PUTA E SANTA: AS PEDRAS DE MADALENA

SILVA, Janice Oliveira da
Universidade Estadual Vale do Acaraú


RESUMO: Motivada pelas discussões acerca do sagrado e do profano, esta comunicação tem como objetivo, numa leitura preliminar, analisar alguns elementos textuais do conto "A Puta de Deus" (1999), de Janaína Azevedo, de acordo com os preceitos teóricos de Gancho (2009), Santos (2007), Durkheim (1996), entre outros. Com riqueza de detalhes, erotismo, tensão e conflitos, a obra foi escolhida como parte do conteúdo programático do vestibular 2012 da UEPB e proporciona uma reflexão sobre a re(construção) de significados doutrinários, na medida em que sacraliza o desejo sexual.
Palavras-chave: Sagrado. Profano. Janaína Azevedo. Deus antropomorfizado.


ABSTRACT: Motivated for discussions among the sacred and profane, this communication, in a preliminary reading, has the objective of analyze elements from the narrative "The whore of God" (1999) by Janaína Azevedo, according to the theoretical rules of Gancho (2009), Santos (2007), Durkheim (1996), among others. Rich in details, eroticism, tension and conflicts, the work was chosen as part of the programmed content from the 2012 college entrance exam of Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) and provides a reflection about the reconstruction of doctrinal meanings, while sanctified the sexual desire.
Keywords: Sacred. Profane. Janaína Azevedo. Anthropomorphized God.


1.0 INTRODUÇÃO

Desde os primórdios, a humanidade mantém uma visão dualista na finalização de todas as suas ações: de um lado o sagrado, e do outro o profano. Poucos se perguntam, talvez, qual o significado real desses dois termos, em que ponto divergem, e a sua compreensão fica atrelada a crenças disciplinares: "um é certo, o outro é errado".
Sendo, no entanto, cada homem singular, dotado de características individuais, desenvolvendo-se de acordo com o seu critério particular de consciência crítica, constrói diferenças não só entre os outros animais, mas também entre sua própria espécie, e sua capacidade de enxergar as coisas sofre variações.
A compreensão, pois, do que é pecado, seja ele classificado como original, venial, capital ou mortal, depende não só das doutrinas religiosas, mas, principalmente, da leitura feita por cada indivíduo. Fato que é ratificado por Sautchuk (2003), quando declara que se deve "ler como um escritor e não somente como um leitor". (Apud, RCEM-PB, 2007, p. 35). Descobrir a relação entre o contexto da mensagem e o contexto do leitor é discernir, averiguar, criticar, reescrever.
Portanto, reescrever sobre o que se tem medo ou fascínio é instigante porque põe à prova todo um acúmulo de conhecimentos psico-socioculturais. São eles que classificam o desejo, o equilíbrio, o sensual, o normal, o erótico, o pornográfico, o ideal, o real etc.; temas que, muitas vezes, se vestem de preconceitos conflituosos, como o celibato que, segundo Kardec (1944, p. 240), "os que vivem assim por egoísmo desagradam a Deus e enganam a todos".
Por isso, neste artigo, procura-se tecer algumas considerações sobre o conto A Puta de Deus, da escritora Janaína Azevedo, numa leitura preliminar de alguns de seus elementos textuais, para fazer refletir, através do seu mistifório de sagrado e profano, a (re)construção de significados opostos e, ao mesmo tempo, tão diretamente proporcionais, "na constituição de nossas identidades, no equilíbrio de nossos universos interiores".


2.0 APRESENTAÇÃO DA AUTORA E DA OBRA

"... ela se chamará mulher (Ichá), porque foi tomada do homem."

Na década de setenta, com uma estimativa aproximada de noventa milhões de brasileiros, o Brasil vive seu momento paradoxal regido pelo presidente mais violento e também mais popular : a imagem de torcedor entusiasmado e a consagração econômica escondem práticas comuns de torturas e assassinatos dentro de presídios.
O país faz despontar a estrambótica maquiagem e o despudorado rebolado de Ney Mato Grosso no grupo Secos e Molhados, enquanto muitos se escandalizam com a adaptação do pernambucano Nelson Rodrigues, da obra Toda Nudez Será Castigada, de autoria do escritor Arnaldo Jabor.
O mundo ocidental se impressiona com as onomatopeias do grupo psicodélico Pink Floyd e chora devido à crise mundial do petróleo (mais de 300% o preço do barril), enquanto assiste a Amarcord de Fellini e ao musical pop Jesus Cristo Superstar, de Norman Jewson.
Daí, os céus resolvem acolher o pintor, desenhista, escultor, ceramista e escritor Pablo Picasso, que ensina: "Deus é, sobretudo, um artista. Ele inventou a girafa, o elefante, a formiga. Na verdade, Ele nunca procurou seguir um estilo ― simplesmente foi fazendo tudo aquilo que tinha vontade de fazer". (Apud COELHO, 2009, p. 1).
E Ele teve vontade e fez brotar na Terra, dentro de um seio familiar patriarcal, uma mulher impulsiva, otimista, generosa, intuitiva, criativa, de personalidade forte, que consegue ser, ao mesmo tempo, desorganizada e perfeccionista, não se limitando a tempo, espaço e/ou padrões.
Assim nasceu a escritora Janaína Azevedo, na zona rural (Sítio Jardim) de uma cidade interiorana da Paraíba (Areia), de raízes coloniais, patrimônio nacional do Brasil. Sua educação tradicional em colégio de freiras (Colégio Santa Rita) não a impediu de questionar verdades absolutas sobre o sagrado e o profano, fato comprovado com a publicação de Marias (1999), nos seus 26 anos de idade.
Sua obra, ganhadora, na categoria Contos, do concurso Novos Autores Paraibanos, atualmente faz parte do conteúdo programático de literatura do vestibular 2012 da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Por ironia talvez, ela apresenta 13 (treze) contos, que não indica azar , mas a premiação de leitores que podem conhecer, entre outros, A Puta de Deus ― objeto de estudo deste artigo ―, que mistura o mundano e o divino, e sacraliza o desejo sexual, reafirmando-o como parte natural do contexto humano.

As paixões são como alavancas que aumentam dez vezes mais as forças do homem e o ajudam na realização dos objetivos da Providência; [...]
Todas as paixões têm seu princípio num sentimento ou necessidade natural. O princípio das paixões não é, portanto, um mal, uma vez que repousa sobre uma das condições providenciais de nossa existência. (KARDEC, 1944, p. 297).



3.0 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 "... para que minha língua não me perca..."

Na evolução humana, esbarra-se na dicotomia imposta pelo pensamento religioso: o Bem e o Mal, como sinônimos para o Sagrado e o Profano. Parece que só existem dois caminhos a seguir, duas formas de pensamento, dois pontos de orientação intelectual.
Pelo dicionário de Aurélio, tem-se que profano "é algo que não pertence à religião, leigo, estranho a conhecimentos sobre determinados assuntos". Daí ser necessário afastar a ideia culturalmente apreendida de que profano é vulgar, sujo, imundo. Se um ponto-de-vista não é acobertado por alguma religião, não lhe é crível. Por outro lado, se faz parte dos seus princípios, "é profundamente respeitável e não se pode deixar de cumprir".
"Normalmente no ser humano não pode haver mistura ou confusão entre esses termos." (PATIAS, 2007, p. 3). O meio-termo é traduzido como falta de amadurecimento ou influência da lavagem cerebral científica. Para tanto, lembra Durkheim (1996, p. 51): "o sagrado e o profano foram pensados pelo espírito humano como gêneros distintos, como dois mundos que não têm nada em comum".
Contudo, adverte SANTOS (2007, p. 1):

O Mal é algo que só se caracteriza graças, primeiramente, a existência do Bem. Porém, ao caracterizar-se, o Mal acaba por caracterizar o Bem, ou seja, caracteriza que o Bem é Bom. O Bem e o Mal são forças que se anulariam caso existisse apenas uma. [...] Essa relação é diretamente proporcional, ou seja, quanto maior for o mal, mais certeza teremos de que o bem é bom. [...] Portanto, o mal caracteriza o bem, mas sua existência depende da prévia existência do bem.

Aprende-se, em salas de aula, nas igrejas ou no ambiente familiar, que o Bem é representado por Deus (o divino, sagrado) e o Mal por Satanás. Este aproxima o homem do que é profano, ou seja, "contrário ao respeito devido a coisas sagradas". (FERREIRA, 2001, p. 559). Considerando, pois, a afirmação de Santos (2007), acima mencionada, é o profano que caracteriza o sagrado, ou seja, é Satanás que caracteriza a existência de Deus. A existência de Satanás é subordinada à existência de Deus, afinal, este é o criador universal, de acordo com a Bíblia.

Eu sou o Senhor, sem rival, não existe outro Deus além de mim. Eu te cingi, quando ainda não me conhecias, a fim de que se saiba, do levante ao poente, que nada há fora de mim. Eu sou o Senhor, sem rival; formei a luz e criei as trevas [...]. (Is, 45:5-7a).

Com base nessa citação, Santos (idem) complementa:

Verdadeiramente, só existe um criador de TODAS as coisas e ele é Deus. Foi Ele quem criou o bem e foi Ele, também, quem criou o mal e as trevas. Deus criou Satanás do jeito que ele é e sempre foi, sem essa fantasia de anjo do bem.
Alguns devem estar pensando que eu estou louco ao afirmar que Deus é, também, o Pai criador do mal e das trevas. Entretanto, não pensem que sou tão inteligente assim, não me dêem este crédito todo, pois ele não saiu de minha cabeça, mas da bíblia, a "inegável fonte da verdadeira verdade". [...]
Acredito, entretanto, que a origem de Satanás tenha ocorrido no terceiro dia da criação, ou seja, no dia da criação da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, pois é neste momento que o mal é criado e, acredito também, seu maior representante, pois acho pouco provável ter havido o mal sem que houvesse Satanás, uma vez que ele é o mal propriamente dito. Ele é a criação e não o criador, ou seja, ele é o mal e não o criador do mal. O criador é único: Deus.



3.2 "Qual é o caminho da morada luminosa?"

De acordo com os escritos bíblicos, Deus é o criador do mundo e é distinto do universo. Depois de observar a negligência humana, responde com uma aliança, não mais com a humanidade inteira, mas com o povo liderado por Abraão. Mais tarde, escolhe Moisés para libertar os hebreus (seu povo) do poder egípcio. E assim, a visão teocêntrica é transmitida entre as gerações: Deus é o centro do universo e de todas as coisas existentes.

No sagrado tradicional existe uma sacralização de um "centro organizador" exterior (Deus, Cosmos, Natureza, Sociedade, etc.), o qual poderia ser graficamente representado por uma circunferência sobre a qual se alinham os "eus" individuais que reverenciam o centro e que estão distanciados sacrificialmente em relação a ele. (ANES, 2003, apud PATIAS, 2007, p.4).


Com a chegada do Renascimento, uma profunda mudança ocorreu na consciência humana. O mundo antes limitado passa a ampliar seus horizontes com a descoberta de novas terras, invenções tecnológicas, perspectiva linear na pintura etc. A astronomia que antes não passava de apenas um campo de investigação científica, agora se concentrava em mensurar o mundo e estabelecer a posição da humanidade dentro dele.


No sagrado moderno, verifica-se uma diminuição do poder (sagrado) do centro organizador de cada sociedade. Contribuíram para esta situação o avanço das explicações cientificas e a perda do poder e do prestígio das instituições religiosas, que eram os únicos "centros organizadores" na sociedade. Contribuíram, também, o surgimento de vários centros organizadores (religiosos, científicos, políticos, sociais, inclusive a mídia) em consequência mútua, uns com os outros, como "modelos" e "germes" do sentido do mundo. O ser humano passou a ter com todos eles, pequenas distâncias sacrificiais. (Id., p. 4).



Pensadores, tais como o erudito inglês Roger Bacon (1214 - 1294) ― que destacou o papel fundamental do raciocínio indutivo e da experimentação ―, desafiaram a autoridade divina em relação ao mundo laico e propagaram que o homem deveria ser senhor do próprio destino, fato que serviu de base para o mundo moderno.


[...] um novo (velho) centro organizador que é o "eu individual", passa da periferia da circunferência para o seu centro, enquanto que os centros organizadores passam a gravitar ao seu redor. [...] Deste modo, depois da decomposição do religioso que conduziu a uma diminuição da intensidade do(s) centro(s) sagrado(s) sacrificiais, veio uma recomposição do religioso (sob outro aspecto), na qual o ser humano passou a ser o centro de um novo sagrado (pouco ou não sacrificial). Isso representa uma mudança de paradigma, uma vez que a verdade das religiões sofreu uma fragmentação em muitas pequenas verdades individuais. (Ibid, p. 4).
Visto que "narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem" (GANCHO, 2009, p. 6), muitas leituras vão sendo feitas a respeito do mundo e do que nele há. A autora ainda explica que "analisar um texto e compreendê-lo supõe não só a familiaridade com a leitura como também uma metodologia, ainda que informal". (Id., p. 5). Contudo, é importante considerar o que dizem os Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (1998, p. 69-70):

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas.


A leitura ganhou dimensões gigantescas: tudo que é lido precisa ser compreendido, mas as palavras sozinhas nada ou pouco falam, agora são vistas como parte de um conjunto de outras informações (contextualização). No entanto, no caso de obras literárias, Umberto Eco (1993) lembra que "é preciso buscar não o que o autor quis dizer, mas o que o texto diz". (Apud RCEM-PB, 2007, p. 82).
Em se tratando da leitura de um conto é mister considerar a teoria de Poe, que trata da relação extensão do texto X efeito causado no leitor. Ele afirma que: "no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção". (Apud GOLLIB, 2006).




4.0 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Sabendo da riqueza de detalhes, aspectos e critérios que envolvem a análise completa de um texto, é mais salutar considerar que alguns elementos são examinados mais atentamente (opção adotada neste estudo).
Na intitulação do conto a escritora já demonstra a forte presença de uma de suas Marias ― Adélia Prado ―, a qual brinca com algumas certezas religiosas, antropomorfiza Deus, liberta a mulher de seus estereótipos e preconceitos, e climatiza a eroticidade feminina como resultado de conflitos e paradoxos. Como visto tantas vezes nas obras de Adélia, o título A Puta de Deus se constitui num emblema do próprio texto.
O fato de ter posto os nomes "Puta" e "Deus" com iniciais maiúsculas cria, talvez, o maior de todos os conflitos por sugerir que o profano e o sagrado estão num mesmo grau de valor. Também, a presença da preposição "de" entre os nomes supracitados ratifica a ideia de que há uma ligação direta entre os dois termos, corroborando, assim, com as palavras de Santos (2007), quando afirma que só existe um único criador ― que é Deus ―, e Ele é, por isso, o criador do mal. Então, a Puta provém de Deus, é parte de sua criação.
A epígrafe interliga a fala de um fragmento do livro de Provérbios (8:30b), parte do Novo Testamento da Bíblia, com a fala contemporânea do poeta areiense Valberto Cardoso (2009, p.36), na sua Palavra bruta. Na primeira citação, no entanto, há uma inversão e é posto capítulo "9:30". Como na numerologia o número 8 representa a letra H, que faz lembrar a palavra homem, talvez, por isso, a escritora o tenha trocado pelo número 9 que indica a letra "J", inicial do seu próprio nome, intensificando a presença da imagem feminina.

E eu era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele
em todo o tempo. (Provérbios, 9*-30)

Apesar de a frase parecer sugerir tratar-se de momento íntimo entre seres humanos, contextualizando-a de acordo com a obra A Bíblia Sagrada da Sociedade Bíblica do Brasil (2000, p.804), o referido versículo é retirado de um texto intitulado A eternidade da Sabedoria. Também, na Bíblia Sagrada (1987), do Centro Católico, versão dos Monges de Maredsous (Bélgica), o trecho citado é assim apresentado:

junto a ele estava eu como artífice,
brincando todo o tempo diante dele (p.787).

Em nota de rodapé (na Bíblia anteriormente citada), há o esclarecimento de que existem outras traduções que trocam a expressão "como artífice" por "como criança". É dito: "A Sabedoria personificada representa a ordem perfeita que preside às obras de Deus". (Id., 1987, p. 787).
Personificando, pois, a sabedoria, o enredo pode, conforme Gancho (2009), ser dividido em quatro partes psicologicamente conflitantes:
1. Exposição: Apresentação da personagem principal e do seu encontro com Deus antropomorfizado. "Quando Deus foi me procurar, eu estava bêbada em mesa dos homens. Mesmo assim, Ele me pegou no colo, elevando-me a nobres altares. Eu, a puta de Deus segui contente, alturas tantas! [...]", isto é, o primeiro parágrafo.

2. Compilação: A eroticidade feminina aproximando sexualidade e religião, para espanto de quem supõe deter algumas ?certezas? religiosas. "Cá embaixo, roubaram-me manto, véu, diadema de ouro. Puseram-me escarlate batom. Abriram generosas fendas em minhas vestes ? tudo com tal respeito! [...] Mas bem que ajuntou gente, quando aquele vulto chegou-se a mim [...] Tua puta sente falta dos regozijos dos homens, das santas farras, deles, do profano vinho [...] És apenas mulher louca [...]", isto é, do segundo até o antepenúltimo parágrafo.

3. Clímax: O ápice do deleite, o gozo do equilíbrio entre o profano e o sagrado. "De repente, todo o meu corpo clamava seus louvores, ardia na esperança do fogo desse inferno de Deus. Aí, cheguei-me para Ele e o beijei: Sua divina boca então se pôs rubra do meu prostituto batom [...]", isto é, o penúltimo parágrafo.

4. Desfecho: A perplexidade e ironia presentes no povo dito sacro, diante da escolha de Deus, o antagonista, vilão do povo em sua escolha. "O povo, agora perplexo e sacro, batia palmas e gritava vivas, trazia-me véu, jogava-me arroz. [...]", isto é, o último parágrafo.
Predominando o discurso direto, sem época ou duração especificadas, o narrador-protagonista, revestido de alma feminina anti-heroica, exibe características:
? Físicas: "... Aí, cheguei para Ele e o beijei: Sua divina boca então se pôs rubra do meu prostituto batom, Puta vaidosa...". O oferecimento do próprio corpo remete ao texto bíblico do livro de Gênesis (2:6), intitulado A culpa original, no qual Eva, tentada pela serpente, oferece o fruto proibido a Adão, que o come igualmente. Numa outra leitura, o beijo dado em Deus faz paralelo com o beijo de Judas do livro bíblico Matheus (26:47-48). Logo, a personagem deixa para imaginação dos seus leitores a seguinte indagação: seu beijo é tentação, traição ou puro desejo?

? Psicológicas: "Quando Deus foi me procurar, eu estava bêbada em mesa dos homens". Compreende-se que estava atordoada, zonza, perdida diante daquele mundo machista ou explorada por uma sociedade massificadora, capitalista, preconceituosa (sugerindo também, nesse fragmento, a presença de característica social). Caso tivesse optado pela expressão "mesa de homens", o sentido de desfrute carnal ficaria mais evidente.

? Sociais: "Eu, a puta de Deus segui contente, alturas tantas". Dentre as possíveis leituras, pode-se enfatizar que a parte ruim, a ovelha negra, aquela que por viver do ou para o sexo é vista pela sociedade como inferior, agora foi elevada mais do que supunha, tem valor reconhecido. Observa-se, portanto, a presença agora da palavra "puta" com letra minúscula, diante de Deus, letra maiúscula, posto como o grande Senhor. Também, é puta de Deus, não de um humano qualquer, um ninguém. Deus, o grande Senhor, a deseja e isso a torna superior, importante. Por outro lado, a mesma frase tem conotação psicológica na medida em que relaciona o gozo entre partes divergentes.

? Ideológicas: "― És apenas mulher louca, a Alvoroçadora: de nada sabes". Uma mulher insensata, indisciplinada ou errante? Também é possível atribuir-lhe mais um sentido com o verbo alvoroçar indicando "entrar a fêmea no cio". Pode a personagem ver-se apenas puta? Sua frase posterior dá a resposta: "Sou eu, a puta santa de Deus.".

? Morais: "O povo, agora perplexo e sacro, batia palmas e gritava vivas, trazia-me véu, jogava-me arroz. Procurava juiz. Mas, quanto a mim: não me quis casar não." A alegria da personagem em ver-se (sentir-se) aceita, tal como era, por Deus, em mirar-se com beleza personificada de Sabedoria, diante da perplexidade de um povo (religioso) preconceituoso, superpõe o texto da Bíblia sobre a mulher adúltera, em que Jesus argumenta: "Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra." (Jo 8:7b). Quem se atreve, pois, a condenar a "Puta de Deus"?

Um fariseu convidou Jesus a ir comer com ele. Jesus entrou na casa dele e pôs-se à mesa. Uma mulher pecadora da cidade, quando soube que estava à mesa em casa de fariseu, trouxe um vaso de alabastro cheio de perfume; e, estando a seus pés, por detrás dele, começou a chorar. Pouco depois, suas lágrimas banhavam os pés do Senhor e ela os enxugava com os cabelos, beijava-os e os ungia com o perfume. (Lc 7:36-38).


O conto dialoga com o trecho bíblico acima mencionado quando a personagem afirma:

Eu, a puta de Deus segui contente, alturas tantas! Deitei na cama macia d?Ele. Senti trêmula e palpitante a rija carne de Seu santo espírito. Molhei-me de Deus.

Maria Madalena, a mulher pecadora (vista como prostituta, meretriz, "puta"), sentiu imenso prazer quando encontrou Jesus à mesa em casa de fariseu. Pôde sentir paz, mas, ao mesmo tempo, uma agitação tomou conta de si, tamanha felicidade! Há quem diga que ela tinha uma beleza singular e encantava os homens. Teria encantado o Homem-Cristo, ao ponto de excitá-lo?
Como a intrigante Madalena, a personagem "se molha de Deus". Foram suas lágrimas? Lágrimas d?Ele, por tê-la despertado para a vida, por tê-la respeitado como ser humano ou por fazer com que vejam o valor de uma puta ― Sua puta ―, porque foi criada por Ele. Também, é possível que a beleza humano-divina tenha atraído seu corpo ao ponto de "se molhar" (sua vagina). O orgasmo passa a ser então a valorização do ser humano em todos os seus aspectos, ainda que falhos.
O conto brinca com o trecho bíblico de Lucas (idem) já que não é a mulher adúltera que traz o vaso com perfume, é Deus que, diante dos ímpios, com voz de "filete d?água fria", indaga:
― "Já recobri a minha cama com acolchoados, com lençóis de linho fino do Egito. Já perfumei o meu leito com mirra, aloés e canela. Vem, saciemo-nos de amores até a manhã, alegremo-nos com amores."

A personagem se deleita de prazer com Deus, mas, mesmo assim, deseja homens, por acreditar, talvez, que nenhum ser humano vive só "em espírito". Ainda, se Deus é o criador de todos os homens, e a eles concedeu-lhes Sua semelhança, o "estar com homens" é, também, "estar com Deus".
― Meu Senhor, Tua puta sente falta dos regozijos dos homens, das santas farras, deles, do profano vinho.

Todavia, a voz antagônica, com ironia, humor ou apenas sapiência divina, responde:

― "És apenas mulher louca, a Alvoroçadora: de nada sabes". Mulher que se mulheriza em vão.

A história, apesar de conversar continuamente com textos bíblicos e reafirmar um gosto pelas obras de Adélia Prado, trazendo, de certa forma, poesia para o conto ― com cadência: "Eu, a puta de Deus segui contente, alturas tantas!"; metáforas: "Molhei-me de Deus." e oximoros: "- Sou eu, a puta santa de Deus." ―, tem suas particularidades. Não torna a leitura um ato enfadonho.
E como não se surpreender com uma mulher que afirma que seu corpo arde na esperança do fogo desse inferno de Deus, seu amante é Deus e sua boca saliva quando diz que é a puta santa de Deus? A personagem, nesse instante, aflora uma outra Maria da autora ― Hilda Hilst ―, que falou sobre o grande misticismo de Deus, além de traduzi-lo como o "Grande Intestino". Parece que Hilda e Janaína desbravaram matas e, por conseguinte, fizeram-no com o próprio Deus.

... Porque adoro dizer (salivada boca):
― Sou eu, a puta santa de Deus.

A saliva, dentro de um ambiente cheio de tensão e conflitos, pode ser lida de acordo com os postulados do fisiologista Ivan Petrovich Palov (1904) sobre reflexos digestivos. Ele verificou que não só a comida na boca do cão provocava salivação. Se houver comparação (mesmo compreendida como grotesca, pejorativa) da puta (personagem) com uma cadela, obtém-se o mesmo resultado: sua boca não saliva por comida. E é possível até complementá-lo: a boca não saliva só por comida, porque "uma pequena parte do universo está contida dentro da pele de cada um de nós" (SKINNER, 1982, p. 23).
Por outro lado, Madalena, que nunca deixou de ser vista como puta, entregou-se completamente a Deus, a tal ponto que foi para ela que Ele apareceu primeiro ressuscitado. "Maria! [...] Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus Irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus." (Jo 20:16a e 17-18).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conto "A Puta de Deus" consegue migrar da ficção à realidade do leitor, por mexer de forma tão bem balanceada com os desejos mais secretos, íntimos ou psicológicos. É possível sentir e respirar junto com a puta, ou seja, verificar que o erotismo é inato à condição humana.
Não é uma questão de corromper valores morais, mas reafirmar que o ser humano é processo, continuação e, como tal, carece ver-se no seu conjunto interdependente ― corpo, mente, espírito. A puta não é só corpo, e o sexo não nasce e morre neste.
O sagrado e o profano são tratados como resultado da reaprendizagem do que nos foi ensinado culturalmente. Só a arte para fazê-lo! A literatura, portanto, é capaz de quebrar tabus e regras, para misturar (no conto estudado) ficção, psicologia e filosofia em palavras milimetricamente dosadas de excitação.
A narrativa apaixona o leitor pela sensualidade exalada ― tendência "Adeliana" ―, ao mesmo tempo em que provoca, polemiza, instiga a refletir sobre o amor lúbrico, sobre os valores pré-concebidos, sobre si mesmo.
A própria Adélia, uma Maria tão presente nesta obra, ficaria orgulhosa de ver, na "Puta de Deus", a idealização em prosa de grande parte dos seus versos. E, com certeza, reinventaria o trecho do poema A Serenata, pondo-o assim:

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro puta ou santa.
[...]
De que modo vou abrir a janela, se não for puta?
Como a fecharei, se não for santa?
REFERÊNCIAS

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