QUESTIONAMENTOS ACERCA DAS DESIGUALDADES ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E AS DEFENSORIAS PÚBLICAS NO PROCESSO PENAL

Diógenes de Paula e Monteiro e Kênnia Suelen da Silva [1]

A Constituição Federal, de 1988, dispõe em seu artigo 5º, LXXIV que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. E dentre os direitos e garantias, este se vê materializado pela Defensoria Pública, um dos institutos essenciais da função jurisdicional do Estado. Situada em plano conexo ao da Advocacia, incumbe-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma dos artigo e inciso supracitados.

Eis que o Direito procura, assim, alcançar a todos, sobretudo aqueles outrora marginalizados pela desigualdade econômica. O acesso à “ordem jurídica justa” é problemática de infinitos estudos e abordagens, sendo historicamente divididas em três grande ondas renovatórias, cada qual buscando a solução para tal. Em resumo, há de se tratar aqui apenas da primeira, que se centrou na assistência judiciária. As outras duas se enveredaram pelos interesses difusos, como a proteção ambiental, direitos do consumidor, e o acesso à justiça, analisado por modos empíricos, o que se definiu como um “ataque às barreiras de acesso, de maneira mais articulada e compreensiva”.² Pois bem, vislumbrar a garantia constitucional alhures dita significa extrair entendimentos sob o prisma de Cappeletti e Garth.

Como instrumento essencial às funções da justiça, porém, questionamo-nos se o Estado tem oferecido condições para o garantimento de uma defesa penal vigorosa aos hipossuficientes, por meio das Defensorias Públicas. Também se inclui nesta temática o ponto concernente ao exercício efetivo dos direitos relacionados à proteção da liberdade, abarcados nas linhas do processo penal.

A questão se apresenta em diversos segmentos, entretanto há uma interseção, uma vez que do todo é possível verificar a defasagem relativa da Defensoria Pública ante o Ministério Público.   

A Lei Complementar n° 80/94 arquitetou as Defensorias Públicas da União, Estados, Distrito Federal e Territórios, criando também diversas normas gerais de funcionamento das mesmas.  No rol, destacava-se a estruturação da Defensoria Pública, a qual previa a forma de ingresso na carreira, os direitos, as garantias, as prerrogativas dos integrantes. Entretanto, dentre tais prerrogativas, uma se faz mister às discussões jurídicas, no que se diz da observação dos princípios processuais – e também aqueles embutidos na Constituição Federal. Trata-se do dispositivo que conferiu aos Defensores Públicos de todo o país “o prazo em dobro para se manifestarem em todos os processos em que atuam, através das previsões dos artigos 44, inciso I, 89, inciso I, e 128, inciso I”, da já qualificada Lei. Destarte, questiona-se a fundamentação deste privilégio, bem como se este não prejudica as essências basilares do direito que são a justiça e o equilíbrio, e, mais especificamente em matéria penal, quando os direitos protegidos se relacionam à liberdade dos indivíduos.

Os supracitados termos legais tão somente reproduzem o artigo 5°, § 5°, da Lei n° 1.060/50, válida aos Assistentes Judiciários. Dita quase o mesmo texto: “receber intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição, contando-se em dobro todos os prazos”. O ponto é: também estariam incluídos os processos de natureza criminal? Pois bem, o Código de Processo Penal já concebe prazos em dobro e quádruplo para as instituições nele citadas, e para situações estritas, conforme o art. 188. Alguns juristas entendem que tal norma se torna a regente dos processos penais, e que a regra anteriormente elucidada aplicar-se-ia ao âmbito civil. No entanto, tal interpretação distorce a literalidade da Lei; portanto, vê-se que o legislador estendeu a todos os processos, cíveis ou criminais, a possibilidade da intimação pessoal, e igualmente a contagem em dobro dos prazos.

Quais as razões de tamanho benefício temporal, porém? Em nota, um Tribunal Pleno do Rio Grande do Sul não reconheceu a inconstitucionalidade do § 5º do artigo 5º da Lei nº 1.060/50, e concernente ao prazo em dobro – afirmando que o “indeferimento” se explicava pelo fato de que as Defensorias Públicas não dispunham da mesma organização do Ministério Público, a quem a decisão considerou parte adversária no processo penal. Inegavelmente, pelo menos até que sua organização nos Estados equipare-se ao respectivo Ministério Público, que lhe é oposto, como órgão de acusação, em âmbito penal. Outrossim, o Projeto de Lei que acrescentou o § 5º do artigo 5º da Lei nº 1.060/50  permitiu o ajustamento de prazos aos Assistentes Judiciários em virtude da abrangência de tarefas executadas por estes, e também as deficiências no tocante administrativo. Sequer foi necessário dizer do volume excessivo de trabalho.

Assim, justifica-se a “sobreposição” da norma anterior ao dispositivo 188 do CPP – através da equação redentora: “diversidade de tarefas” mais “excesso de serviços”. Algumas vezes, chega-se a culpar também a burocracia estatal. No entanto, ressalta-se; trata-se sempre a defasagem da defesa pública ante a acusação pública, a qual se tenta compensar por uma “superinjeção de tempo”, ao invés de se tentar corrigir os problemas internos da Defensoria Pública. O esticamento é mero paliativo, uma vez que as deficiências e excessos permanecem aviltantes a esta. 

Porque se acolhermos o argumento da diminuta estrutura administrativa da DP em relação ao MP, que produz a acusação, inferiríamos que o prazo em dobro conferido no processo penal se restringiria à defesa prévia, uma vez que nos recursos e alegações finais não é concedida à parte acusadora trazer testemunhas à baila testemunhas, nem documentos, e em ambos os pontos é nulo o policiamento sobre os atos do Ministério Público. Pois bem, não há que se reforçar uma instituição em todo o decorrer do processo, se tal gerar novo desequilíbrio – desta vez em favor da Defensoria – modificando apenas o pólo problemático.

Outrossim, questiona-se até mesmo a qualificação já feita, de MP e DP serem tomados como “partes adversas”. E quanto aos princípios regentes do Ministério Público, como a legalidade, os quais permitem que se peça a absolvição do réu – daí, em nada se vê diferença do pretendido pela Defensoria. Destarte, como arguir sob a justificativa de que o outro lado é “melhor” ou mais aparatado, se ambos procuram o alcance mais próximo da justiça, e alguns casos possuem até o mesmo objetivo? Ademais, a regra do prazo em dobro não poderia ser chamada nas ações penais em que o Ministério Público não fosse parte opositora à Defensoria Pública, isto é, nas ações penais privadas e nas ações penais privadas subsidiárias da pública.

Eis, então, o que bradam promotores e articulistas: O favorecimento temporal à Defensoria Pública fere o princípio da igualdade. Este se encontra insculpido no artigo 5°, caput, da Constituição Federal, e prevê que todos são iguais perante a lei, não havendo distinção de qualquer natureza.

 Por outro viés, o excesso de serviço é naturalmente um problema de que compartilha o Ministério Público. A tese que impõe a carga problemática somente à DP parece não considerar o fato de que aquele também participa dos processos, e logicamente tem sua demanda de trabalho quanto aos mesmos. Em que reside exatamente, pois, esta sobrecarga de serviços?  

Recentemente, em 2009, o Ministério da Justiça editou um diagnóstico e constatou que o Defensor Público Mineiro possuía a segunda pior remuneração em 2004, e a quinta pior em 2006. Tal cenário tem, infelizmente, servido como estímulo à desistência em tão honrosa carreira, que em impressionante estatística do mesmo órgão, baseada nos últimos quinze anos, mostrou que ocorre a exoneração de um defensor público a cada doze dias. A despeito dos esforços governamentais para elevar as remunerações, a comparação aos valores pagos noutras unidades federativas, algumas tantas sem o destaque social, político e econômico das Minas Gerais, indica o quão pouco incentivados se encontram os Defensores Públicos mineiros. Por exemplo, Assistentes Judiciários de Rio de Janeiro e Distrito Federal percebem R$ 19.955,41 e R$ 18.164,29, cada qual. No Piauí, R$ 13.450,00; e em Roraima, R$ 11.000,00. Entretanto, segundo o diagnóstico ministerial, o Estado de Minas despende aos seus servidores judiciários R$ 6.580,00 – na data, o valor mais baixo dentre todos.

Nítida distorção entre as remunerações. Apesar de que as Defensorias Públicas sejam consideradas como sendo uma só, ou partes separadas de um único mecanismo, externa-se ali a óbvia desorganização do aparelho. Os pagamentos parecem não observar critérios geográficos, nem considerar as peculiaridades econômicas das regiões, menos ainda avaliar a quantidade de processos locais em trâmite, conjuntamente ao volume de serviço por Defensor. No entanto, a situação de Minas Gerais não deve ser tomada como problema generalizado, quiçá superestimada, a ponto de fazer cessar todo o questionamento. A carreira de Defensor Público é, senão a mais, das mais honradas dentre os operadores do direito. É aquela que pode inicialmente atrair pelos salários, mas que só se mantém por vocação. Conhecer a pobreza de tão perto, vivenciar o sofrimento das prisões, que parecem servir apenas ao pouco abonados, pleitear por quem não o poderia sem prejudicar o próprio sustento – e ainda que para tal sejam pagos, é a paixão pelo que se faz que define a Assistência Judiciária, e os diferencia daqueles, não todos, que só enxergam no Direito o enriquecimento dos bolsos.

  Ainda na questão processual, há juristas que afirmem a completa desigualdade no processo penal, por um ângulo prático. Para alguns, a mera participação do Ministério Público já acarreta o desequilíbrio, uma vez que este já dispõe de tantos recursos na fase investigativa. Contudo, iniciado o processo, pesa o princípio de favorecimento do réu e sua presunção de inocência – o que em tese já é suficiente para rebater a parte dos inquéritos. Além disso, pode a defesa se valer do “protesto por novo júri”, “recurso de revisão”, dentre um rol maior de possibilidades exclusivas conferidas pelo Código de Processo Penal.

Diante das explanações, em que pese não ser este que escreve tendencioso a nenhum dos lados, Defensoria e Ministério Públicos, mas estando na condição de estudante e futuro operador do direito, possuo independência para não encetar sugestões de ajustes a este ou aquele, mas delinear-me pela ideia verdadeiramente, talvez, discutida sob a matéria. Não estaria o princípio da igualdade em sentido contrário aos princípios colaterais pro reo, de certa forma? E se defender e refutar for mais trabalhoso que acusar e oferecer provas, não estaria aqui o fator primordial gerador de todas as demais desigualdades? – desde o déficit estrutural-administrativo às regalias processuais? Caso puséssemos em plena igualdade de armas o MP e a DP, ao autuado não restaria um tanto afetada sua proteção por ser presumido inocente? E se a arguida igualdade material não atender à justiça, mas provocar o contrário? Sob qual fundamentação deve-se ampliar o supracitado princípio, ainda que o mesmo possa sublimar um princípio maior que é a proteção da liberdade individual?

Porquanto ainda não haja solução, nem métodos eficazes que em conjunto possam sanar a desigualdade nas “batalhas processuais” entre a Assistência Judiciária e o Ministério Público, precisamos invariavelmente encarar a realidade de que o Estado não está preparado para gerir a situação. O aparelho Judiciário brasileiro moderniza-se a vagarosos passos, vítima de sua própria burocracia e interesses políticos pessoais. Não só a demasiado referida desigualdade temporal entre o Estado-defesa e o Estado-acusação, há outras várias reclamações de natureza processual, as quais sempre levam a Justiça do país a ganhar conotações depreciativas, relacionadas quase sempre à lentidão e à ineficiência. Destarte, resta-nos aguardar o deslinde da evolução jurídica através das novas gerações de operadores do direito, os quais certamente materializarão os anseios de hoje.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mauro Fonseca. O Ministério Público e sua investigação criminal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2001.

BRASIL. Vade Mecum. Editora Saraiva: São Paulo, 2009.

CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. (Título original: Acess to justice: the worldwide movement to make rights effective. Tradução e revisão: Ellen Gracie Northfleet). Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabbris (SAFE), 2002.

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. In: www.defensoriapublica.mg.gov.br.

FERREIRA, Luciana de Figueiredo; PRADO, Rodrigo Murad do. O papel da Defensoria Pública no processo penal brasileiro. In: direitoemdebate.net . Acesso em 16 de maio, às 9h.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2001.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 6. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006.

SOUZA, Fábio Luís Mariani de. Direito fundamental à defesa criminal: um olhar sobre a Defensoria Pública enquanto instrumento de acesso à justiça penal. Programa de pós-graduação em ciências criminais. Mestrado, faculdade de Direito, PUCRS, 2006.



[1] Acadêmicos do curso de Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES)

² M. Cappeletti e B. Garth. Acesso à justiça.