Qual a posição do narrador no romance contemporâneo?

Maria Célia da Silva – mestranda pela UNIR

Elton Emanuel Brito Cavalcante – mestrando pela UNIR

 RESENHA do texto de T. Adorno: A posição do narrador no romance contemporâneo. In: Nota de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. Duas Cidades; Ed. 34. São Paulo. 2003.

RESENHA

“O narrador se caracteriza por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do  romance exija a narração.” Esta é a frase com a qual Adorno inicia o seu texto. Ela faz citação direta ao pensamento de W. Benjamim, em o Narrador, para quem o narrador tradicional está em vias de extinção justamente por que o mundo contemporâneo, industrializado e individualista, não crê mais nos contos de fadas, nos mitos como antes se cria. Na Antiguidade e Idade Média, a crença no mito dava ao narrador um status de autoridade para que ele pudesse narrar suas lendas e sagas de forma mágica, porém crível.  

Entretanto, com o advento da máquina a vapor, o homem passou cada vez mais a ser relativista, cético e individualista, o que o levou a ver no mito apenas historias da “carochinha”, histórias para fazer crianças dormir e nada mais. O narrador tradicional, então, perdeu seu posto para um outro mais dinâmico e de acordo com as necessidades do homem contemporâneo: o narrador de reportagens e o do romance. Este é extremamente individualista, fala de si sempre, tenta entender o mundo a partir de sua perspectiva, e busca constantemente um fundamento para a existência, um sentido para a vida.

Quantos poetas modernos e contemporâneos não buscaram a solução para a existência no suicídio? E quantos o fizeram na Antiguidade e Idade Média? Os poetas destes últimos períodos não narravam buscando o sentido da vida, mas buscavam a vidaem si. Suasexperiências não eram pessimistas nem frustrantes, eram um cântico à luta pela vida, ao homem que crê firmemente e nessa crença aprende com outros homens a como manter-se firme em suas tradições.

A ciência moderna, e principalmente no Iluminismo, tornou cética grande parte da humanidade. O ateísmo prevaleceu nos meios acadêmicos e intelectuais, tendo no materialismo a grande fonte de inspiração. O crê em Deus, para muitos, virou coisa de gente “alienada” e sem consciência de classe, pois como muitos dizem “a religião é o ópio do povo.” Mas o que é o homem sem Deus?

 Os poetas, distantes da crença pura e real em Deus, passaram a buscar por meio da razão um consolo que só a fé pode dar. Ao perceberem o quanto todo o seu pensamento é vão, a depressão e o pessimismo aparecem. 

A ciência trouxe o progresso, mas levou a paz. As batalhas medievais eram constantes, e a guerra contínua, mas quando estas cessavam, o homem encontrava-se em paz e no conforto de sua família.  Não se questionava atabalhoadamente: “De onde viemos, para onde vamos?”, pois não precisavam de tais questionamentos: a única preocupação que tinham era a de conservar pura e intacta a sua alma para poder alcançar o paraíso.

A ciência, ao contrário, além de aumentar a guerra, tirou do homem até mesmo esse consolo espiritual e religioso. Deu mais sobrevida ao homem, mostrou-lhe coisas impensáveis, deu-lhe status de semideus, mas ainda assim construiu armas poderosas e tanques de guerra que destruíamem massa. Omercador marítimo foi substituído por grandes embarcações que transportam toneladas e toneladas de produtos. O agricultor foi substituído pelo grande produtor, o qual industrializou o campo e tornou este como se fosse uma fábrica capitalista. Não há mais espaço para o diálogo, para a troca de experiências; nas grandes cidades, por exemplo, extremamente povoadas, as pessoas se esbarram umas nas outras, mas não se comunicam. A pressa é a grande conselheira.

Por tudo isso, o narrador tradicional calou-se. E o homem quando volta da guerra vem tão humilhado e envergonhado que se cala também, mesmo por que suas histórias não teriam a credibilidade que é dada à imprensa. É esta hoje a grande detentora do saber, não um saber que leva ao conhecimento, mas a um saber que leva à mera informação. Quanto mais informados estão os humanos, parece que menos sábios e éticos se tornam.

Como o homem não pode mais narrar as histórias mirabolantes, volta-se para dentro de si mesmo e narra as suas próprias experiências. Fala de si mesmo. Mas busca um fundamento para a vida, busca solucionar um problema insolúvel. Nessa linha, há a postura de alguns escritores que acreditam ser a boa arte  aquela que leva o leitor, o espectador à quebra conforto existencial, a questionar-se sobre tudo, em suma, a angustiar-se. O papel que sempre foi da Metafísica agora é a base da narrativa contemporânea.

Diante dessa situação, Adorno vai dizer que o romance é a forma de expressão típica desse vazio existencial causado pela sociedade industrial.  “Romance como forma literária específica da burguesia;” romance que sempre trouxe em seu bojo um realismo e objetivismo inatos.  A épica antiga sempre foi objetiva; nunca tentou descrever ou relatar o lado subjetivo das personagens. A aventura, a façanha e o mágico eram a intenção a alcançar. O romance também nasceu assim, pois o seu realismo retrata as coisas com um tom de verossimilhança, verossimilhança esta sempre desejada pela burguesia ascendente. Mesmo durante o Barroco e o Romantismo, nunca o romance deixou de primar pela verossimilhança. Até mesmo em romances como as Viagens de Gulliver, o primado do real está sob uma fina camada de alegórica realidade.

Entretanto, com o advento de alguns inventos, a máquina fotográfica, o cinema, por exemplo, as artes em geral tiveram que fugir do realismo tradicional e criar uma nova linguagem. A pintura, por exemplo, tornou-se mais abstrata e fugiu do realismo natural de outrora. As obras dos Surrealistas são o exemplo mais acabado dessa abstração.

Com o romance não aconteceu o mesmo. Do ponto de vista do narrador, o romance não conseguiu abandonar o realismo, apenas mudá-lo de foco: do objeto para o sujeito (subjetivismo extremado).  Influenciado por uma necessidade de conhecer o mundo inconsciente, os romancistas embrenharam-se cada vez mais nesta realidade opaca e densa. Entretanto, sempre tentando mostrar como essa outra realidade é. Para Adorno esse é o grande problema do romance, pois este não consegue fugir ao seu destino, ou seja, precisa narrar, contar uma história, e esta para ser uma história tem que ser verossímil. Daí a tentativa desesperada de muitos romancistas do século XX de tentar descrever de forma fiel aquilo que se passava no subconsciente das personagens. A posição do narrador é a de um semideus que tudo vê e analisa. O narrador volta-se para dentro dos indivíduos e sonda-lhe as almas.

É por isso que as técnicas modernas têm que ser cada vez mais complexas para tentar revelar esse mundo denso que é a psique humana. Técnicas como o fluxo de consciência e o monólogo interior são criticadas por Adorno, pois no fundo tentam mostrar uma realidade impossível de ser averiguada.

Como conseqüência disso, muitos romancistas caem num intimismo que chega a ser uma espécie de biografia. Esse tipo de literatura é considerada, por Adorno, algo sem muito valor.

Vendo essa realidade, Adorno preconiza sobre o futuro do romance: “Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo.”

 

 

 

Referências

ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Nota de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. Duas Cidades; Ed. 34. São Paulo. 2003.