". Porém, ainda se pode indagar: neste Estado de Direito, é correto dizer que o direito à liberdade concede ao mendigo, inválido ou desvalido, miserável escolher a ponte que melhor lhe aprouver para se abrigar? Neste Estado de Direito, os pobres podem ser condenados por serem pobres? Lembremo-nos de que não é de hoje que a miséria e a pobreza são definidas como "questão de polícia" e não de política. Somente para a classe média é fundamental existir esse Estado de Direito. Por isso, o que temos consubstanciado ainda é um Estado de Direito Indireto, pois nem há fumaça de bom direito. Enfim, parece-nos que é um caso exemplar em que o Direito precisa de mais realidade, de concretude do que de definição ou de retórica.
De modo complementar, mas contraditoriamente, a estrutura jurídica do Estado de Direito é justamente o que está ausente, quando pensamos na fórmula do Estado Paralelo. Aliás, mais exatamente, os temas prementes do chamado Estado de não-Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Dicionário de Política -- Norberto Bobbio.

AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

____________. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

____________.Notas sobre a política Site rizoma.net.

http://www.rizoma.net/interna.php?id=206&secao=intervencao

HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2004.