A criatividade é a manifestação de um impulso que mora na alma humana. A capacidade de observar e melhorar, inovar algo ou alguma coisa já existente, e isso é o que nos distingue dos animais. Os animais estão felizes no mundo, do jeito como eles são. Há milhares de anos a abelhas fazem colméias do mesmo jeito, pássaros cantam o mesmo canto, aranhas fazem teias idênticas. Não criam nada de novo. Não precisam. Estão felizes com o que são. O que não acontece conosco, seres humanos. Somos essencialmente insatisfeitos e curiosos.

CAMUS1, disse que somos os únicos animais que se recusam a ser o que são. A gente quer mudar tudo. Inventamos livros e suas histórias, inventamos obras de arte, inventamos música, inventamos ferramentas e máquinas.

SHAKESPEARE2 escreveu “Romeu e Julieta”, DA VINCI3 pintou a "Monalisa", VIVALDI4 compôs as "Quatro Estações"... mas como é que aconteceu essa 'explosão' de processo criativo? Em primeiro lugar, é necessário que haja algo que incomode. Por que é que a ostra cria a pérola? Porque, por acidente, um grão de areia entra dentro de sua carne mole, o grão de areia incomoda. Aí, para acabar com o sofrimento, ela faz uma bolinha bem lisa em torno do grão de areia áspero. Desta forma ela deixa de sofrer - "Ostra feliz não faz pérola".

Isso vale para nós. Pessoas felizes nunca criaram nada. Elas não precisam criar. Elas simplesmente gozam a sua felicidade. Bem disse PAZ5, ensaísta e poeta mexicano: "Coisas e palavras sangram pela mesma ferida". Toda criatividade é fruto de sofrimento e ‘sangramento’.

A criatividade se inicia com um sofrimento. O sofrimento nos faz pensar. Pensamento não é uma coisa. O pensamento se faz com algo que não existe: idéias. Idéias são entidades espirituais. O espiritual é um espaço dentro do corpo onde coisas que não existem, passam a existir.

O clássico Romeu e Julieta, antes de existir como uma famosa peça teatral surgiu como pensamento, espírito, dentro do corpo de Shakespeare. A Monalisa, antes de existir como obra de arte, existiu como espírito, dentro do corpo de Leonardo da Vinci. As Quatro Estações, antes de existir como uma sinfonia que se pode ouvir surgiu como espírito, dentro da cabeça de Vivaldi.

O espírito não se conforma em ser sempre espírito, ele quer se materializar. Explico: Qual a mulher que ficaria feliz com a idéia de ter um filho? Ela não quer somente a idéia de ter um filho, um ser lindo, fruto do amor. E mesmo que um filho seja maravilhoso, enquanto espírito, só dá infelicidade. A mulher quer que a idéia de um filho sentida por ela, com desejo e nostalgia, e se transforme num filho de verdade – e não somente fique na idéia. Por isso ela quer ficar grávida. Quando o filho nasce, aí é que a felicidade se consuma.

Uma idéia que deseja se transformar em coisa, matéria, tem o nome de "sonho". O sonho quer se transformar em matéria. A "espiritualidade" do espírito está precisamente nisso: o desejo e o trabalho para fazer com que aquilo que existe apenas dentro da gente (e que, portanto, só pode ser conhecido por nós), se transforme numa coisa palpável, que pode então ser gozada por muitos. A espiritualidade busca a comunhão.

HEGEL6 dava a esses objetos, produtos da criatividade, o nome de "objetivações do espírito". O caminho do espírito é esse: da espiritualidade pura e individual, para a coisa, objeto que existe no mundo, para deleite e uso de muitos. Os objetos, assim, são espíritos tornado-se sensíveis, audíveis, visíveis, usáveis e gozáveis.

Uma peça teatral só existe quando escrita e representada. Um quadro só existe quando pintado e visto. Uma bela música só existe quando composta e ouvida. Um brinquedo só existe quando se brinca com ele. Um filho só existe quando é gestado e parido. O espírito tem nostalgia pela matéria.

Ele deseja fazer amor com a matéria. E quando espírito e matéria fazem amor, nasce a beleza. Deus não se contentou em sonhar o Paraíso. Se o sonho do Paraíso lhe tivesse dado felicidade ele teria continuado apenas sonhando o Paraíso. Deus não se contentou em sonhar o homem. Se o sonho do homem lhe tivesse dado felicidade ele teria continuado a sonhar com o homem. Mas ele só se deu por completo quando se transformou em homem: "... e o Verbo (sonho) se fez carne (corpo)". O espírito quer descer, mergulhar, se materializar...

Isso explica o que ROHDEN7 nos ensina quando fala da necessidade do homem ‘se cristificar’. É uma idéia diferente daquela que defende que a espiritualidade é o espírito se despegando da matéria, o corpo morrendo para daí se tornar espírito, sem carne e sem sentidos, como se o material fosse doença, coisa inferior.

O escritor, o pintor, o músico, e todos os profissionais que utilizam da criatividade jamais achariam que suas ferramentas e instrumentos são coisas inferiores. Mas como? Sem eles, suas obras e criações nunca se tornariam concretas, materiais, visíveis. A criação simplesmente permaneceria para sempre em espírito puro...

 

 

(1) Octavio Paz (1914-1998) - El arco y la lira (pág. 35), Fondo de Cultura BR.2006.

(2) Albert Camus (1913-1960), filosofo argeliano, http://filosofocamus.sites.uol.com.br/

(3) William Shakespeare (1564 -1616), dramaturgo e poeta inglês, amplamente considerado como o maior dramaturgo da Língua inglesa e um dos mais influentes no mundo ocidental.

(4) Leonardo di ser Piero da Vinci (1452-1519), pintor, matemático, escultor, arquiteto, físico, escritor, engenheiro, poeta, cientista, botânico e músico do Renascimento italiano. É considerado um dos maiores gênios da história da humanidade.

(5) Antonio Lucio Vivaldi (1678- 1741) foi um sacerdote e compositor italiano de música barroca, ‘virtuoso’ violonista do século XIIX.

(6) Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão, era fascinado pelas obras de Spinoza, Kant e Rousseau, assim como pela Revolução Francesa. Muitos consideram que Hegel representa o ápice do idealismo alemão do século XIX, que teve impacto profundo no materialismo histórico de Karl Marx.

(7) Huberto Rohden (1893-1981), filósofo, educador e teólogo brasileiro, nascido em Santa Catarina e radicado em São Paulo. Precursor do espiritualismo universalista, escreveu mais de 100 obras, onde franqueou leitura ecumênica de temáticas espirituais e abordagem espiritualista de questões pertinentes à Pedagogia, Ciência e Filosofia, enfatizando o autoconhecimento, auto-educação e a auto-realização.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Huberto_Rohden