Quatro coelhos inquietos, mas justos, trabalhavam em conjunto numa empreitada inovadora, cujo fim seria a libertação de uma ordem alienante. O início, para tanto, deveria se pautar na restauração de um direito sistematicamente negado pela raposa.

- Subam! Subam! Quero matá-los e não quero resistência.

Disse a raposa safada subindo toda pomposa para o seu pedestal, espécie de palanque sagrado da sua ação: sua toca.

A raposa esperava, nervosa e agitada, pelos coelhos. Ela odeia a pluralidade e a coelhopatia é sua marca essencial.

Ora, como pode uma raposa "governar" coelhos? Não pode, mas ela se acha nesse direito e se "esquece" que também é um coelho, um coelho um pouco mais velho e careca, na verdade.

Os coelhos entraram na toca, pegaram seus pertences e saíram calados, numa atitude libertária. A raposa considerou tal ação um atentado ao seu espaço sagrado. "Como podem seres inferiores transgredir minha visão de mundo?" – pensou.

Que fique claro: não há erro ético por parte dos coelhos, mas um erro por parte da raposa, que "esqueceu" que coelhos não precisam estar todo tempo dentro da toca.

- Paft!

Eis que se escuta um barulho na entrada da toca. Era a raposa violando um direito dos coelhos, fechando a toca e impedindo-os de sair.

Um coelho, revoltado, abriu a entrada com uma patada e a multidão ali presente se assustou. Alguns chegaram a pensar, quase oficializando um documento:

- Atentado contra o patrimônio público. Verdadeira violência!

Outros disseram:

- Coelhos baderneiros e sem ética! Que falta de respeito com a copiosa raposa!

A verdade, porém, secundarizou-se: as cobras-cegas preferiram a raposa autoritária aos coelhos libertários, instaurando um jogo de superfície, um autêntico amor líquido.

Os coelhos foram além e pensaram que esta "violência" tinha um caráter libertador.

Não dizem que uma revolução tem que ter "sangue, suor e lágrimas"? Pois, então! Esse "atentado" teve todos os elementos de uma: sangue da pata do coelho, suor na batalha e lágrimas (das cobras-cegas).

A raposa, inconformada, chamou apoio contra os coelhos "anárquicos" que, a seu ver, lutavam contra a sua liberdade historicamente conquistada.

O palco foi montado: raposas, coelhos e cobras-cegas eram as personagens desse enredo. Manter a ordem era a lei! Raposas e cobras estreitaram-se os vínculos nesse momento e tornaram a corda da alienação cada vez mais forte. O teatro desastroso estruturou um impasse: Como se libertar, também, do autoritarismo legitimado pelas cobras-cegas?

- A raposa deve ser respeitada, ela está em sua toca.

Exclamou uma cobra-cega lânguida de caráter duvidoso e de uma cegueira socialmente conquistada. Essa cobra, porém, ama o poder e diviniza uma verdadeira decadência dos valores.

A raposa torna-se uma espécie de messias e o seu culto possui características de movimento fascista: quem não partilha cegamente desse movimento deve ser excluído, difamado, isolado do centro "democrático".

Ah! Como é possível transportar um movimento humano, fascismo, para a esfera dos inocentes animais? Trata-se apenas de uma metáfora sem maiores pretensões. É tudo pensado de maneira hipotética.

O enredo continuou:

- Que picuinhas não atrapalhem a paz da toca.

Mas, parecia que nada adiantava: os coelhos estavam decididos a levarem a diante a quebra moral da raposa. Isso era um problema, pois ela ainda não era completamente dona de sua toca, ao contrário do que pensava.

Preocupados com isso, seus amigos conversaram com os coelhos, visando impedir tal reivindicação em troca duma paz entre ambos os lados (como se o erro fosse de ambas as partes).

Como é óbvio que uma paz nesse contexto não se daria através duma guerra ainda maior, os coelhos decidiram não levar para outras instâncias a luta contra tal violação.

Trata-se duma acomodação dos coelhos? É possível dizer que estes agiram covardemente?

O que acontece, porém, é que os coelhos não são cegos, ao contrário das cobras; logo sairão da toca (entrando em outras, talvez) enquanto que estas permanecerão rastejando na vida, vivendo numa espécie de submundo pautado pela sujeição.