Lívia Duarte Pimentel Vinhadelli Mirele Gomes Cantalogo Rafael Batista Silva de Freitas Resumo: A pesquisa tem como prisma a possibilidade de quebra das cláusulas restritivas impostas em testamento em que o juiz irá analisar em determinadas situações a possibilidade de quebra, tendo em vista a ligação estreita das referidas cláusulas com o princípio da dignidade da pessoa humana. Buscar-se-á resolver a seguinte problemática: Quais os limites possíveis para o juiz interferir no testamento quebrando as cláusulas restritivas impostas pelo testador? Cumpre destacar que as cláusulas restritivas são prerrogativas legais conferidas ao autor da herança com o escopo de impedir que os herdeiros alienem o bem herdado, ou seja, para que não se desfaçam do bem. Objetivo geral do presente artigo será verificar em quais situações a lei permite que sejam realizadas as quebras das cláusulas restritivas impostas em testamento. A realização deste artigo científico justifica-se pelo fato de que em determinadas situações essas cláusulas interferem no direito de propriedade do herdeiro transformando-o em um mero usufrutuário dos bens que lhe pertencem. A pesquisa insere-se sob o enfoque da interdisciplinaridade, com foco em áreas distintas do Direito, em especial Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Processual Civil. Utilizando-se para a confecção deste, o auxílio dos dispositivos legais presentes na extensa seara jurídica. De modo que o método de pesquisa, utilizado foi dedutivo, pois parte da visão geral para o particular, com a interpretação do conjunto. Palavras-chave: Cláusulas restritivas. Dignidade da pessoa humana. Função social de propriedade. 1. Introdução O presente artigo científico tem como tema “Quebra judicial das cláusulas restritivas impostas em testamento”, que buscará resolver a seguinte problemática: Quais os limites possíveis para o juiz interferir no testamento quebrando as cláusulas restritivas impostas pelo testador? Nesse sentido o objetivo geral do presente artigo é verificar em que situações a lei permite que sejam realizadas as quebras das cláusulas restritivas impostas em testamento. Para responder tal problemática, necessita-se primeiramente apresentar os objetivos específicos que são: Demonstrar como o princípio da dignidade da pessoa humana interfere nas quebras das clausulas restritivas impostas em testamento, bem como analisar até que ponto a vontade do falecido deve ser acatada e por fim mostrar que em determinadas situações é necessária a realização de quebra das referidas cláusulas. Pode-se, de início, definir as cláusulas restritivas como uma prerrogativa legal conferida ao autor da herança com o escopo de impedir que os herdeiros alienem o bem herdado, ou seja, para que não se desfaçam do bem. Atualmente, existem muitos debates sobre as restrições ao direito de propriedade, gravadas por testamento, quais sejam, as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. As referidas cláusulas quando impostas a legítima são consideradas por doutrinadores renomados como Venosa e Maria Berenice Dias ultrapassadas e, além disso, um dissenso jurídico, pois permitem que se retire de um herdeiro necessário a possibilidade dele dispor de um bem que lhe pertence por expressa determinação legal fundada no direito sucessório, sendo também consideradas como anti-econômicas, pois dificultam a circulação de riquezas, ofendendo a dignidade humana pois somente a lei pode criar incapacidades. A realização deste artigo científico justifica-se pelo fato de que em determinadas situações essas cláusulas interferem no direito de propriedade do herdeiro transformando-o em um mero usufrutuário dos bens que lhe pertencem. Em face do descontentamento ou necessidade dos herdeiros que se vêem injustiçados, ou que necessitam ser desobrigados em relação às referidas cláusulas restritivas impostas em testamentos, eis que surge a figura do juiz com o difícil dever de decidir a questão que lhe é imposta, tendo em vista que na maioria dos casos essa questão só é discutida após a morte do autor da herança, e este não mais poderá justificar a decisão tomada. A pesquisa insere o objeto de estudo sob o enfoque da interdisciplinaridade, com foco em áreas distintas do Direito, em especial Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Processual Civil. Utilizando-se para a confecção deste, o auxilio dos dispositivos legais presentes na extensa seara jurídica. De modo que o método de pesquisa, adotado foi dedutivo, pois parte da visão geral para o particular. 2. As cláusulas restritivas impostas em testamento A lei confere ao autor da herança a possibilidade de impor a seus legítimos herdeiros cláusulas que impeçam a venda, a penhora e a comunicação da herança, estas são as chamadas cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. O fato é que ao longo dos anos a vontade do testador passou a prejudicar os herdeiros em determinas situações, o que deu ensejo à mudança advinda com o código de 2002, em que o testador pode fazer o uso das referidas cláusulas restritivas, desde que, aponte o motivo justo para fazê-lo. Anteriormente, o testador tinha o respaldo do código civil de 1916, onde podia fazer o livre uso da limitação, vez que não tinha o direito de privar os herdeiros necessários da legítima, mas poderia obstar a utilização e fruição econômica dos mesmos, a cláusula de inalienabilidade era inicialmente permitida pelo artigo 1.676 do Código Civil de 1916 que dispunha: Artigo 1676. A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade publica, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade. Dessa forma, tem se que as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade são restrições impostas pelo autor da herança em relação ao direito de propriedade de seus herdeiros, essa imposição pode ser vista de forma positiva, ou de forma negativa como mostra Venosa: A imposição da cláusula proibitiva de alienar pelo testador pode vir imbuída de excelentes intenções: receava ele que o herdeiro viesse a dilapidar os bens, dificultando sua própria subsistência ou de sua família; tentava evitar que o sucessor ficasse, por exemplo, privado de um bem para moradia ou trabalho. Como geralmente a cláusula vem acompanhada da restrição da incomunicabilidade, procurava o testador evitar que um casamento desastroso diminuísse o patrimônio do herdeiro. São, sem dúvida, razoes elevadas que, a priori, só viriam em beneficio do herdeiro. Contudo, não bastassem os entraves que o titular de um bem com essa cláusula tem que enfrentar, sua oposição podia ser imotivada pelo sistema de 1916, poderia o testador valer-se dela como forma de dificultar a utilização da herança, quiçá como meio de vingança ou retaliação, uma vez que não podia privar os herdeiros necessários da legítima. (VENOSA, 2006, p.155) As cláusulas restritivas consistem: inalienabilidade são aquelas que impedem a alienação do bem, ele não pode ser vendido, doado, ou sofrer qualquer tipo de permuta, de forma que o domínio do bem se torna limitado. A cláusula de impenhorabilidade, como o próprio nome diz, impede que o bem seja penhorado, de modo que o bem não serve como garantia de credores no processo de execução, esse fato gera grandes discussões quanto a possibilidade de ocorrer fraude contra credores. Finalmente, a cláusula de incomunicabilidade que exclui o bem da comunhão de bens entre os cônjuges, independente do regime de bens estabelecido entre o casal. 3- Da possibilidade de quebra das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade e a expressão “justa causa” Durante a vigência das Ordenações Filipinas não existia no ordenamento jurídico a possibilidade de impor restrições a legítima. A lei Feliciano Pena (lei 1839/1707), serviu como escopo para a o Código Civil de 1916, introduzir no ordenamento jurídico essa possibilidade, cujo objetivo era proteger o patrimônio familiar para evitar que ele fosse dilapidado pelos sucessores inexperientes. Diante do inconformismo dos herdeiros que por vezes tinham os bens herdados reduzidos à inutilidade, bem como o absolutismo que revestia a cláusula de inalienabilidade, os elaboradores do Código Civil de 2002 não tiveram alternativa senão modificar a norma jurídica. Dessa forma, o novo diploma legal, restringiu a utilização das cláusulas restritivas de direito aos bens componentes da legítima apenas para quando o testador motivasse de forma justa tal imposição, conforme dispõe em seu art.1848: “Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.” (Grifo nosso). Importante destacar que o mesmo diploma legal estabelece e define quanto a extensão desse gravame que: “Art. 1.911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.” Apesar da nova legislação não favorecer a nua vontade do testador, surgiram dúvidas quanto ao teor da expressão “justa causa” contida na lei, pois a referida expressão pode ser interpretada em sentido amplo, de forma que os herdeiros interessados para tentarem se eximir da restrição devem provar que o motivo do gravame é injusto, conforme aponta a renomada doutrinadora Maria Berenice Dias: As cláusulas impostas pelo testador não necessitam de chancela judicial. Dispõe de eficácia a partir da abertura a sucessão, passando a vigorar de imediato, mesmo antes de findo o inventário independentemente da partilha. Porém o afastamento do gravame depende da decisão judicial. O herdeiro precisa comprovar a inexistência da causa indicada pelo testador para livrar sua legítima. Cabe ao juiz ou reconhecer a razoabilidade da limitação e manter as cláusulas ou cancelá-las. (DIAS, 2011, p.286) Tendo em vista que o termo “justa causa” se demonstrou vago e subjetivo, a solução foi insatisfatória, pois as cláusulas continuaram sendo aplicadas de forma livre. 4- A relação do princípio da dignidade da pessoa humana A Constituição Federal de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, dessa forma as cláusulas restritivas da propriedade, impostas por testamento, são incompatíveis com a ordem constitucional vigente, pois ferem os princípios da dignidade da pessoa humana, do direito de propriedade e sua função social, com ampla garantia no direito de herança conforme dispõe o artigo 5º em seus respectivos incisos: “Art.5°. XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; XXX – é garantido o direito de herança;” As cláusulas restritivas são mais do que inconvenientes, visto que muitas vezes se transformam em um ônus na vida do beneficiário, e inconstitucionais, pois ferem os princípios constitucionais do direito à herança, do direito de propriedade privada, da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana. Uma pessoa perfeitamente capaz não pode sofrer a humilhação de ser considerada incapaz sem de fato o ser, pois isto atenta contra o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Deve ser observado que não se pode admitir que pessoas capazes sejam tratadas como incapazes unicamente para satisfazer a vontade privada do testador ou doador pois isso afronta o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Sendo válido ressaltar que a dignidade da pessoa humana é um dos postulados que regem um Estado Democrático de Direito. Há muitos precedentes na jurisprudência de nossos tribunais em que o bem é liberado do gravame em razão de doença do beneficiário. Nesse tipo de caso, o bem é clausulado para o benefício do herdeiro ou donatário, mas este é acometido de doença, necessitando de recursos para custear tratamento médico, de modo que o gravame acaba se tornando um ônus para aquele que se quis proteger. Dessa forma expõe os ilustres doutrinadores Flávio Tartuce e José Flávio Simão: [...] A titulo de exemplo, uma mulher recebe como herança um bem com a cláusula de inalienabilidade. Trata-se de um imóvel que vale R$ 100.000,00. Entretanto, o seu marido fica gravemente doente e não pode mais trabalhar, sofrendo essa família um serio desfalque em suas rendas. Nesse caso, pode ser proposta uma demanda visando a autorizar a venda do imóvel. Após a autorização judicial, o imóvel poderá ser vendido, permitindo que a família pague as dividas anteriores e, ainda, deposite um bom numerário em conta poupança, conforme determinar a sentença [...] (TARTUCE, 2011, p.363). Cumpre evidenciar que as cláusulas restritivas impostas em testamento devem ser ponderadas de acordo com os princípios constitucionais, dentre eles a função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana inseridos na Carta Constitucional de 1988. 5- A última vontade do falecido e a análise do magistrado. Embora no direito sucessório seja de grande importância os princípios da última vontade do testador existem também os limites materiais impostos pela Carta Magna, e utilizando-se o critério hierárquico para solucionar antinomias do ordenamento jurídico a Constituição, que é a lei maior, deve sempre prevalecer. Por outro lado, destarte é que, apesar de haver a necessidade de quebra das cláusulas restritivas impostas em testamento em determinados casos, os magistrados quando se deparam com tal situação encontram dificuldades em relação aos parâmetros que devem ser observados para analisar e decidir a questão com a devida cautela para não cometer nenhuma injustiça, tendo em vista que o autor da herança não poderá mais justificar a sua decisão, como demonstra a Ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz: Isto é assim porque os motivos alegados podem ser de foro íntimo e impregnados de subjetivismo, gerando dúvidas, trazendo à tona problemas de ordem familiar, dando azo à anulação da cláusula testamentária, sob alegação de injustiça de razão alegada, acarretando dificuldades ao juiz, pela ausência de critérios normativos ou equitativos que tornem possível a averiguação do acerto, ou não, da medida restritiva, uma vez que o autor não poderá mais justificar a decisão tomada. (DINIZ, 2011, p.276) Trata-se de questão subjetiva devendo ser analisada pelo magistrado de forma a observar o caso concreto sempre utilizando o princípio da boa-fé e tendo como alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana à luz da função social do direito de propriedade. O que se percebe é que o juiz deve buscar interpretar o testamento de forma ética analisando todos os fatores que podem estar ligados à vontade do autor da herança. Devem ser observados todos os fatos que envolveram a tomada das decisões, tais como a lógica em que se estabeleceu o conjunto de disposições de suas últimas vontades, o lugar onde foi elaborado o testamento, a época que se elaborou o testamento, bem como o estado de saúde que o testador se encontrava, o convívio do testador com as pessoas que o cercavam, seus inimigos e amigos, relações amorosas e tudo que possa ajudar o magistrado a identificar o liame da última vontade em relação aos herdeiros. 6. Conclusão As cláusulas restritivas impostas em testamento criam incapacidades através da vontade privada do testador, o que só confere ao ordenamento jurídico fazê-lo. Uma pessoa não pode sofrer a humilhação de ser considerada incapaz sem ser de fato, isso contraria o principio da dignidade da pessoa humana presente no ordenamento jurídico em vigor. Além de inconvenientes as cláusulas restritivas ferem os princípios constitucionais do direito a herança, do direito a propriedade privada, da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana. É valido ressaltar que o princípio da dignidade da pessoa humana é de estrema importância para o Estado Democrático de Direito. A intenção do testador ao gravar as cláusulas de restrição embora válida, pode prejudicar o herdeiro, pois o individualismo coloca a vontade privada acima de tudo, inclusive dos interesses sociais de modo que ferem os princípios constitucionais vigorantes. A constituição como lei maior é a que deve prevalecer, quando o magistrado se depara com situação em que as cláusulas estão prejudicando os herdeiros de forma a contrariar o referido dispositivo, ele deve interpretar o testamento utilizando-se do princípio da boa-fé e de forma ética analisar os fatores que podem estar ligados a vontade do autor da herança e posteriormente autorizar a quebra das cláusulas dependendo do caso concreto Em virtude de tudo que foi mencionado, o entendimento defendido é de que as cláusulas restritivas impostas em testamento estão contrárias a Constituição Federal de 1988, dessa forma quando forem questionadas pelos herdeiros o juiz poderá analisar a possibilidade de quebrar as referidas cláusulas de forma ética até mesmo por não se ter uma definição concreta do termo “justa causa” presente no Código Civil vigente. REFERÊNCIAS BIBILOGRÁFICAS BRASIL, Vade Mecum. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 10º Ed. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. CASTILHO, Auriluce Pereira. Manual de metodologia científica do ILES Itumbiara/GO. – Itumbiara: ILES/ULBRA, 2011 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de Metodologia Científica. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2010. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. DIREITO CIVIL – Direito das Sucessões. 4 ed. Rio de Janeiro: Método, 2011. VENOSA, Silvio de Salvo. Curso de Direito Civil – Direito das Sucessões. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006.